Ideias do Milênio

"Para os angry white men, ser homem é ser capaz de sustentar a família"

Autor

7 de janeiro de 2018, 8h50

Reprodução
Reprodução

Entrevista concedida pelo sociólogo Michael Kimmel ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

*

Nós estamos na casa do sociólogo Michael Kimmel, que recebeu o Milênio para conversar sobre os eleitores de Donald Trump, quem são esses homens da classe operária que maciçamente votaram em Trump e garantiram a ele a vitória no colégio eleitoral. E ele escreveu o livro que é considerado a bíblia desse assunto, que é Angry White Men, os homens brancos zangados, os homens brancos raivosos, que são exatamente os eleitores de Trump. Ele escreveu esse livro, está sendo relançado agora, alguns anos atrás, antes que Trump aparecesse.

Jorge Pontual — O nome de Trump nem é mencionado no livro, mas são os eleitores deles. Você não pensou em Trump quando escreveu o livro, mas esses são os eleitores dele.
Michael Kimmel —
São. Quando eu escrevi o livro, que foi lançado em 2013, o nome dele nem foi mencionado, mas eu escrevi sobre os eleitores dele, sobre esse grupo. Eu estava interessado no motivo da raiva deles.

Jorge Pontual — Quem são esses homens brancos zangados?
Michael Kimmel —
A maioria de meus entrevistados são brancos de classe média que acreditam que são vítimas de discriminação reversa.

Jorge Pontual — E operários também, certo?
Michael Kimmel —
Sem dúvida. A maioria dos meus entrevistados de extrema-direita eram classe média baixa empobrecida. Ou seja, os pais deles eram agricultores ou tinham lojas que faliram quando o Walmart chegou, ou eram pequenos fazendeiros que perderam suas fazendas, ou trabalhadores especializados, como eletricistas e encanadores, ou trabalhavam em empregos protegidos por sindicatos na indústria pesada, como de carvão, aço ou automotiva. E esses são os empregos que estão desaparecendo nos EUA por causa das mudanças.

Jorge Pontual — Mas antes disso a classe operária era uma classe média, pois os salários eram bons, havia estabilidade de emprego, então era uma classe média que agora…
Michael Kimmel —
Foi rebaixada para uma espécie de proletariado. Suas habilidades não são mais valorizadas, eles não ganham o bastante para sustentar a família… Uma das características que achei mais interessante foi a importância que eles davam à sua masculinidade, que estava totalmente ligada à sua habilidade de sustentar uma família, de comprar uma casa, de ser capaz de sustentar a família. As esposas deles não deviam precisar trabalhar. 'Eu devo ser capaz de sustentar a família. Ser homem é isso'. Então, claro, o fato de seus salários terem baixado, de os benefícios e a aposentadoria terem sido cortados e de ainda não termos assistência médica adequada, tudo isso erodiu a capacidade de ele ser o único provedor da família. Até hoje, nos EUA, ser homem significa ser provedor.

Jorge Pontual — Por que essa sensação que eles têm de terem sido abandonados e até traídos pelo sonho americano, que era como um direito, um privilégio que eles tinham? E por que isso virou uma raiva de direita?
Michael Kimmel —
Isso nem sempre acontece. O populismo, a sensação de 'nós fomos prejudicados, coisas ruins foram feitas conosco, nós somos vítimas de um governo fora de controle, corrupto ou o que seja', nem sempre é de direita. A história registra populismos de esquerda também. Pense nos anarquistas espanhóis. Entre os populistas de direita há os fascistas italianos. E existe um populismo de esquerda nos EUA. Há Rush Limbaugh e Donald Trump de um lado e Bruce Springsteen e Woody Guthrie do outro. Existem as duas coisas. Bruce Springsteen é um poeta da classe operária branca, mas é de esquerda. A candidatura da Hillary Clinton é baseada em inteligência, experiência, preparo e em uma visão concreta de uma América onde todos são incluídos: homens, mulheres, brancos, negros, hispânicos e indígenas. Então o que determina se um grupo irá para a direita ou para a esquerda? Eu acho que é o racismo. Bruce Springsteen sempre foi ligado a pessoas negras. O melhor amigo dele era seu saxofonista e as apresentações dele eram manifestações políticas de solidariedade à classe operária. E você vai para a direita se é convencido ou seduzido a culpar os negros por seus problemas.

Jorge Pontual — Há também uma reação contra o feminismo, as mulheres no mercado de trabalho e a igualdade de gêneros. Qual o motivo disso?
Michael Kimmel —
Essa reação toma duas formas. Eles têm raiva das feministas porque elas levaram as mulheres a acreditarem que a vida real não era cuidar da casa e dos filhos. Eles têm raiva disso. Quando conversei com mulheres do Tea Party, mulheres que votaram em Trump, por exemplo, elas muitas vezes confirmavam o que os maridos diziam. Os maridos diziam: 'Eu devo ser capaz de sustentar minha família e comprar uma casa sozinho. Minha mulher não deve precisar trabalhar'. E as mulheres diziam: 'Isso mesmo. Eu quero cuidar da casa e das crianças. Quero ser mãe em tempo integral. Não quero ter de trabalhar'. Elas não gostam das feministas, que dizem que donas de casa não são nada se não trabalharem. E essas mulheres dizem: 'Eu quero isso. Quero que meu homem seja capaz de me sustentar, então vou apoiar um candidato que diz que meu homem será capaz de me sustentar'. De certa forma, elas votam como mães, não mulheres.

Jorge Pontual — Por isso Trump teve a maioria dos votos das mulheres brancas.
Michael Kimmel —
Uma pequena maioria, mas praticamente nenhuma negra votou nele.

Jorge Pontual — Eu vou falar de uma coisa que me interessa muito nesse livro, que é o fato de que o professor Kimmel, que é sociólogo, ele aborda toda essa questão através do estudo que vem do feminismo, que vem do estudo das mulheres e do estudo de gênero, como é que gênero é construído, como é que a masculinidade é construída. Para entender esse conceito de masculinidade, é preciso passar pelos estudos da mulher e de gênero.
Michael Kimmel —
A resposta mais simples para a pergunta é que foram as mulheres que descobriram o gênero. Nós falávamos da humanidade como um todo e nunca pensamos especificamente em mulheres e homens. E as mulheres, nos anos 1960 e 1970, disseram: 'Temos de estudar duas coisas. Temos de trazer a mulher de volta ao currículo. Temos de redescobrir as mulheres'. Porque elas tinham sido apagadas. E também temos de nos dar conta de que o gênero é uma das principais dinâmicas da sociedade, assim como classe, raça e sexualidade. É um dos temas dominantes da sociedade. É assim que tornamos as coisas iguais ou desiguais, como distribuímos recursos. É um elemento muito importante. As mulheres disseram isso e foram procurar as artistas e musicistas que tinham sido apagadas, mas alguns acadêmicos também pegaram essas ideias e disseram: 'Também temos de falar sobre os homens'. A masculinidade também faz parte dessa dinâmica. O fato de não a vermos faz parte da dinâmica. As pessoas brancas não pensam muito em raça. Os negros pensam. Heterossexuais não pensam em sexualidade. Gays pensam o tempo todo. Nós homens não pensamos em gênero porque não precisamos. Mas agora precisamos assimilar isso. Aprendemos com os estudos da mulher que precisamos estudar gênero. Então agora muitos departamentos de universidades americanas são de estudos da mulher e de gênero.

Jorge Pontual — No caso desses homens brancos zangados, há uma ideologia de masculinidade que ainda existe. Que ideologia é essa?
Michael Kimmel —
A ideologia é: 'Se eu respeitar as regras, se eu fizer a coisa certa, da forma como você me mandou fazer, terei direito a certas coisas, serei recompensado por isso'. Nem sei quantas vezes conversei com homens que disseram: 'Não entendo. Eu respeitei as regras, trabalhei duro num emprego que odiava, para um patrão imbecil, nunca faltei, paguei meus impostos, ajudei meus filhos com as tarefas e agora você me diz que não vou receber a promoção? Agora me diz que não vou conseguir pagar a faculdade dos meus filhos? Eu não teria feito nada daquilo!'. Essa é a raiva deles. E se eu lhe dissesse, naquele momento de desespero e angústia em que você perde sua pensão: 'Aqueles negros não perderam a pensão. Os imigrantes estão nos empregos que eram seus e eles têm aposentadoria'. Você vai dizer: 'Isso não é justo!'. E eu acho que esse sentimento de angústia e desespero das pessoas está sendo canalizado e manipulado para certos tipos de ideologias políticas. Não é inevitável.

Jorge Pontual — Achei fascinante a história do clube da luta, o fato de que eles não querem bater, mas apanhar, sentir a dor.
Michael Kimmel —
Depois que o filme [Clube da Luta] foi lançado, surgiram clubes de luta. E esses clubes são basicamente um esforço de criticar os termos da masculinidade moderna. No livro original, você mora e trabalha numa caixa, e vai ao trabalho em caixas. Tudo é protegido, nada é autêntico, tudo é falso. Você quer sentir algo real. E o clube da luta é real. São brigas de verdade. Não é falso, não tem regras. É tudo real. Você bate e seu adversário sente dor. E você sente dor, sente alguma coisa. Você vive num mundo tão acolchoado, tão protegido, numa bolha de algodão, que nunca sente nada real. Muitos integrantes desses clubes que entrevistei disseram: 'Para mim, é muito mais importante sentir, ser atingido, do que bater em alguém. Sentir dor, sentir algo de verdade. Eu quero ser capaz de sentir alguma coisa'. E é interessante. É muito comum que meninas adolescentes se cortem. Você sabe. Acho que a dinâmica é parecida. Elas tentam se entorpecer e usam os cortes para dizer: 'Eu quero sentir algo real'.

Jorge Pontual — O que esses brancos zangados veem em Trump?
Michael Kimmel —
Veem um cara sem nenhum medo de dizer o que pensa.

Donald Trump: “Precisamos proteger os empregos americanos. Precisamos garantir a segurança dos americanos. Vamos construir um muro, pessoal. Vamos construir um muro”.

Michael Kimmel — Não ligam para o fato de ele mudar de ideia toda hora. O que importa para eles é que Trump é alguém que diz o que pensa. Ele não se policia. Não está nem aí para o politicamente correto, fala o que quer, faz o que quer, usou seu status de celebridade para ter acesso a mulheres… Ele não se arrepende e eles veem em Trump um cara que tem tudo. Então não se importam que ele não seja político, que não seja um diplomata hábil, que viva mudando de ideia e diga coisas ridículas e completamente falsas. Eles não ligam porque, ao fazer isso, ele está dizendo: 'Não estou nem aí. O que me interessa é dizer o que eu quiser. Sigam-me'.

Donald Trump: “Não queremos mais que outros líderes e outros países riam de nós. E eles não vão! Fui eleito para representar os cidadãos de Pittsburgh, não de Paris”.

Michael Kimmel — Quanto perguntaram aos eleitores de Trump quando a América foi grande, a resposta foi a década de 1950, os anos Eisenhower, a era de maior tributação do século 20.

Jorge Pontual — Mas eles não sabem disso.
Michael Kimmel —
Pois é! Foi uma era de gastos públicos sem precedentes. A ajuda financeira aos soldados, o sistema de rodovias interestaduais, todas aquelas estradas, todas as escolas que foram construídas, toda a suburbanização do país começou no governo Eisenhower com financiamento federal. Foi o maior gasto de fundos públicos e dinheiro de impostos. Mas também foi uma era de domínio masculino inquestionável, interno e…

Jorge Pontual — Domínio masculino branco.
Michael Kimmel —
Exatamente. E, segundo a linguagem usada nos anos 1950, todos os outros 'conheciam seu lugar'. As mulheres conheciam seu lugar, os negros conheciam seu lugar, e acho que isso é importante.

Jorge Pontual — Mas e quando eles descobrirem que Trump não vai conseguir voltar no tempo?
Michael Kimmel —
Essa será a dúvida dos próximos dois anos: o que esse pessoal vai fazer quando perceber que ele lhes vendeu uma mentira, quando perceber que ele os enganou? Ele os ludibriou, pegou o apoio deles e os fez de bobos. Ele não tem como cumprir o que prometeu. A minha dúvida é: será que se virarão contra ele ou dirão: 'Ele está sendo impedido pelas políticas de Obama, pelos democratas, pelos republicanos liberais tradicionais, pela imprensa'.

Donald Trump: “A imprensa mentirosa tentou impedir que chegássemos na Casa Branca. Mas sou eu o presidente, e não eles”.

Michael Kimmel — Ele vive reforçando que essas são as forças que o estão impedindo de fazer pelos eleitores o que ele prometeu. Se isso der certo, não fará diferença para os eleitores.

Jorge Pontual — Mas a raiva ainda existirá.
Michael Kimmel —
Sem dúvida. Ainda existirá, porque eles não terão conquistado nada.

Jorge Pontual — E alguém pode se aproveitar disso.
Michael Kimmel —
Com certeza. Pode ser um populista de esquerda. Acho que Bruce Springsteen deveria concorrer.

Bruce Springsteen (entrevista ao Channel 4): “Nos últimos 40 anos, a desindustrialização e a globalização afetaram a vida profissional de muita gente. Os temas que importam às pessoas trabalhadoras não foram adereçados. Se amanhã eu não pudesse ser músico, e tivesse que encontrar outro trabalho, eu não tenho ideia do que faria. Estaria perdido”.

Jorge Pontual — Você diz no novo prefácio que se trata de uma última resistência. A composição da sociedade está mudando rápido. O que você quer dizer com 'última resistência'?
Michael Kimmel —
O Partido Republicano foi reduzido tentando buscar formas de evitar que as pessoas votem. Sua única esperança de vitória é evitar que as pessoas votem. A composição demográfica está totalmente contra a direita, porque, em 2048, seremos um país de maioria das minorias, não importa quantos imigrantes ilegais expulsemos. Seremos um país muito diferente. E meu otimismo vem do fato de que essa geração de 2048 já nasceu, já está aí. Então isso é inevitável. Não vai ser possível reverter isso. Então a minha dúvida é se esses caras zangados serão arrastados se debatendo e gritando para esse futuro inevitável ou se serão capazes de dizer: 'Precisamos nos adaptar a várias coisas para viver nesse novo mundo que nossos avós jamais teriam reconhecido'. Eis um fato para você: 60% dos estudantes de 11 e 12 anos de hoje trabalharão em empregos que hoje não existem. Nós temos de nos preparar para um futuro que mal imaginamos. Então esses caras… O carvão não é a resposta. Há mais homens americanos instalando painéis solares do que na indústria do carvão. Voltar ao carvão não é a resposta. A indústria metalúrgica se transformou tão radicalmente que não vão abrir outra siderúrgica em Pittsburgh. Então a dúvida não é se podemos voltar ao futuro, ou, melhor dizendo, não é se vamos conseguir avançar voltando ao passado, mas se vamos nos adaptar a um futuro inevitável. Essa é a dúvida. Não temos dúvida de que isso vai acontecer, mas como os homens vão se comportar?

Jorge Pontual — Eu vou terminar com uma frase que eu gostei muito do livro que ele diz que a igualdade de gêneros na verdade é muito boa para os homens. Por que a igualdade de gêneros é boa para os homens?
Michael Kimmel —
Acho que ela é boa por vários motivos. Primeiro: é o certo, é justo, é a coisa certa a fazer. Acho que isso é simples, mas também sabemos que a igualdade de gêneros é boa para os negócios. Sabemos que ela aumenta a lucratividade, aumenta o retorno do investimento, reduz o custo da mão de obra, a rotatividade, aumenta a produtividade e a satisfação no emprego. Em muitos aspectos, a igualdade de gêneros é a coisa certa a fazer e também a coisa inteligente a fazer. Mais do que isso, é bom para os homens, porque quanto mais igualitárias forem nossas relações, melhor nossos filhos se saem na escola, mais felizes nossas esposas são, mais felizes nós somos. Todos ganham.

Jorge Pontual — É a nova masculinidade?
Michael Kimmel —
Eu acho que é uma forma de sermos o tipo de homem que queremos ser. Se você conversa com millenials, eles têm exatamente o mesmo perfil, tantos os rapazes como as moças. Os jovens dessa geração têm o mesmo perfil. Eles querem ter bons empregos e ser ótimos pais. Aquela história de que somos de Marte e Vênus não faz mais sentido. Somos todos terráqueos, então as empresas e os países que perceberem que homens e mulheres jovens querem as mesmas coisas colocarão seus recursos nas mãos deles para permitir isso. As empresas que perceberem isso recrutarão e manterão as melhores pessoas porque atenderão às necessidades delas. Se você fingir que só as mulheres querem licença maternidade, não manterá os homens. Se fingir que as mulheres só se dedicam à família e não se interessam em equilibrar suas carreiras, perderá as mulheres. Então eu acho que, se você quiser recrutar e reter essas pessoas, a única forma de fazer isso é desenvolver políticas que permitam que elas tenham a vida que querem.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!