Opinião

PGR erra ao questionar autonomia de partidos políticos

Autor

  • Cristiano Vilela

    é advogado membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SP e da Comissão de Estudos de Direito Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) sócio de Vilela Silva Gomes & Miranda Advogados.

5 de janeiro de 2018, 5h29

A Procuradoria-Geral da República moveu nos últimos dias do ano, Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal requerendo a imediata suspensão do artigo 1º da Emenda Constitucional 97/2017, a qual garante aos partidos políticos ampla autonomia para definir livremente a duração de seus órgãos partidários permanentes ou provisórios.

Segundo a peça, de lavra da chefe da PGR, Raquel Dodge, "ao entregar aos partidos políticos autonomia para fixar a duração de seus órgãos provisórios, a Emenda afronta limite imposto ao constituinte de reforma de respeitar os princípios fundamentais impostos pelo constituinte originário, como o do Estado democrático de direito".

Sustenta ainda que a norma fere a cláusula pétrea explícita do artigo 60, § 4o, II e IV da Constituição, "na medida em que deturpa o sistema de direitos fundamentais de ordem política, propiciando entraves injustificáveis ao direito de filiados de participar de eleições, além de restringir a efetividade do caráter nacional que os partidos políticos devem ter e de frustrar o direito fundamental da cidadania a que os partidos se propõem ao seu sufrágio sejam concordes com o sistema democrático também na sua estrutura e no seu modo de agir".

Ao analisar o texto e a integral justificativa da ação, vemos muito boa vontade por parte da PGR e o desejo expresso de se criar mecanismos democráticos ao exercício da atividade partidária. Contudo, a declaração de inconstitucionalidade não deve ser utilizada meramente como um mecanismo introdutor de boas ideias ou de resguardo de práticas louváveis, mas deve-se pautar exclusivamente na eventual incongruência entre a norma vigente e a estrutura Constitucional.

Nesse sentido, se promovermos uma análise constitucional da norma em apreço, seguramente concluiremos que não há qualquer inconstitucionalidade, vez que o dispositivo criado pelo legislador originário já vinha no sentido de emprestar ampla autonomia aos partidos políticos, no sentido de se organizarem da forma como lhes aprouvesse.

O texto original estabelece que "é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana” e observados o caráter nacional, a proibição de recebimento de recursos externos, a prestação de contas à Justiça Eleitoral e o funcionamento parlamentar nos termos da lei.

Em seu § 1º dispõe ainda que "É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária".

Note-se que o Constituinte originário consignou a ampla liberdade de organização partidária, com vasta autonomia para organizar sua forma de estruturação interna, seus trâmites organizacionais e de critérios de escolha de dirigentes e candidatos. Isso se coadunada claramente com os clamores de liberdade do período Constituinte, após duas décadas de regime militar.

O Constituinte originário em momento algum ousou adentrar às especificidades da organização partidária, pois buscou a liberdade mais ampla possível à organização das agremiações. Não por outro motivo, consignou de forma expressa os únicos limites a essa autonomia, sendo que em momento algum se trata do estabelecimento de cláusula democrática interna.

Outras Constituições, como a espanhola, de 1978, tiveram essa preocupação. Seu artigo 6º, no âmbito da definição dos partidos políticos como mecanismo de expressão do pluralismo político e manifestação da vontade popular, estabelece que "… su estructura interna y funcionamiento deberán ser democráticos".

Note-se que os espanhóis de fato expressaram a condição democrática para a organização partidária, devendo, portanto, os estatutos das organizações partidárias respeitar essa limitação e conter critérios que garantam essa forma de organização.

Trata-se de preocupação louvável esta estabelecida pelo constituinte espanhol e oxalá os constituintes brasileiros de reforma venham futuramente a criar mecanismos nesse sentido, o que seria salutar para a democracia e fortalecimento das agremiações políticas.

Entretanto, no afã de querer ver real uma medida muito valiosa, não se pode aceitar a falácia de que o não estabelecimento de elementos democráticos na organização interna das legendas seja inconstitucional. Pode ser indesejável, recomenda-se seja inclusive rechaçado por eleitores e eventuais filiados, mas jamais pode-se afirmar que se trata de mecanismo inconstitucional.

Interpretar a definição constitucional de acordo com a conveniência do momento histórico é um erro crasso que gera insegurança e ineficiência a aplicação do arcabouço legislativo vigente. O Supremo não pode ceder à tentação de chamar para si a responsabilidade de Constituinte, ao promover interpretações extensivas, que, apesar de bem-intencionadas, ferem a valiosa separação entre os Poderes, elemento fundamental a organização do Estado brasileiro.

Autores

  • Brave

    é advogado especialista em direito eleitoral, sócio do escritório Vilela & Silva Gomes Advogados, doutorando em Direito Constitucional e coautor de Elementos de Direito Eleitoral (Ed. Suplegraf), entre outros.

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