Opinião

Críticas necessárias às modificações no Código de Trânsito Brasileiro

Autores

  • João Paulo Orsini Martinelli

    é advogado criminalista professor do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP/SP) doutor em Direito Penal pela USP e pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal).

  • Leonardo Schmitt de Bem

    é professor adjunto na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) doutor em Direito Penal pela Universidade de Milão (Itália) e mestre em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal).

13 de janeiro de 2018, 5h50

Não se trata de enredo carnavalesco. É o resultado da inflação legislativa neste setor social. Em pouco mais de dez anos, foram promulgadas seis leis com reflexos penais no trânsito. Quiçá nenhuma outra legislação recebeu tantos (maus) reparos como a Lei 9.503/1997 (CTB).

Em cada mudança há uma nova leva de textos e vídeos explicativos provenientes dos mais diversos nichos jurídicos. Mesmo no período de vacância, a última alteração legal já chamou a atenção de vários operadores do Direito. A verdade é que pouco se aproveita dessas explicações, seja pela sucessão de erros na análise dogmática da Lei 13.546/17, seja pela sua diminuta interpretação constitucional. Logo, a pretensão deste ensaio (e outros que sucederão) não é apenas censurar o legislador com sua nova proposta simbólica, senão também alertar sobre algumas interpretações feitas à margem das melhores técnicas.

A novel lei se apresenta com seis artigos. O primeiro (artigo 1º) e o último (artigo 6º) são genéricos. Aquele trata de alteração do código de trânsito quanto aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, enquanto este informa o período para vigência (vacatio legis) da respectiva lei (120 dias). Relevante, assim, tratar dos demais, a começar pelo artigo 2º da Lei 13.546/2017, que consignou a inclusão — na parte das disposições gerais do Capítulo XIX do Código de Trânsito Brasileiro — de dois novos parágrafos ao artigo 291 da Lei 9.503/1997. O dúplice acréscimo não constava da proposta originária da deputada Keiko Ota (PSB-SP), mas decorreu do substitutivo apresentado pelo deputado Hugo Leal (PSB-RJ), posteriormente aprovado pelo Plenário da Câmara.

O parágrafo 3º, que foi vetado, propôs um limite quantitativo de pena privativa de liberdade concretamente aplicada para alguns crimes para fins de substituição por penas restritivas de direitos[1]. Isto é, a pena privativa de liberdade imposta ao condenado pelo novo crime de homicídio culposo qualificado de trânsito (artigo 302, parágrafo 3º), pelo novo crime de lesão corporal culposa qualificada de trânsito (artigo 303, parágrafo 2º) e pelas duas espécies qualificadas do crime de racha (artigo 308, parágrafos 1º e 2º), para ser substituída por pena restritiva de direito, não poderia superar quatro anos, atendidas as demais condições legais dos incisos II e III do artigo 44 do Código Penal.

Neste caso, uma interpretação judicial deveria levar em atenção a regra do artigo 12 do Código Penal, ou seja, a regra especial (parágrafo 3º do artigo 291) prevaleceria sobre as regras gerais do Código Penal quanto aos fatos tipificados pela lei de trânsito. Ocorre, porém, que o respectivo parágrafo foi vetado, pois “o dispositivo apresenta incongruência jurídica, sendo parcialmente inaplicável, uma vez que, dos três casos elencados, dois deles preveem penas mínimas de reclusão de cinco anos, não se enquadrando assim no mecanismo de substituição regulado pelo Código Penal. Assim, visando-se evitar insegurança jurídica, impõe-se o veto ao dispositivo”[2].

O mecanismo de substituição referido no texto do veto se relaciona com o inciso I do artigo 44 do Código Penal, que, em síntese, considera a natureza do crime praticado, a quantidade de pena aplicada e a modalidade de execução da infração. Os delitos implicitamente destacados no veto são o homicídio culposo qualificado de trânsito (artigo 302, parágrafo 3º) e o racha qualificado pelo resultado morte (artigo 308, parágrafo 2º), pois ambos têm pena mínima cominada em cinco anos.

A partir desses esclarecimentos iniciais é possível verificar a imprecisão do veto. Em primeiro lugar, porque qualquer que seja a pena privativa aplicada ao condenado, sendo o crime culposo, admite-se a substituição (artigo 44, I, parte final). Essa regra não encontra óbice no código de trânsito, portanto, deve ser respeitada para os crimes previstos nesse diploma legal. É para os crimes dolosos que a pena imposta pelo juiz não pode superar os quatro anos. Em segundo lugar, mesmo antes da promulgação da novel lei, o delito de racha qualificado não admitia a substituição. Vejamos.

Sendo uma figura preterdolosa, existe dolo do agente dirigido, por exemplo, à participação, em via pública, de competição automobilística não autorizada. O resultado morte sobrevém por culpa. Ou seja, o dolo do agente se restringe apenas à participação no racha. E a presença deste elemento (o dolo), ainda que não se trate exclusivamente de crime doloso, a nosso ver, por si só, impede a substituição penal, até porque, muito provavelmente, a dosimetria penal ficará acima de quatro anos.

Todavia, se não for o bastante, deve-se considerar o fato de que, regra geral, o resultado morte deriva de conduta violenta. Neste caso, embora a vis corporalis não constitua elementar do tipo legal do parágrafo 2º do artigo 308 do CTB, a substituição igualmente é obstada tendo em vista a ocorrência da violência por meio instrumental. O objeto contundente é o veículo automotor. A violência, portanto, não é elementar explícita do delito, como ocorre, por exemplo, no roubo, porém, é meio para a prática do crime. E a regra do inciso I do artigo 44 do Código Penal afasta a conversão da pena quando o crime é “cometido com violência”, independentemente de ser ou não elementar do tipo.

A partir dessas explicações, interpreta-se o veto presidencial no sentido de admitir-se que o agente condenado por crime culposo de trânsito seja beneficiado com a substituição da privação de liberdade por outra espécie de pena. Nestas hipóteses (homicídio culposo qualificado e lesão corporal culposa qualificada), após a conclusão da dosimetria, provavelmente a substituição dar-se-á por uma pena restritiva e multa ou duas penas restritivas de direitos (artigo 44, parágrafo 2º).

Incidindo uma única restrição de direitos, obrigatoriamente, diante da especialidade do CTB, será aplicada a pena de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, em qualquer das atividades elencadas nos incisos do artigo 312-A com redação dada pela Lei 13.281/2016. Em caso de cumulação, essa pena deverá ser imposta conjuntamente com a pena de interdição prevista no inciso III do artigo 47 do Código Penal (de acordo com o artigo 57 do Código Penal).

Sendo assim, eventual não substituição penal apenas poderá decorrer da análise do inciso III do artigo 44 do Código Penal, pois, havendo condenação por crime culposo, o agente até poderá ser reincidente, mas não em crime doloso (artigo 44, II). Embora sejamos contrários a tal prática, pois a reconsideração de certas circunstâncias judiciais depois da dosagem da pena final enseja manifesta violação ao princípio do ne bis in idem[3], caberá ao julgador avaliar se a substituição é suficiente a partir de considerações sobre a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias do crime.

De certa maneira, ainda que voltada diretamente à fixação da pena-base, mas com reflexos na substituição penal (artigo 44, III), mormente se descartada nossa advertência, o legislador propôs a inclusão de outro parágrafo ao artigo 291 do CTB. O parágrafo 4º determina que o “juiz fixará a pena-base segundo as diretrizes previstas no art. 59 do Código Penal, dando especial atenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime”.

Certamente a nova previsão ensejará uma série de interpretações, até porque não há qualquer justificativa de sua inclusão no substitutivo ao PL 5.568/2013. Poder-se-á sugerir, por exemplo, que as circunstâncias referidas no parágrafo 4º do artigo 291 do CTB sejam preponderantes sobre as demais diretrizes judiciais do artigo 59 do Código Penal. À margem do campo da especulação, parece irônica a regra de dar especial atenção às consequências do crime, pois, conforme será visto em ensaio posterior, há clara desproporcionalidade entre penas cominadas a crimes com resultados diversos, como, por exemplo, uma lesão corporal culposa leve provocada por motorista embriagado poderá ter pena bem maior que uma lesão dolosa grave.

Fazendo uma análise do conteúdo do parágrafo 4º do artigo 291, pensamos que a demarcação do juízo da culpabilidade deve se dar em um sentido redutor de danos. Significa dizer que a contrariedade do dever de cuidado será aferida antes da dosimetria (quando da análise da tipicidade), mas será no momento da fixação da pena-base que o magistrado deverá, proporcionalmente, avaliar a culpa inconsciente de forma mais branda à culpa consciente, pois, no primeiro contexto, há um menor esforço despendido pelo agente (motorista) para se autoinserir em situação de vulnerabilidade[4]. O contorno da culpabilidade na fixação da pena-base, portanto, deve ser feito pelo conteúdo do injusto.

No tocante às circunstâncias do crime, trata-se de critério residual, pois apenas poderão ser consideradas pelo juiz aquelas que não constituem elementares do crime (resta vedada, portanto, qualquer consideração à embriaguez do condutor), categorias das circunstâncias legais (artigo 298, CTB) ou causas de aumento de pena (artigo 302, parágrafo 1º e artigo 303, parágrafo 1º). Relevante afirmar, ainda, que cumpre ao juiz excluir quaisquer circunstâncias que não possuem conexão com o delito praticado, como, por exemplo, a conduta processual do acusado. Finalmente, também é dever do juiz preservar a fundamentação dos atos decisórios, de sorte que devem apresentar um elemento concreto que, efetivamente, evidencie real necessidade de exasperação da pena[5] e não optar, tão-somente, por dados genéricos ou vagos para justificar a exasperação[6].

Por fim, naquilo que é pertinente às consequências do crime (eventual valoração negativa desta circunstância não prejudica a substituição penal), reforça-se que o juiz não pode sopesar a pena-base considerando a morte do agente ou a gravidade das lesões corporais sofridas pela vítima, pois tais consequências, por serem inerentes aos respectivos tipos (são elementares que diferem esses tipos penais de outros), foram previamente aferidas pelo legislador quando da cominação das sanções. De igual modo, deve-se ter muito cuidado para não valorar as consequências extratípicas do delito[7].

Tais considerações, apenas iniciais, servem como uma orientação aos acadêmicos e aos operadores do Direito e objetivam, efetivamente, substituir as dúvidas por certezas. Em um próximo texto, teceremos considerações sobre a qualificadora do delito de homicídio culposo de trânsito (artigo 302, parágrafo 3º).


[1] O vetado parágrafo 3º do artigo 291 possuía a seguinte redação: “Nos casos previstos no § 3º do art. 302, no § 2º do art. 303 e nos §§ 1º e 2º do art. 308 deste Código, aplica-se a substituição prevista no inciso I do caput do art. 44 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos, atendidas as demais condições previstas nos incisos II e III do caput do referido artigo”.
[2] Mensagem 538, de 19 de dezembro de 2017.
[3] Martinelli, J.P.O; De Bem, L.S. Lições fundamentais de Direito Penal. 2ª ed. Saraiva, 2017, p. 866.
[4] Roig, R.D.E. Aplicação de pena. 1ª ed. Saraiva, 2013, p. 98.
[5] STJ, 6ª Turma, HC 258.328/ES, rel. min. Rogério Schietti Cruz, DJ 2/3/2015.
[6] STJ, 5ª Turma, HC 245.665/AL, rel. min. Moura Ribeiro, DJ 3/2/2014.
[7] Teixeira, Adriano. Aplicação da pena. 1ª ed. Marcial Pons, 2017, p. 31.

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