Ideias do Milênio

"A tecnologia não destrói profissões inteiras, o que ela faz é mudar tarefas"

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3 de janeiro de 2018, 11h07

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Entrevista concedida pelo economista Daniel Susskind, professor das universidades de Oxford e Harvard, ao jornalista Silio Boccanera para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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Empregos desaparecem, no Brasil e em outros países. Isso ocorre não só porque a economia encolhe em tempos ruins, quando as empresas apertam o cinto para baixar custos e fazem cortes de pessoal. Empregos se vão também porque, desde a Revolução Industrial, máquinas tomam vagas de gente. O processo se acelerou em tempos mais recentes, porque agora são computadores cada vez mais poderosos, robôs e inteligência artificial que invadem o espaço do trabalho. Uma pesquisa conjunta das universidades de Boston e MIT, divulgado em 2017, revela que robôs tomaram 670 mil empregos de manufatura nos Estados Unidos entre 1990 e 2007. A tendência começa lá e se espalha pelo mundo. Pesquisas indicam que profissões de alta qualificação, de engenheiros a cirurgiões, vão mudar mais nos próximos 25 anos do que o fizeram em três séculos. Serão desmanteladas, diz Daniel Susskind, professor das universidades de Oxford e Harvard, ex-assessor estratégico do primeiro ministro Gordon Brown. Modificações a vir, mundo do trabalho são o foco de estudos de Susskind, assunto do seu livro O futuro das profissões, escrito com o pai, Richard. Eles mostram como a tecnologia vai transformar o trabalho de especialistas humanos e deixar sem emprego muitos profissionais qualificados. Talvez você.

Silio Boccanera — As pessoas naturalmente se preocupam com mudanças tecnológicas que podem levar ao desaparecimento de suas profissões, que serão substituídas por máquinas. Uns se preocupam demais, outros dizem que isso nunca vai acontecer no campo deles. Fale um pouco sobre as mudanças a curto e longo prazo.
Daniel Susskind —
Você tem razão. Uma das coisas inúteis que fazemos quando falamos do futuro do trabalho é discutir os diferentes empregos. Falamos de profissões como advogados, médicos, professores, contadores e por aí vai. E o que nós dizemos é que essa forma de pensar as profissões é inútil. É inútil porque nos incentiva a pensar no trabalho que as pessoas fazem como monolítico, como blocos de coisas indivisíveis; advogados fazem o que advogados fazem, contadores fazem o que contadores fazem. E isso não ajuda pelo exato motivo que você mencionou, porque, quando analisamos qualquer profissão, vemos que profissionais de todas as áreas fazem várias tarefas e atividades. E a tecnologia não destrói profissões inteiras de uma vez. Advogados, contadores ou médicos não vão chegar no trabalho e encontrar um robô sentado na cadeira deles. O que ela faz é mudar as tarefas e atividades que as pessoas realizam. E, a médio prazo, não achamos que haverá desemprego em massa, e sim redistribuição. É uma história na qual as tarefas e atividades que precisam ser realizadas para resolver os problemas que tradicionalmente só um médico, um advogado ou um contador resolveria serão bem diferentes e provavelmente serão feitas por pessoas diferentes.

Silio Boccanera — Quando as pessoas falam do futuro das profissões, imediatamente dão o exemplo de um médico: 'Ninguém substituirá a empatia e o toque humano de um médico'. Mas os médicos fazem muitas coisas que podem ser substituídas.
Daniel Susskind —
Chamamos isso de defesa de casos difíceis: você acha uma tarefa particularmente difícil automatizar dentre todas as tarefas que um profissional realiza e defende que, já que aquela tarefa não pode ser feita por outras pessoas ou por uma máquina, então necessariamente o restante do trabalho daquele profissional também está imune a mudanças tecnológicas. E sabemos que isso não é verdade. Certamente algumas tarefas estão fora do alcance atual das máquinas, mas há muitas que elas já fazem.

Silio Boccanera — O diagnóstico é uma delas.
Daniel Susskind —
O diagnóstico é interessante, porque é uma tarefa que muitos médicos achavam que estava fora do alcance da automação e hoje existem vários sistemas de diagnóstico sofisticados que oferecem diagnósticos de câncer, de transtorno de estresse pós-traumático, alguns problemas oculares. Há sistemas sendo desenvolvidos em vários domínios da Medicina que fazem a tarefa diagnosticada…

Silio Boccanera — Como o Watson, da IBM.
Daniel Susskind —
O Watson faz com vários tipos de câncer.

O computador IBM de grande porte chamado Watson ganhou fama vencendo os campeões de um programa de perguntas e respostas de conhecimento geral na televisão americana, mas sua aplicação principal hoje é na área de Medicina. Watson diagnostica câncer com mais precisão, acerto e rapidez do que oncologistas de longa experiência.

Silio Boccanera — As máquinas estão substituindo totalmente certas profissões, como, por exemplo, os robôs que montam carros. Seres humanos não são necessários. Eles montam o carro todo. Quando pensamos nos trabalhadores afetados por isso, é um choque e tanto, uma grande inquietação para eles.
Daniel Susskind —
Tem razão. E a distinção que você fez é importante. Na verdade, duas coisas preocupam em relação à tecnologia no mercado de trabalho: uma delas é o desemprego friccional. Mesmo se a tecnologia substituir as pessoas em seu trabalho, há outras oportunidades na economia, mas talvez as pessoas não tenham as habilidades para se recolocar imediatamente em outro tipo de trabalho. Alguém que foi demitido de uma montadora pode não ser capaz de aprender as habilidades necessárias para conseguir um emprego diferente no tempo que tem. Talvez não seja possível. Mas há um desafio mais preocupante. Digamos que as pessoas pudessem aprender qualquer competência que existe instantaneamente. Mesmo assim elas poderiam não encontrar trabalho, e esse não é um problema friccional, mas estrutural do desemprego tecnológico. E isso não é algo que já exista. Nossa maior preocupação no momento não é que não há empregos suficientes, mas o desequilíbrio: as pessoas não têm as competências para trocar de ocupação.

Silio Boccanera — Quando se pensa no cenário amplo, as profissões antigas vão desaparecer, mas novas vão surgir. Talvez, mas não para a mesma pessoa. Um cara de 50 anos que trabalha numa montadora e é substituído por um robô não vai aprender a trabalhar na área da saúde.
Daniel Susskind —
Ele vai ficar desempregado. Essa é uma forma de pensar: pode haver empregos para profissionais de saúde, mas aquela pessoa que trabalhava na montadora não vai ser capaz de aprender as competências necessárias.

Silio Boccanera — Temos algumas perguntas que vieram do público brasileiro, que nossos colegas consultaram.

Léo Tristão, diretor-geral do Airnb Brasil: Como é que você vê essa nova relação entre pessoas, empregadores, entre governos e essa nova força de trabalho que chega, talvez de uma maneira muito mais informal e fluída de ver o trabalho?

Daniel Susskind — Quando pensamos nas profissões, dizemos que estabelecemos um contrato fundamental, que é o acordo que fizemos com as profissões e com o Estado. E esse contrato fundamental, concebido no século 20, em alguns casos até no século 19, está começando a fracassar com essas mudanças tecnológicas. E acho que em muitos cenários temos de revisitar esse acordo, essas relações. E elas não serão apenas entre patrões e empregados ou patrões, empregados e Estado. Há relacionamentos na economia sendo desafiados pela tecnologia.

Silio Boccanera — É mais simples substituir o trabalho manual por robôs. Essas profissões desaparecerão mais rápido.
Daniel Susskind —
Um dos paradoxos da inteligência artificial é que algumas atividades que as pessoas acham mais fáceis de realizar com as mãos são as mais complicadas para as máquinas. Por outro lado, algumas atividades que as pessoas acham complicadas de realizar com a cabeça são as mais fáceis para as máquinas. Coisas como cortar cabelo ou cortar grama. Ainda não existem robôs que executam essas tarefas. O nome disso é paradoxo de Moravec. É um paradoxo em robótica, em inteligência artificial, e a observação é interessante. Não é o fato de uma tarefa ser cognitiva ou manual que interessa, não é o fato de ser feita com a cabeça ou com as mãos, o que importa é se ela é tradicionalmente rotineira ou não. O fato de uma tarefa ser tradicionalmente rotineira costuma ser um bom indício para sua automação. E muitas coisas que fazemos com as mãos não são nada rotineiras. Mas, quando máquinas realizam tarefas para os seres humanos, algumas tarefas não rotineiras estão sendo afetadas. O legado do século 20 é a ideia de que a tecnologia torna o trabalho de pessoas qualificadas mais valioso e importante.

Silio Boccanera — Também vemos a sociedade criando uma elite de pessoas muito qualificadas, como os trabalhadores do Vale do Silício, altamente qualificados naquela área, e um grupo imenso de pessoas que não estão preparadas para essa nova sociedade.
Daniel Susskind —
Vemos a fatia da pizza que vai para os trabalhadores em muitos lugares do mundo ficando cada vez menor. A fatia das receitas do capital está aumentando. Existe essa preocupação sobre a desigualdade entre quem tem capital e quem não tem. Mas há uma segunda preocupação: quando você analisa a fatia da pizza dos trabalhadores, também encontra desigualdades aí.

Entre 1979 e 2013
Renda dos americanos mais ricos (1%) aumentou 192%
A da classe média alta (19% da população) cresceu 70%
A dos 80% mais pobres subiu apenas 42%
Fonte: “Dream Hoarders”, Richard Reeves/Brookings Institution

Daniel Susskind — Certos grupos de pessoas que executam as tarefas que você mencionou, que têm tarefas e atividades que as tecnologias valorizam, como programadores do Vale do Silício, veem seus salários aumentarem muito, enquanto em muitos lugares do mundo os salários médios estão estagnados. Então essas duas fontes de desigualdade — capital e mão de obra, mas também dentro da mão de obra — são desafios.

Mais alunos participam dos cursos on-line da Universidade de Harvard em um ano do que a soma de todos os estudantes que já frequentaram a universidade em quatro séculos de existência. A inteligência artificial já criou softwares de computadores que aprendem sozinhos, avançam além do que alguém programou no início, absorvem novos dados, se corrigem. O mundo do trabalho tenta se recuperar desse choque tecnológico e cultural, mas nem sabe como. Não é fácil retreinar um veterano operário de montadora ou siderúrgica para atuar na área de saúde ou programar computador.

Silio Boccanera — Você deixa claro que devemos ficar de olho na qualificação dos empregados. Eles precisam ser constantemente atualizados, mas quem vai pagar por esse treinamento?
Daniel Susskind —
Não acho que seja algo que deva ser assumido apenas pelo governo. Acho que esse fardo deve ser compartilhado pelo Estado e pelas empresas responsáveis por essas mudanças. E acho que esse é um novo equilíbrio que deve ser alcançado.

Silio Boccanera — Em relação a uma perspectiva mais ampla desse treinamento, a educação em geral, como percebemos no passado, as pessoas se formavam, fosse só na escola ou na universidade, e imediatamente grande parte de suas qualificações se tornavam obsoletas.
Daniel Susskind —
O desafio da educação é triplo. O primeiro é o que ensinamos às pessoas que estão estudando e em início de carreira. No momento, em muitas profissões, não estamos treinando as pessoas para o mundo que existe hoje… Nem tanto para o mundo que existe, mas para o que existirá quando terminarem seu treinamento. Estamos treinando-as para serem profissionais do século 20, não do século 21. Então já começam mal. O primeiro problema é o que ensinamos, o segundo é como, nosso método de ensino. Uma das profissões que analisamos no livro é a da educação. As formas como ensinamos não mudaram muito nas últimas décadas. E o terceiro é com que frequência ensinamos. O modelo de educação de se acumular conhecimento para começar a carreira e a ideia de que isso basta para se estabelecer sem nunca mais se preocupar com treinamento também é um erro. Então, o que ensinamos, como e com que frequência. Cada uma dessas coisas precisa ser repensada.

Silio Boccanera — Alguém que está entrando na universidade agora. Digamos que você tenha um sobrinho ou um filho entrando agora na universidade. O que diria a ele? Com o que ele teria de ter cuidado?
Daniel Susskind —
Não deve fazer o que as máquinas já fazem bem, que é o que se passa muito tempo estudando na universidade, infelizmente. Tarefas rotineiras, como aprender uma grande quantidade de conteúdo e colocá-lo em prática com base em processos relativamente simples. As melhores universidades não fazem isso, mas muitas fazem. Isso é preocupante e deve ser evitado. Infelizmente, muitas coisas que as máquinas não fazem bem, como certas tarefas criativas, habilidades de resolver problemas e habilidades interpessoais são as coisas que não ensinamos aos jovens. Meu primeiro conselho seria tentar aprender coisas que não são o que as máquinas fazem bem.

A segunda questão é que acho que, na hora de escolher a carreira, os jovens têm duas opções: uma é competir com as máquinas, tentar fazer as coisas que esses sistemas e máquinas não fazem bem. A segunda estratégia é, em vez de competir, tentar construir máquinas, ser o tipo de pessoa capaz de projetar, usar e entender como essas máquinas funcionam. E acho que essas duas opções — competir com máquinas ou construí-las — são as opções que os jovens terão e é uma escolha importante que eles devem fazer.

Silio Boccanera — Outra pergunta de uma telespectadora brasileira.

Tetê Pacheco, publicitária: Eu sou idealizadora da rede Sociedade Criativa, que é um grupo de profissionais que trabalha em rede sobre criação, planejamento, estratégias e produção. Eu já trabalho assim há algum tempo, isso já é uma realidade para mim no meu mercado, que é o mercado publicitário, e eu acho interessante perguntar se quando isso, que teoricamente seria uma inovação ou um pensamento disruptivo em termos de estrutura, será uma realidade para todos, quando é que as empresas de uma forma geral dentro desse mercado poderão passar a operar dessa forma.

Daniel Susskind — Ela descreveu um modelo interessante. Nós o chamados de modelo de rede de especialistas. São profissionais tradicionais, neste caso profissionais de marketing e publicidade, mas, em vez de se reunirem num prédio físico, eles se reúnem em plataformas on-line. E eles começam a surgir não só em… A revista The Economist chamou isso de “trabalhadores em fluxo”, identificou isso como uma tendência, algo que é cada vez mais comum. Acho que a direção geral que ela descreve é… Eu concordo com ela.

Silio Boccanera — Então está caminhando nessa direção.
Daniel Susskind —
Acho que sim, mas isso é só parte da história. Especialistas tradicionais… Isso é apenas… São apenas seres humanos se reunindo de uma forma nova. Acho que a maior dúvida é o que vai acontecer quando as máquinas forem capazes de fazer o trabalho que as pessoas dessas redes fazem, o que vai acontecer quando algumas tarefas que elas se reúnem on-line para fazer possam ser feitas sem pessoas. Acho que esse é o desafio.

Silio Boccanera — Isso está acontecendo na arquitetura.
Daniel Susskind —
Há sistemas e máquinas que compõem música. Participei de uma mesa-redonda com um professor de criatividade computacional, uma disciplina que tenta projetar sistemas que fazem coisas que exigiriam a criatividade de um ser humano. Então a ideia de que certas tarefas estarão eternamente fora de alcance está sendo desafiada.

Silio Boccanera — Acha que estamos num ponto — porque parece haver uma transição em direção à automação e à inteligência artificial — que nos lembra daquele grande projeto científico do genoma humano, quando sociedades se reuniram para desenvolver uma certa área e tomar certas precauções? Acha que precisamos de algo assim?
Daniel Susskind —
Nos EUA, decisões judiciais estão sendo tomadas por algoritmos. Os algoritmos informam a pena e a liberdade condicional aos juízes. Podemos aceitar isso, mas o que acharíamos de uma máquina decidir por uma prisão perpétua? Acho que muita gente não aceitaria. Da mesma forma, é quase inevitável que projetemos um sistema que tomará decisões melhores sobre a alocação de leitos hospitalares numa UTI do que um médico humano, mas queremos que máquinas decidam sobre o desligamento de equipamentos médicos? Acho que muita gente se oporia totalmente. Então, o desafio de estabelecer o limite moral do uso dessas máquinas eu acho particularmente importante. É algo que muita gente do ramo da IA reconhece como desafio, e há muito esforço para tentar marcar esses limites éticos.

Silio Boccanera — A sociedade tem de tomar uma posição.
Daniel Susskind —
Exatamente. Não sou eu que devo dizer quais têm de ser as normas, o que deve e o que não deve ser feito. São coisas que nós, enquanto sociedade, temos de definir.

Silio Boccanera — Por que há pessoas preocupadas, achando que isso está indo longe demais. Acho que o exemplo mais famoso é Stephen Hawking.

Jornal das Dez (2/12/2014): Uma das maiores inteligências do planeta alerta contra o pensamento artificial. Para Stephen Hawking, os esforços na criação de máquinas pensantes podem levar ao fim da raça humana. A declaração é forte não só pela genialidade do professor, mas porque ele é um dos maiores interessados nessa questão.

Daniel Susskind — Não acho que se deve concordar com a visão de Stephen Hawking ou de Nick Bostrom, por mais inteligentes e articuladas que sejam. Eu só acho que em qualquer profissão isso já está acontecendo, nós já estamos vendo tecnologias que podem não ser superinteligentes nem querer conquistar o mundo, mas que já têm, dependendo de seu projeto, consequências significativas. Um leve desvio naquele sistema que ajuda os juízes a tomarem decisões pode ter consequências sérias na vida daqueles delinquentes. E isso não tem nada a ver com a ideia de que as máquinas vão nos controlar em 50 anos, mas não acho que seja um desafio menor ou menos importante. Acho que provavelmente é menos dramático, mas talvez nem seja, talvez tenhamos de basear essas tecnologias em histórias particulares de consumidores, de pacientes, de estudantes, de clientes, de delinquentes ou quem seja.

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