Embargos Culturais

De Eça a Arnaldo Antunes: a transposição das ideias e a arte que imita a vida

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de janeiro de 2018, 7h05

Spacca
Há um pequeno e intrigante trecho de um livro de Eça de Queirós (O Primo Basílio) que Arnaldo Antunes declama em apaixonante música que interpreta com Marisa Monte (Amor I Love You). O livro de Eça é uma das obras-primas da literatura realista portuguesa, equivalente ao que representa Madame Bovary (de Gustave Flaubert[1], que Sartre odiava[2]), na literatura realista francesa. O dueto Marisa Monte-Arnaldo Antunes, nessa canção, é um dos pontos mais sublimes de nossa música popular. A música emociona, assim como o livro de Eça (que virou série e filme) é de tirar o fôlego.

Essa transposição, de Eça a Arnaldo Antunes, também ilustra aspecto desafiador da circulação das ideias, o que do mesmo modo ocorre no Direito, a exemplo da transposição de institutos jurídicos, num mundo no qual não há um esperanto normativo. O modelo transposto se transforma. A medida provisória, copiada da Itália, virou entre nós uma forma disfarçada de decreto. O amigo da corte, do Direito norte-americano, virou entre nós o amigo da parte, como lemos na excepcional tese de Damares Medina[3]. Isso sem falarmos na Teoria do Domínio do Fato ou na formulação doméstica da delação premiada. Mantemos o nome, alteramos a essência.

Os antropólogos ingleses contam uma anedota que ilustra essa passagem de produtos culturais. Contam que nas ilhas Trobriand (atóis coralinos que desenham um pequeno arquipélago na região marítima oriental da Nova Guiné) os nativos resolviam todos os problemas, pequenos e grandes, domésticos e políticos, na base da violência. Com muita paciência, os ingleses ensinaram os nativos a jogar críquete, que seria utilizado a partir de então para dirimir as disputas. Não mais matariam: teria razão o vencedor desse aristocrático esporte. Alguns anos depois, quando retornaram, os ingleses colheram duas notícias, uma boa, outra má. A boa: todos os problemas eram resolvidos na base do críquete. A má: as regras do jogo foram mudadas, uma pequena falta era penalizada com a pena de morte ou com a mutilação de um órgão…[4]

No romance de Eça, alguns de nós nos encantamos com a personagem principal, Luísa, cujo “cabelo louro um pouco desmanchado, com um toco seco do calor de travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea (…)”[5]. Outros abominam essa heroína maldita, e a reação original negativa brasileira ao romance (especialmente com Machado de Assis) é indicativa dessa falta de compreensão[6]. Luísa é um pomo da discórdia literário, exatamente como Emma Bovary, Capitu, Gabriela e Desdêmona.

O objetivo de Eça era trucidar com a estética romântica e atacar os excessos do romantismo. Luísa era uma voraz leitora de A Dama das Camélias (Alexandre Dumas Filho), dos livros de Walter Scott (Ivanhoe) e tutti quanti. Entorpecida pelas heroínas românticas, se imaginou uma delas, o que foi potencializado pelo vazio existencial da vida que levava, pela confiança extrema do marido (Jorge) e pela canalhice desses aproveitadores de plantão, que exploram indecisões e incertezas. Geralmente se dão mal. Eça inverteu a lógica da vida real: e é essa técnica argumentativa a fonte de tanta surpresa. Antunes, por sua vez, inverteu a lógica do trecho original: e é essa técnica poética a fonte de tanto apuro estético.

Vamos ao enredo. Retornando do Brasil (e pode haver aí algo também de brasilofobia), onde talvez fizera fortuna, depois da quebra do pai, Basílio procurou a prima, casada com um engenheiro de minas, Jorge. Luísa, cortejada, apaixonou-se, entregando-se aos encantos do primo, que, no entanto, apenas planejava incluí-la em sua coleção de conquistas[7]. Chegou a locar um local infecto e imundo, por economia (Basílio era um sovina), que metaforicamente chamava de Paraíso, onde se encontravam. Juliana, a empregada amarga (e aí um inegável exemplo de luta de classes), colheu do cesto de lixo um rascunho de carta de Luísa para Basílio. A partir de então passou a chantagear a patroa, a qual passou a tratar como empregada.

Consumada a conquista, Basílio seguiu para Paris, pouco se importando com Luísa. Jorge, o marido traído, retornou para o lar, depois de uma viagem de trabalho. Luísa, em desespero, revelou a estória para um amigo do marido, que tomou de Juliana todas as cartas e provas que havia. Juliana então morreu. Luísa passou a viver um delírio contínuo, não aceitando o que fizera, arrependida, com o casamento moralmente desfeito. Jorge interceptou uma carta de Basílio para Luísa, guardando-a, por duas semanas, e ao final revelando à mulher que de tudo sabia. A saúde de Luísa foi mais uma vez fortemente abalada. Ainda que perdoada por Jorge, talvez nesse momento uma alma nobre e santa e desarmada, que poucas há no mundo, Luísa sucumbiu a uma pneumonia. Eça argumentou que leitoras frívolas de livros românticos podiam se ressentir de malícia e de capacidade analítica[8].

É nesse contexto repleto de tensão que Eça explicou como Luísa recebeu uma carta de Basílio, e é esse o texto recitado por Arnaldo Antunes:

“(…) Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido: sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”[9].

Segundo Eça, Basílio “compusera aquela prosa na véspera, no Grêmio, às três horas, depois de (…) um bife, dois copos de cerveja e uma leitura preguiçosa da Ilustração”[10]. Ao terminar a carta, “pedira mais cerveja, e levara a carta para fechar em casa, num envelope com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito”[11]. Luísa não tinha essas informações; não sabia que a carta era passo de um golpe, de um artifício que se assemelha a uma fraude.

Colocado nesse contexto, o excerto de Eça perde um pouco do glamour que conta quando lido isoladamente. No entanto, e aqui a genialidade de Arnaldo Antunes, tomado universalmente, como fragmento de uma prosa para um auditório universal, tem-se, nas linhas do texto sublimemente declamado, a descrição mais próxima da sensação de se sentir amado. É nesse ponto que Eça e Antunes nos provocam para que respondamos se de fato a arte imita a vida. E é nesse ponto que Eça e Antunes transformam a catástrofe em poesia.


[1] Madame Bovary é um das obras mais densas e importantes do cânon literário ocidental. Entre seus admiradores contam-se Baudelaire, Banville, George Sand, Lamartine, Zola, Bourget, Proust, René Dumesnil, Auerbach, G. Poulet, J. P. Richard. Flaubert foi o grande mestre de Eça de Queirós. Conferir VERÍSSIMO, José, Homens e Coisas Estrangeiras, 1899-1908, Campinas: Topbooks, 2003, pp. 227 e ss.
[2] Conferir, ROWELEY, Tête-à-tête, Beauvoir et Sartre, um pacte d’amour, Paris: Bernard Grasset, 2006, p. 304. Conferir também, especialmente, os três volumes que Sartre escreveu sobre Flaubert, O Idiota da Família, editado pela L&PM.
[3] Amigo da Corte ou Amigo da Parte?, Amicus Curiae no Supremo Tribunal Federal, dissertação de mestrado defendida no Instituto Brasiliense de Direito Público-IDP, orientada pelo professor Paulo Gonet Branco. O trabalho foi posteriormente publicado em livro pela editora Saraiva.
[4] Na literatura jurídica brasileira, a passagem também é encontrada no livro de Direito Administrativo de Marçal Justen Filho, bem a propósito da ingenuidade que decorre de copiarmos institutos de outras culturas, jurídicas até.
[5] QUEIRÓS, Eça de, O Primo Basílio, in Obras Completas, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, vol. 1, p. 555.
[6] Por todos, conferir, NASCIMENTO, José Leonardo do, O Primo Basílio na Imprensa Brasileira do século XIX – estética e história, São Paulo: Editora Unesp, 2008.
[7] Também foram namorados na infância. Jorge não sabia disso.
[8] A expressão é de Lúcia Granja, ao comentar o Primo Basílio em GLEESON-WHITE, Jane, 50 clássicos que não podem faltar em sua biblioteca, Campinas: Verus, 2009, p. 112.
[9] QUEIRÓS, Eça de, O Primo Basílio, cit., p. 664.
[10] QUEIRÓS, Eça de, O Primo Basílio, cit., loc. cit.
[11] QUEIRÓS, Eça de, O Primo Basílio, cit., loc. cit.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!