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O Judiciário e o “ajuste justo” desenhado pelo Banco Mundial

7 de janeiro de 2018, 7h00

Por Friedmann Wendpap

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Para posicionar a análise, insta dizer que o Banco Mundial não é agente do imperialismo e puerilidades quejandas. Trata-se de organização internacional, isto é, entidade 100% pública, da qual participam quase todos os Estados existentes no mundo. As deliberações são tomadas por voto ponderado em conformidade com o capital oferecido pelo participante à formação do banco. Estados Unidos, Japão, China, Alemanha, França, Reino Unido, Índia, Itália, Canadá, Arábia Saudita, Rússia e Brasil têm maior peso individual, somando pouco mais de 50% do poder de voto. As ironias da história põem os dois derrotados na Segunda Guerra Mundial na testa do fomento ao desenvolvimento econômico e social.

O dinheiro do Banco Mundial é público, sai do erário de cada Estado-membro, tal qual o do Fundo Monetário Internacional. Quem inadimple empréstimo dá calote no povo que pagou tributos para formar os aportes de capital.

O banco, se instado por algum sócio, comete a funcionários a produção de estudos sobre o tema demandado. A resposta ao consulente sintetiza-se na relação entre a cigarra e a formiga. Para facilitar a leitura, o banco poderia inscrever no frontispício dos relatórios: como vovó diz, quem poupa tem! Claro, o consulente ouve admoestações sobre os perigos da prodigalidade com o dinheiro público e a recomendação vai sempre na direção do decremento da despesa e incremento da receita, com a formação da poupança que propicie investimento em bens formadores de capital público, físico e cultural.

Ocorre que, quando o inverno se aproxima, as cigarras bradam sobre a injustiça da retirada dos “direitos”. Brandem princípios de não regressão, como se de fato houvesse progressão a ser protegida. A rigor, as cigarras, ébrias de ilusão, rejeitam a realidade. Não há regressão, e sim pisar o chão, os pés de manhã, sabendo a barra de viver. Diga-se, a visão do progresso contínuo é típica da linha de pensamento que acredita ser capaz de moldar o mundo a seu talante. Ah, esses moços, pobres moços, se soubessem o que Thomas Sowell sabe não passavam o tempo a ziziar.

Essas premissas destinam-se a evitar algaravia da intelligentsia de passeata, com motes aferrados aos dogmas do materialismo histórico, marchando em direção ao paraíso sem Deus, apta apenas à crítica ad hominem, sem teoria e empiria para o contraditório das ideias. Adjetivos abundam nas palavras de ordem, repetidas até que se tornem miméticas na multidão, como dito por Elias Canetti in Massa e Poder.

A estampa do relatório do Banco Mundial diz o óbvio: o Brasil gasta mais do que pode e gasta mal. As duas afirmações merecem exame para expungir a mítica de que os meios (déficit) justificam os fins: benefício aos pobres. O Brasil gasta muito mais do que arrecada e aloca os recursos para os mais ricos.

A despesa além da receita — gastar mais do que pode — impele a tomar dinheiro emprestado para custear os compromissos e pagar juros sobre essa dívida. Assim, a dívida pública (União, estados e municípios) saltou de 50% do PIB em 2012 para perto de 80% em 2017. Nessa marcha, regredir-se-á (verdadeiramente) aos anos 1980, com perda da confiança na capacidade de pagamento da dívida; o medo da falência provocará fuga de capitais, aumento dos juros, inflação e todo o déjà vu. No ambiente bolivariano, os pobres são penalizados e os funcionários públicos e capitalistas ficam indenes.

Para quem pensa que há alguma conjuração demoníaca entre banqueiros, rentistas, potência estrangeira e delírios afins, deve-se dizer que o poder público toma dinheiro emprestado dos brasileiros em geral. O dinheiro é depositado em contas de poupança, de previdência privada, Tesouro Direto, aplicações financeiras. Os reais poupados por família pobre para comprar uma geladeira são usados pelo Estado para pagar débitos excedentes à arrecadação, isto é, o déficit. Quando a família precisa, o Estado mutuário devolve o dinheiro e toma emprestado de outra pessoa que também está poupando. Essa roda gigante funciona enquanto os mutuantes/poupadores acreditarem que o tomador devolverá o dinheiro no prazo combinado. Rompida a confiança, a roda trava e a bancarrota se espalha. A família não comprará a geladeira, o comerciante e o fabricante ficarão ociosos. Os trabalhadores envolvidos perderão o emprego.

Os banqueiros lucram na intermediação entre o poupador e o Estado que toma empréstimo. Se o Estado fosse superavitário, os banqueiros não teriam essa atividade para lucrar quase sem perigo de inadimplência e precisariam ceder empréstimos à atividade produtiva e consumo, a juros módicos.

Aproveitando a digressão, vale dizer que, se não houvesse déficit nas contas públicas brasileiras, não haveria rentistas vituperados por puritanos ideológicos de hoje e por religiosos do passado. O rentista não é milionário obeso fumando charuto como se vê nas cartilhas novecentistas dos centros acadêmicos dos cursos de “Ciências” Sociais e, infelizmente, até de faculdades de Direito. Qualquer brasileiro ajuizado que poupe é rentista, ainda que não saiba disso.

O Banco Mundial assere que as isenções tributárias, concedidas a algumas empresas privadas eleitas pelo governo, custaram 3% do PIB em 2015 (em torno de R$ 170 bilhões) e não evitaram o desemprego em grande escala e a recessão econômica. O subsídio ao crédito concedido pelos bancos estatais, a “campeões nacionais” hoje falidos, abocanhou 1,3% do PIB de 2015, mais de R$ 70 bilhões. À guisa de comparação, o Bolsa Família custou menos de R$ 3 bilhões no mesmo ano. O Banco Mundial observa, no relatório, que o BNDES se destaca entre os homólogos no mundo por causa do tamanho, grau de subsídio e opção por grandes empresas. O Brasil gasta mal o dinheiro do povo, muito mal. A rigor, os dispêndios bilionários e mal alocados acentuaram o déficit público, catalisando as condições da recessão.

É fruto de obra ficcional (Pilar de Ferro) a oração ciceroniana sobre a relevância do equilíbrio orçamentário que habita na internet. Todavia, o super-realismo brasileiro beira o fantástico, tangendo a ficção no que toca ao caos com a riqueza produzida pelo povo. Prescindível ser sábio para entender que saco sem fundo não para em pé.

Números e considerações em abundância e o leitor deve estar indagando: qual a relação entre o Judiciário e o “ajuste justo”? A sonoplastia põe música dramática, o letreiro corre pela tela — continua no próximo capítulo. Acendem as luzes.