Retrospectiva 2017

Cenário é desolador, mas houve uma boa notícia para o Direito Administrativo

Autor

  • Marcos Augusto Perez

    é professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e sócio-fundador do escritório Manesco Ramires Perez Azevedo Marques.

4 de janeiro de 2018, 8h05

Seria ótimo dizer, ao final de 2017, que o Direito Administrativo brasileiro “passa muito bem, obrigado!”, mas infelizmente não é isso o que pode ser dito. De fato, o processo de profunda desorganização institucional pelo qual o país atravessa, já iniciado há algum tempo, mas seguramente intensificado a partir do impeachment, não deixou imune o Direito Administrativo, pelo contrário, atingiu-o de frente e com grande intensidade.

O cenário a que chegamos neste final de ano, a bem da verdade, é quase desolador. As ferozes discussões no Supremo Tribunal Federal a respeito de tudo quanto há de relevante na esfera do Direito Constitucional (especialmente no terreno das liberdades e garantias fundamentais), em que pese estereotipar certa pluralidade na Corte Suprema, o que isoladamente seria um fator positivo, acabam por gerar a impressão de que o direito público não existe enquanto sistema de normas, que não se pode esperar coerência no trato jurisdicional das questões que são postas no Judiciário e, pior, que as decisões jurisdicionais dependem mais do humor, das “concepções políticas” e das relações pessoais ou do arbítrio dos magistrados, do que do Direito legislado ou criado a partir dos processos inerentes ao regime democrático, no chamado Estado de Direito.

O mau exemplo do STF tende, ademais, a se propagar, com a disseminação de órgãos de controle que abusam de suas competências e magistrados para quem a legalidade no exercício da jurisdição torna-se um mero obstáculo a ser superado, no afã da realização de objetivos alicerçados unicamente no imediatismo e na repercussão perante a opinião pública de suas decisões. Objetivos por vezes tão obscuros que se identificam muito mais com a expressão “justiçamento” do que com o conceito civilizado de Justiça.

No Brasil, da promulgação da Constituição de 1988 para cá, o Direito Administrativo teve uma trajetória bastante positiva. A Constituição conferiu ao Direito Administrativo e à Administração Pública, de maneira geral, numerosas e complexas missões, tais como as constantes do arigo. 3º da CF: (1) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (2) garantir o desenvolvimento nacional; (3) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (4) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Mesmo assim, pode-se dizer que, nos últimos 30 (trinta) anos, houve esforços contínuos dos poderes republicanos para que essas diretrizes, dentre tantas outras estampadas na Constituição, fossem realizadas.

A grande reforma dos serviços públicos federais, com a criação das agências e a edição de uma regulamentação, no mais das vezes, modernizadora das relações entre o Estado ou prestadores de serviço e os usuários; o estatuto das cidades, no tocante às questões urbanas; a lei de responsabilidade fiscal; as leis que regulamentaram as diversas formas de concessão e de parcerias público-privadas; a regulamentação das relações do Estado com o terceiro-setor; as políticas nacionais de recursos hídricos; de resíduos sólidos; de saneamento básico; as leis federais de processo administrativo e de acesso à informação são exemplos, dentre muitos e muitos outros, de forte engajamento do Executivo e do Legislativo em torno de uma agenda para a concretização dos objetivos constitucionais e para a construção de uma Administração Pública tão moderna quanto necessária para a efetivação dos direitos fundamentais contemporaneamente consagrados.

Porém, as movimentações políticas dos últimos anos colocaram o direito administrativo brasileiro em modo de espera. O “não fazer”, a omissão ou simplesmente o medo e a paralisia são os motes do administrador público dos dias que correm, neste final de 2017.

Com o Congresso Nacional totalmente voltado para as pautas de reforma macroeconômica e (des)estabilidade política, quase nada se produziu de verdadeiramente relevante para a agenda original, trintenária, de concretização dos objetivos constitucionais.

A falta de uma definição mais clara do papel institucional dos órgãos independentes de controle (tais como os Tribunais de Contas e o Ministério Público); a excessiva fixação de sanções discricionárias contra as autoridades administrativas e contra particulares que mantenham negócios jurídicos com a Administração (sanções que muitas vezes são fixadas de maneira desproporcional e cumulativa, como ocorrem nos casos de aplicação simultânea da lei de improbidade, da lei de crimes de responsabilidade e da lei anticorrupção); aliadas a uma falta ainda maior de precisão normativa na regulação do processo administrativo decisório, torna a vida do administrador público uma verdadeira “montanha russa”, para não dizer uma “roleta russa”, pois não há como prever, com segurança jurídica mínima, as consequências da tomada de decisões administrativas simples ou complexas. É como se estivéssemos em um mundo em que o administrador público pode, em tese, fazer qualquer coisa, de qualquer modo e sem qualquer critério, mas, ao mesmo tempo, em que tudo que ele venha a fazer possa, também de qualquer modo e sem qualquer critério, vir a ser questionado. Com uma legalidade frágil e flácida, o abuso de poder e o arbítrio passam a ser a tônica da atuação de todos os poderes republicanos que parecem travar uma funesta guerra entre si: uma estranha disputa pela primazia no cometimento do arbítrio e do abuso de autoridade.

Quem perde com esse estado de coisas? O cidadão, notadamente aqueles que têm direitos ou interesses a pleitear perante a Administração Pública. Dentre esses, perdem mais os cidadãos mais pobres, pois dependem mais das políticas públicas e da eficiência dos serviços públicos em sentido amplo. Mas perde igualmente a economia, o mercado, cujos negócios carecem de segurança jurídica, que se constata ser cada vez mais rara.

Nem tudo são trevas

Mas obviamente nem tudo são trevas! A realidade é sempre permeada de contradições derivadas da riqueza e da pluralidade da vida social e, em meio a um quadro tendencialmente bastante ruim, há manifestações excelentes da força do direito administrativo, as quais merecem ser propaladas e celebradas.

O Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, por exemplo, em uma decisão histórica, obrigou o município a cumprir a cláusula de reajustes de contratos que celebrara em exercícios passados. Por decreto o prefeito municipal proibira a aplicação de reajustes em contratos em convênios administrativos, rasgava, enfim, os contratos firmados.

O TCM/RJ, pelo acórdão dado no Processo 40/002224/2016, em outubro deste ano, deixou claro que as atuais circunstâncias da economia brasileira não podem servir de salvo-conduto para que o gestor publico atue contrariamente à lei e aos contratos.

Excelente notícia e excelente decisão! Não há como suportar que o Poder Público atue de má-fé em suas relações contratuais, contrate e não pague, sob o manto do interesse público, que nada tem a ver com esse tipo de comportamento, frise-se. O interesse público não é uma escusa para o descumprimento da lei e dos contratos! Brilhou o TCM do Rio de Janeiro, que decidiu de modo independente e com absoluta correção jurídica, ganharam a segurança jurídica e o direito administrativo.

Mas talvez a melhor notícia do ano para o direito administrativo tenha vindo do Congresso Nacional. É que, em abril de 2017, o Senado finalmente aprovou o PLS 349/2015, encaminhando-o para revisão da Câmara dos Deputados. Não é uma vitória definitiva, mas já é uma grande notícia.

O PLS 349/2015 – que hoje tramita na Câmara como PL 7448/2017 – deriva de uma contribuição dada pelos Professores Floriano de Azevedo Marques Neto (USP) e Carlos Ary Sundfeld (FGV) que embasou um projeto apresentado pelo senador por Minas Gerais Antonio Anastasia. Trata-se de um projeto que altera a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro e ataca de frente o problema da crescente insegurança jurídica nas relações normatizadas pelo direito administrativo.

Caso aprovado pela Câmara, passará a vigorar um conjunto de regras que tornará mais racional o exercício dos deveres pelo administrador público e pelas autoridades independentes de controle.

Exemplo disso está na motivação das políticas públicas e no exercício geral da discricionariedade tanto pela Administração como por seus controladores. Uma vez aprovado o PL, as autoridades deverão passar a descrever os aspectos práticos, as consequências esperadas, de suas decisões, o que representa um grande avanço em relação ao quadro atual em que “relatórios de impacto”, “estudos de custo-benefício” e outros mecanismos utilizados mundo afora são somente em casos excepcionais efetivamente realizados no Brasil.

No exercício do poder normativo ou na tomada de decisões que possam prejudicar relações jurídicas já consolidadas, tanto a Administração como os órgãos de controle passam a ter que, conforme o caso, modular os efeitos de sua decisão no tempo, evitando a retroação que prejudique terceiros de boa-fé.

A aprovação do PL, ademais, criará mecanismos de controle externo preventivos (como a ação declaratória de validade jurídica) e deixará explícito deveres que, muito embora sejam ínsitos ao sistema constitucional e ao devido processo legal em sua acepção administrativa, não são comumente observados seja pelo administrados público, seja pelos órgãos de controle: o dever de coerência nas decisões; a necessidade de procedimentos participativos de oitiva da sociedade e do mercado antes da edição de atos normativos.

Eppur si muove, como se nota! Em meio a um quadro nada alvissareiro, a aprovação pelo Senado do PLS 349/2015 representou – e, quiçá, a provação final pela Câmara do atual PL 7448/2017 representaria – um grande avanço para a modernização do direito administrativo entre nós. Mas não só: representaria um enorme ganho para o controle jurídico dos atos praticados pelos administradores públicos; representaria um avanço claro nas relações democrático-participativas entre a Administração e a sociedade; um enorme salto na proteção da segurança jurídica e da confiança legítima nos negócios da Administração e, por fim, majoraria a proteção jurídica dos direitos e interesses dos cidadãos.

Torçamos para que 2018 nos traga essa boa notícia!

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