Opinião

Discussão sobre déficit previdenciário exige que Estado mostre números que desviou

Autor

  • Wagner Balera

    é professor titular na Faculdade de Direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e livre-docente e doutor em Direito Previdenciário pela mesma universidade.

4 de janeiro de 2018, 7h50

Quem tiver o trabalho de consultar o jornal do dia 16 de dezembro de 1998 verificará que um economista eminente, pai do plano real, exigia que fosse implantada, quanto antes, uma reforma previdenciária.

O curioso, nisso tudo, é que o dia 15, isto é, o dia anterior, fora o da promulgação da Emenda Constitucional 20 com a qual tinha sido aprovada a primeira das reformas previdenciárias. E, depois, ocorreram mais duas, em 2003 (Emenda 41) e em 2005 (Emenda 47). Podemos esperar, então, que a reforma cuja discussão ocorreu neste ano com maior intensidade e que, embora anunciada, ainda não se concretizou, não vai encerrar o assunto. Será mais uma etapa de transformações importantes que o sistema de proteção social terá que implantar nos próximos decênios.

É que o chamado modelo alemão, que Bismarck instituiu no final do século XIX, assim como o modelo inglês, engendrado por Beveridge, este mais de cunho assistencial, não respondem mais às exigências da sociedade de risco e da era pós-moderna.

É bem verdade que o modelo inglês intenta conjuminar a seguridade social com a economia e, destarte, fomenta o pleno emprego, sem o qual nenhuma reforma poderia dar certo, nos padrões em que foram delineadas as bases de financiamento do sistema.

Ocorre que o esquema contributivo da seguridade social não se sustenta sem incremento dos postos de trabalho, porque seu pressuposto é que a geração presente financie a previdência da geração pretérita, esperando que as gerações futuras também se integrem a essa cadeia de solidariedade que o Direito torna compulsória.

É evidente, porém, que foi instaurado um conflito intergeracional, ainda que implícito, quando os casais resolveram reduzir o número de filhos e que esse grupo futuro menor, ainda que todos tivessem emprego, não teria como dar suporte financeiro ao grupo antecedente.

Este ano foi marcado por uma reforma trabalhista cujo mote manifesto é a modernização. Mas, se as gerações mais novas buscarem refúgio na informalidade, e não nas menos rígidas amarras do contrato de trabalho, o futuro imporá uma conta maior a programas assistenciais.

Não dá para ver a previdência, nem a seguridade, como setores isolados da vida econômica do país.

Se for imposta uma idade mínima para a aposentadoria — vetor sem o qual não se pode falar de uma verdadeira reforma previdenciária — quem garante que o mercado seguirá mantendo em seus quadros o trabalhador que deve ficar até os 65, 67 e 70 trabalhando? Sim porque qualquer idade mínima deverá ser posta em termos crescentes e, tanto quanto haja aumento da longevidade, deve ser elevada essa idade, como resultou adotado nos países que, mais previdentes, já realizaram suas reformas nas duas décadas passadas.

Outro vetor que deve ser considerado é o da permanência daqueles que se aposentam nos postos de trabalho, impedindo que as novas gerações venham a ocupar esses lugares.

É impressionante que o Estado seja um contumaz empregador de aposentados e reformados. Ele, Estado, que deveria ser o primeiro a jamais exercer essa prática contrária à lógica do modelo previdenciário em vigor.

Muito tem se discutido sobre o impropriamente chamado déficit previdenciário. Mas esse debate só deveria ser levado a sério se o maior devedor do sistema previdenciário, que é o Estado, apresentasse a uma auditoria idônea os números do que desviou ao longo da história (mais particularmente se abrisse os desvios ultimamente denominados desvinculações das receitas da União – DRU).

Evidentemente os valores desviados não voltarão jamais aos cofres da seguridade social. Mas melhor ficariam definidas responsabilidades históricas que o futuro saberia julgar melhor.

O atual debate é falho porque escolheu um bode expiatório errado: o servidor público. Este não tem culpa por ter sido, em virtude do respectivo ingresso por concurso, encaixado em um regime próprio melhor estruturado e que melhor protege em termos de valores de benefícios já obtidos. E ao proporem mudanças nesse regime os atuais ocupantes de postos de mando no Estado estarão retirando das funções públicas o seu melhor atrativo. Será que, no futuro, poderemos contar com quadros funcionais capacitados para as complexas tarefas de gestão do patrimônio público?

Outro ponto que até agora parece estar fora do debate da reforma é o do atrelamento dos reajustes dos benefícios às majorações do salário mínimo.

Ora, como pode ser constatado pelos dados oficiais, nenhum movimento de arrecadação acompanha a inflação. Assim, a cada ano, o custo dos aumentos concedidos aos benefícios amplia a diferença entre a receita e a despesa da conta Previdência. E, nessa toada, a conta Previdência não fechará nunca!

Por conseguinte, uma reforma para valer terá que engendrar mecanismo específico de reajustamento de benefícios, atenta à diretriz constitucional da irredutibilidade, isto é, de manutenção do poder aquisitivo dessa prestação pecuniária, que não seja amarrada ao custo do trabalho.

A reforma anunciada deve ser mais um passo rumo à futura unificação do regime básico – o assim chamado regime geral de previdência social – como aquele que irá proteger todos os trabalhadores, os dos setores público e privado, em igualdade de condições, deve deixar bem claras as regras de transição, assim como as garantias constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito.

Uma reforma como a anunciada irá impor sacrifícios a todos. Nenhum dos privilégios pode deixar de ser discutido com seriedade, e colocado diante do povo o dado concreto e transparente, inteligível ao homem comum. Quanto se gasta com quem; quanto se arrecada para essa finalidade. Quem está pagando muito ou pouco e quem não paga nada.

Eis o que podemos esperar para os próximos anos. Um debate sério e transparente que leve em conta as profundas desigualdades existentes no Brasil. A seguridade, nos seus três segmentos – saúde, previdência e assistência – é o mais poderoso instrumento de concretização da justiça social engendrado pelo constituinte.

Que não fiquemos só nos anúncios. Urge reformar o sistema para torná-lo mais justo e equitativo.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Direito Previdenciário, professor titular na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de diversos livros em matéria previdenciária. Diretor dos Cursos de Pós-Graduação de Direito Previdenciário da PUC-SP.

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