Ideias do Milênio

"A Bíblia está cheia de incentivos para vermos melhor a existência humana"

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4 de janeiro de 2018, 12h01

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Entrevista concedida pelo escritor e tradutor português Frederico Lourenço à jornalista Leila Sterenberg para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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Um intelectual português que escolheu se dedicar ao grego. Até aí, nenhuma grande novidade. Corajoso, ele traduziu direto do grego clássico para a nossa língua a Ilíada e a Odisseia, duas obras tão importantes que até hoje são referências para muito daquilo que a nossa literatura, o nosso teatro e o nosso cinema produzem. Só que o tal intelectual português não ficou só nisso. Ele foi nos originais de um livro sem o qual aquilo que a gente chama de cultura ocidental não existiria. É o sonho de qualquer tradutor, e na fonte de um texto que ao longo de milhares de anos vem sendo lido por milhões e milhões de pessoas: nada menos que a Bíblia. Frederico Lourenço trouxe para a língua portuguesa o Novo Testamento e a chamada Bíblia dos 70, ou Septuaginta, a versão do Antigo Testamento em grego usada pelos primeiros cristãos. Por esse trabalho hercúleo, e a citação do herói grego é de propósito, Lourenço recebeu o Prêmio Pessoa, de muito prestígio em Portugal. Ele também reuniu nesse livro comentários sobre a tradução. Ele compara os evangelhos, aponta falhas em traduções anteriores e faz reflexões interessantíssimas sobre Jesus. Ele não é judeu nem cristão, mas considera a Bíblia o mais fascinante de todos os livros.

Leila Sterenberg — Você não é religioso e diz que não acredita que a Bíblia traga sem erro a palavra infalível de Deus, mas diz que acha que ler a Bíblia é um tempo infalivelmente bem empregue, para usar suas palavras. Por quê?
Frederico Lourenço —
Porque a Bíblia é um espelho da existência humana, da realidade humana, de tudo aquilo que o ser humano tem de bom e de mau também. A Bíblia é um conjunto de narrativas que nós encontramos das coisas que o ser humano foi capaz de fazer, desde genocídios, que estão fortemente descritos no Antigo Testamento, até aquilo que é o evento central do Novo Testamento, que é a crucificação de um homem inocente que não fez mal a ninguém. Mas, mesmo para uma pessoa que não acredite em Deus, a Bíblia está cheia de… Enfim, incentivos positivos para vermos a existência humana de uma forma melhor, isso… Tem essa mensagem que eu acho que é para todos os séculos, que é a mensagem de que se fizermos bem aos outros estaremos fazendo bem a nós mesmos.

Leila Sterenberg — Você diz que não se deve ler a Bíblia imaginando metáforas, alegorias, relativizando o que está ali. Mas como ler a Bíblia, à letra, como se diz em Portugal, ou ao pé da letra, como se diz no Brasil, e fazer uma leitura crítica ao mesmo tempo?
Frederico Lourenço —
Minha ideia é mais de propor que os autores que escreveram os diferentes textos que integram a Bíblia, quando eles escreveram esses textos, não tinham a intenção de que as suas frases fossem lidas de uma forma alegórica. 

Leila Sterenberg — Eu queria falar sobre a Bíblia que a gente veio usando no Brasil, e ainda usa em Portugal também, qual é a origem dela?
Frederico Lourenço —
Quando eu nasci em Portugal, aquilo que era mais frequente, que as pessoas católicas liam, seria uma tradução para português da versão latina da Bíblia, feita por São Jerônimo no século IV, a chamada Vulgata, que era a tradução da Bíblia que os católicos aceitavam como teologicamente válida e diferente dos protestantes, que no século XVI começaram essa grande revolução na leitura da Bíblia que foi voltar ao texto hebraico do Antigo Testamento. Diríamos que os protestantes deram esse primeiro passo tão importante há 500 anos.

Martinho Lutero foi um dos protagonistas da Reforma Protestante. Ele traduziu a Bíblia para o alemão, a fim de tornar o livro mais acessível. As traduções da Bíblia, a partir do século XVI, foram por muito tempo condenadas pela igreja de Roma.

Frederico Lourenço — Os católicos ficaram ainda muito ligados à sua Bíblia tradicional na versão latina e só no século XX, final do século XX, é que começaram a abrir um pouco essa perspectiva e atualmente as Bíblias católicas seguem, pelo menos em termos das línguas a partir das quais são traduzidas, seguem esse mesmo modelo da Bíblia protestante.

Leila Sterenberg — É interessante pensar que a Bíblia são várias Bíblias na verdade.
Frederico Lourenço —
Sim, sim. De certa maneira, se nós olharmos historicamente, sobretudo a questão do Antigo Testamento, porque o Novo Testamento é igual para todas as denominações cristãs, são sempre os 27 livros, foram escritos em grego, não há aí muito o que variar. O Antigo Testamento é que é diferente. É uma das razões pelas quais eu considero a Bíblia um livro tão fascinante e, enfim, um livro aberto, como é o título do meu livro, porque é um livro que permite muitas leituras e deve estar aberto porque devemos lê-lo.

Leila Sterenberg — Tem uma coisa que me chamou muito a atenção nesse livro do Frederico que é quando ele fala da referência a irmãos de Jesus, isso nos quatro Evangelhos. E ele diz que a palavra em grego que é usada não dá margens à dúvida, não é uma figuração, não está se falando de outros seres humanos, de amigos, de primos, seriam irmãos mesmo, não é?
Frederico Lourenço —
Sim. A palavra grega adelfós, que significa irmão, é uma palavra cujo sentido é irmão que tem a mesma mãe. Portanto, nem sequer admite outra possibilidade… Essa questão, claro, para um historiador não tem qualquer problema, portanto Jesus tinha irmãos e irmãs, isso também é proferido nos Evangelhos, mas sobretudo a partir do século IV, quando se começou a fixar muito a doutrina da virgindade perpétua de Maria, houve uma tentativa de ler esse termo como significando primo ou parente próximo, qualquer coisa, porque não queria se admitir que do casamento de Maria e de José tivessem nascido filhos ou filhas que fossem irmãos ou irmãs reais de Jesus.

Leila Sterenberg — O Frederico Lourenço diz que ler os Evangelhos traduzidos é como ver em preto em branco um filme que foi rodado para ser visto colorido, porque a gente perde muita nuance, muita sutileza. E tem um exemplo que diz respeito ao Pai-Nosso, que a gente considera ali ponto pacífico, a oração do Pai-Nosso todo mundo conhece, até quem não é católico, só que não é bem assim, você fala em diferenças, por exemplo, no uso do verbo. O imperativo em grego tem duas formas, não é isso?
Frederico Lourenço —
O que é curioso em relação ao Pai-Nosso é que aparecem duas versões do Pai-Nosso no Novo Testamento: uma no Evangelho de Mateus e outra no Evangelho de Lucas. E os verbos são conjugados diferentemente nas duas versões do Pai-Nosso. Em um caso dá ideia da ação contínua, e no outro caso dá ideia da ação imediata, portanto, “o dar o pão de cada dia”, portanto dar agora, já, hoje, ou então de dar continuamente ao longo da vida.

Leila Sterenberg — Eu queria falar dessa fusão entre uma fé judaica em um Deus único e uma ideia de racionalidade grega, de universalidade, que é algo diferente daquilo de que trata o judaísmo, que se fundem em uma coisa nova. Tem um filósofo brasileiro, Márcio Tavares d’Amaral, que faz um estudo muito interessante disso e está publicando uma história da Filosofia ocidental, e ele parte exatamente disso, dessa novidade, até filosófica, que surge com o cristianismo e que na verdade nos estruturou enquanto civilização ocidental.
Frederico Lourenço —
Sim, eu penso que essa fusão se deu um bocadinho mais tarde do que o primeiro século do cristianismo, a fusão cristianismo-judaísmo já começa aí, mas o componente de racionalidade grega e de todo… Enfim, penso que vai entrar mais a partir do século III, século IV depois de Cristo, aí e de fato os filósofos e os teólogos pensadores cristãos, Santo Agostinho é um exemplo muito óbvio, tentam incorporar na sua visão do que é o cristianismo o melhor, segundo eles, portanto sobretudo Platão e outros filósofos assim, que ajudam muito a estruturar e alicerçar a teologia cristã, porque o cristianismo foi o movimento que mexeu e inicialmente sem Teologia, digamos assim, o que nós lemos no Novo Testamento ainda estamos quase no grau 0 da Teologia.

Leila Sterenberg — Deus criou o homem à sua imagem e semelhança ou foi o contrário?
Frederico Lourenço —
Isso depende de quem dá a resposta, não é? Um historiador ateu, e eu não sou ateu, portanto… Um historiador mais objetivo talvez pudesse falar dessa questão de o homem ter tendência para criar Deus à imagem daquilo que consegue conceber. E é uma das razões pelas quais eu digo sempre que acredito em Deus, mas não sei explicar por que e que é uma criança irracional, porque eu não consigo de forma racional explicar aquilo que eu acho que possa ser Deus, razão pela qual eu acredito em Deus. Claro que a resposta da fé será com certeza o que está na Bíblia, que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança e o que vale é isso.

Leila Sterenberg — E para você como agnóstico, Deus é o da Bíblia ou não, caso ele exista?
Frederico Lourenço —
Muitas vezes o Deus da Bíblia parece ser um Deus em que é difícil acreditar, eu tenho muita dificuldade em acreditar no Deus que faz muitas coisas… Acho que a Bíblia nos dá uma intuição, eventualmente de outras facetas de Deus, e que encontramos Bíblias gregas até 80 livros, nem todos os livros nos dão a mesma imagem de Deus, alguns deles dão uma imagem de Deus que eu respondo positivamente, e outros definitivamente não.

Leila Sterenberg — Qual é a diferença fundamental entre a tragédia grega e a tragédia de Jesus?
Frederico Lourenço —
Eu diria que no caso da tragédia grega as pessoas sofrem fatos trágicos por sua própria culpa, porque mesmo que essa culpa não seja voluntária, mas é o caso daquela lógica de as pessoas terem sempre de enfrentar as consequências dos seus atos e as coisas terríveis que acontecem, as mortes, tudo, em consequência disso. A tragédia de Jesus é uma tragédia absolutamente contrária a isso, é uma tragédia… Enfim, a morte de alguém que não teve culpa de nada, ou seja, não fez nada que merecesse o castigo que acabou por ter. Quando nós pensamos esses grandes heróis da tragédia grega, vemos que mesmo que involuntariamente… Hércules matou os filhos todos, mas involuntariamente, para esclarecer um ato terrível e tem que ter consequências óbvias, os filhos, a mulher e a família, em um momento de loucura em que não sabia o que estava fazendo. O caso de Jesus vemos a narrativa de alguém que nunca, em nenhum momento, fez qualquer coisa que merecesse esse fim trágico, esse castigo terrível que ele teve que sofrer. É um desespero também quase que assustador do que é a vida humana.

Leila Sterenberg — Você traduziu a Ilíada e a Odisseia e a gente tem ali em Ulisses aquele personagem talvez fundador dessa trajetória, dessa jornada do herói que retorna depois de uma experiência absolutamente transformadora, no caso a Guerra de Troia. Jesus também tem essa jornada do herói, digamos assim?
Frederico Lourenço —
Não tem da mesma maneira. Tem aquilo que nós podemos talvez aproximar seriam os 40 dias no deserto, esse jejum de 40 dias, e eu penso que esse episódio é mostrado pelos evangelistas como sendo um momento de transformação também. Curiosamente, quando eu leio Odisseia, a minha sensação é que Ulisses, por muitas coisas que ele tenha sofrido, ele não está tão apto a se transformar enquanto nós poderíamos pensar, porque o Ulisses da Odisseia do princípio até o fim é sempre o mesmo personagem, é sempre com as mesmas características. Quando perguntam muitas vezes 'qual é o seu herói preferido da literatura grega?', 'Ah, é Jesus Cristo', é fácil porque está em um texto que foi escrito em grego, que é o Novo Testamento, e acho uma figura muito mais interessante do que qualquer uma das figuras da tragédia ou da epopeia grega antiga. Isso é a tarefa da minha vida também, e quando eu acabar a tradução da Bíblia, uma das coisas que eu quero mesmo fazer é escrever um livro sobre Jesus, vai ser o meu grande projeto depois dessa empreitada, como nós dissemos em Portugal, de tradução da Bíblia.

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