Ideias do Milênio

"Não podemos forçar os jovens a fazer o que foi bom para nós"

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2 de janeiro de 2018, 10h26

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Entrevista concedida pelo consultor em educação Marc Prensky ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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O Milênio veio até ao centro do Rio de Janeiro, mais precisamente no Museu do Amanhã, para falar um pouco da educação de hoje. E nada melhor para isso do que falar com um estudioso do assunto, o consultor Marc Prensky, criador do termo “nativo digital”, que é para designar aquelas pessoas que já vieram ao mundo nesta era em que a tecnologia parece estar dominando tudo. Os desafios desse tempo para quem educa, para os alunos e para os pais são o tema do Milênio de hoje.

Marcelo Lins — Em primeiro lugar, professor Prensky, muito obrigado por conversar com o Milênio aqui no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.
Marc Prensky —
Estou muito feliz de estar aqui. Olá a todos os meus amigos do Brasil. Adoro o seu país.

Marcelo Lins — Eu gostaria de começar nossa conversa tentando entender melhor o que você acha da educação atual, lembrando que foi em 2001 que escreveu seu artigo sobre os nativos digitais e os imigrantes digitais. Eu gostaria de perguntar: essas diferenças ainda existem? O que é um nativo digital hoje, 16 anos depois?
Marc Prensky —
Acho que muita gente pensou que os nativos digitais eram apenas pessoas que automaticamente sabiam usar a tecnologia por serem jovens. E, no início, talvez fosse isso mesmo. Mas a partir daí uma cultura muito diferente da era digital evoluiu, e os nativos digitais cresceram nessa cultura. Os imigrantes cresceram numa cultura diferente e tiveram de se mudar para uma cultura nova.

Marcelo Lins — E se pensarmos que a tecnologia tem muitos impactos em todos os aspectos da nossa rotina, que tipo de impacto o advento do nativo digital tem na educação?
Marc Prensky —
Os jovens precisam ser educados de forma diferente para o futuro. Eu falo em uma mudança civilizatória na educação. Durante cerca de 200 anos, tivemos uma educação acadêmica. O foco era no raciocínio, em matemática, português, ciências e estudos sociais. Hoje toda essa informação está na internet. O que mudou foi que deixou de ser apenas raciocínio e passou a ser realização. As crianças podem realizar coisas no mundo com sua tecnologia e suas ferramentas que antes as crianças jamais teriam conseguido. E já começam a fazer isso.

Marcelo Lins — Mas ouvindo-o falar e lendo tudo que escreveu sobre esse assunto, podemos pensar que o valor da experiência foi superestimado por anos, talvez séculos, na nossa civilização. É isso? Se a realização é mais importante do que só o raciocínio, isso significa que a experiência deve ser reavaliada?
Marc Prensky —
Também. Porque existem duas tradições de educação no mundo: a tradição da realização, que é a mais antiga — de pai para filho, de mestre para aprendiz —, e depois surgiram os pensadores, que fundaram academias e se tornaram acadêmicos. O problema é que o lado acadêmico sequestrou as escolas, e a tradição da realização foi para as empresas. Então hoje nossas crianças precisam de duas educações. Precisam da tradição acadêmica para se formarem na escola e depois, quando chegam ao mercado de trabalho, precisam aprender a fazer as coisas. O que precisamos fazer é unir as duas coisas.

Marcelo Lins — Antes de começarmos a gravar, nós estávamos conversando e você disse algo que chamou minha atenção: nós precisamos aprender como usar as habilidades das crianças, a usar essas crianças. Algum desavisado poderia pensar: 'Será que ele está defendendo a escravidão infantil ou algo assim?'. Mas não foi isso que quis dizer.
Marc Prensky —
Não. No último século, nós definimos que as crianças não poderiam trabalhar antes de certa idade porque a única coisa que fazíamos era explorá-las. Nós as explorávamos fisicamente.

Marcelo Lins — Desde a revolução industrial…
Marc Prensky —
Sim, era terrível o que fazíamos com as crianças. Mas hoje o trabalho é muito diferente. Hoje o trabalho é intelectual, é uma realização em termos de programação e de criar coisas, que as crianças fazem muito bem.

Jornal das Dez (10/9/2016): Este curso, criado há pouco mais de um ano, está ensinando programação de jogos de computador e celular para um público bem jovem. Rafael criou um jogo para a feira cultural da escola. O objetivo do game é acertar a localização dos países latino americanos.

— Então aqui, por exemplo, a Argentina, onde é que fica a Argentina, você tem que clicar, aí se acertar, marca um ponto aqui embaixo.
— Não seria muito fácil?
— A professora da escola errou quase todos os países, de Geografia.
— Como assim? Quer dizer que você fez um jogo que acabou deixando o professor em uma saia justa?
— Sim, o professor de História acertou mais do que o professor de Geografia, incrível.

Marc Prensky — Algumas indústrias estão usando as crianças, como a indústria de jogos, por exemplo, ou as indústrias da internet. Se não usarmos o potencial das crianças, vamos desperdiçar cerca de um terço de nossa mão de obra que poderia estar contribuindo para um planeta melhor, não sendo explorada, mas contribuindo.

Jornal das Dez (13/7/2016): E pode não parecer, mas esses meninos estão trabalhando.

— Quando é que, de repente, você poderia ganhar dinheiro com isso?
— Foi um ano depois que comecei a jogar, que teve um campeonato brasileiro, ganhei R$ 6 mil em um fim de semana, falei, meu Deus, como é que eu ganhei tanto dinheiro?

Marcelo Lins — Nesse ponto eu acho que vale a pena a gente dar uma paradinha e dar uma olhada no que significa hoje no mundo a indústria dos jogos, que usa, nos termos do professor, as crianças para se desenvolver. Vale a pena dar uma olhada nos números e nos dados de hoje.

Mercado de games em 2016
  Usuários Movimentação financeira
Mundo 2,2 bilhões US$ 91 bilhões
Brasil 3,4 milhões US$ 1,6 bilhões

 

 

 

 

 

Marcelo Lins — Acha que há uma técnica que as crianças podem usar para saber manobrar neste mundo com a quantidade imensa de informações às quais elas são submetidas diariamente?
Marc Prensky —
Acho que esta é uma ótima chance, porque nós não estamos sabendo expor nossas crianças a uma variedade de oportunidades. Nós as expomos a quatro coisas: matemática, português, ciências e estudos sociais. Mas o mundo é muito maior do que isso, e nós ainda não temos as ferramentas para dizer à criança: 'Jogue este jogo ou faça este teste e vamos lhe dar algumas sugestões. Não vamos lhe dizer o que fazer, mas vamos indicar: vá por aqui ou por ali'. Então temos de aprender a dizer às crianças: 'O mundo é muito grande. Descubra o que combina com você e mergulhe de cabeça. E aprenda a aplicar isso para transformar o mundo num lugar melhor'. É quando você se aprofunda em um assunto que começa a diferenciar a verdade da mentira. É quando tudo fica na superfície que se torna mais difícil.

Marcelo Lins — Tecnologia da informação: algumas pessoas têm medo do que isso vai trazer… Assim como a inteligência artificial. Alguns têm medo do que essas letrinhas juntas podem trazer para nosso ambiente de trabalho. Para educarmos essas crianças para o presente e o futuro, também temos de pensar nas profissões que vão desaparecer daqui a alguns anos. Isso o assusta ou também é uma oportunidade para novas realizações?
Marc Prensky —
Nós testemunharemos muitas mudanças, sem dúvida. Eu invejo meu filho, que tem 12 anos, porque ele verá mais mudanças do que eu, mas a resposta não é nos concentrar na tecnologia, no mundo ou nas profissões que desaparecerão, a resposta é focar nos indivíduos. Se cada indivíduo souber no que ele ou ela é bom, do que gosta e quer fazer, acho que achará espaço, mesmo com a tecnologia. Pode não ser no mesmo lugar de antes, pode não ser o professor que fica diante da classe, mas será uma pessoa que ajuda as crianças a se tornarem adultas. E talvez isso aconteça de uma forma muito diferente. O jornalista pode não ser a pessoa que se senta, fala e lê o teleprompter, mas será alguém que ajuda as pessoas a entenderem melhor o mundo. Essa profissão não desaparecerá, mas será exercida de outra forma.

Marcelo Lins — E há outro desafio. Estamos falando de ensinar as crianças, mas também temos de ensinar aqueles que ensinam as crianças, e a maior parte deles é imigrante digital, ainda não são nativos digitais. Então como encarar o desafio de ensinar os que ensinam?
Marc Prensky —
Acho que o desafio é ainda maior, porque temos de ajudar todos os adultos, principalmente os pais, a entenderem que os filhos estão crescendo num mundo novo e que a educação de que precisam não é igual à que receberam, só um pouco melhor. É uma nova educação. Para os professores, acho que há uma nova tarefa. Precisamos ajudar os professores a entenderem que existe a tarefa de transmissão de conteúdo, que tem sido o trabalho deles, e muitos são ótimos nisso. Mas essa não é a tarefa do futuro. A tarefa do futuro é o coaching. A tarefa do futuro é empoderar as crianças e ajudá-las a realizar os projetos que os farão ter sucesso no mundo. Elas não precisam de transmissão de conteúdo, podem conseguir isso na internet. Então pense na transição da tarefa 1, a antiga, para a tarefa 2. É nisso que temos de começar a pensar.

Jornal Hoje (8/8/2017): Essa é uma escola pública, em uma parceria com uma empresa de telefonia. O Estado dá os professores e a companhia mantem o prédio, todo tipo de equipamento de informática e até de áudio e vídeo.

Aqui as disciplinas são integradas por meio da tecnologia, então os alunos podem aprender conceitos de matemática e de física por meio de um projeto de robótica, de programação. Eles também criam games, jogos, para aprender melhor história, para aprender química.

Marcelo Lins — Sei que você viaja muito. Está no Brasil hoje, mas vai voltar para os EUA amanhã e já fez estudos com estudantes de todo o mundo, de mais de 40 países, pelo que li. Que tipo de experiência lhe chama a atenção e a sua imaginação quando vê os estudantes lidando com a vida prática na educação?
Marc Prensky —
O que mais me impressiona é como as crianças são parecidas em todos os lugares do mundo hoje. Seja em Dubai, no Rio ou em Nova York, elas têm várias experiências iguais e as mesmas aspirações. Querem conquistar coisas, querem melhorar o mundo e querem se conectar. Então eu digo aos professores: 'O que têm diante de vocês não são apenas estudantes, apenas pessoas, são pessoas com cérebros estendidos pela tecnologia e todas estão conectadas'. Então é bem diferente ensinar cérebros estendidos e conectados uns aos outros. Temos de inventar e experimentar.

Marcelo Lins — Voltando a falar dos pais, que você mencionou por alto. Alguns pais acham que vão pôr a criança na escola e vão receber de volta alguém preparado para o mundo. E, quando chegam em casa, os pais têm a tarefa de proibir as crianças de fazer certas coisas: 'Não fique muito tempo na rede social', 'Não exagere no videogame', não faça isso ou aquilo. Acha que os pais também precisam ser educados para esse novo ambiente em que vivem?
Marc Prensky —
Sem dúvida. Acho que o trabalho das escolas não é só educar as crianças, mas educar as famílias através das crianças, porque as crianças precisam educar os pais sobre o novo mundo em que vivem. Passo muito tempo conversando com pais, dizendo: 'Não queira que seu filho só seja bom nas matérias antigas. Isso não vai levá-lo muito longe no novo mundo. Descubra quem ele é, o que ama, com o que se importa, em que ele é bom e qual é a paixão dele. E o incentive a explorar essas direções a fundo, porque é isso que o ajudará no futuro'.

Marcelo Lins — Sr. Prensky, sabemos que seu trabalho é aclamado no mundo todo. Várias pessoas concordam que devemos encarar a educação dessa forma, uma nova forma de educação que a traz para o mundo digital, não para o futuro, mas para o presente, para o que vivemos hoje. Mas aqui e ali também vemos, desde 2005 e 2006, com um artigo para The Economist e mais recentemente uma publicação na revista Nature e num periódico especializado chamado Teaching and Teacher Education, algumas críticas a seu trabalho, segundo as quais o nativo digital é um mito. Como responde aos críticos ferrenhos do seu trabalho?
Marc Prensky —
Acho que o que aconteceu foi que as pessoas supuseram — e me refiro especificamente aos acadêmicos — que ser um nativo digital significava ter nascido sabendo mais sobre tecnologia do que alguém mais velho. Isso não é verdade. As pessoas têm de aprender. Ninguém nasce sabendo usar o Word da Microsoft. Todo mundo tem de aprender, mas o que mudou foram as atitudes das pessoas. É isso que acho que essas pessoas não entenderam. Se conversar com os jovens em geral e perguntar qual é a opinião deles sobre privacidade, sobre compartilhar informações, sobre encontrar um parceiro, sobre muitíssimos assuntos, eles se sentem muito mais à vontade fazendo isso no mundo digital do que os adultos, e as pessoas que se sentem mais à vontade no mundo digital são o que eu chamo de nativos digitais.

Marcelo Lins — Então vai muito além de uma mera referência cronológica. Não é só porque você nasceu depois de 1994 que já é um nativo digital. É um fato da vida. É isso?
Marc Prensky —
É um fato cultural. É o fato de que a cultura mudou consideravelmente, e pode-se analisar isso em termos de atitudes sexuais, particularmente no meu país, mas acho que em outros lugares do mundo. Os jovens pensam diferente porque cresceram num mundo diferente, então esse conjunto de crenças é muito diferente, de uma forma importante, do conjunto de crenças que muitos adultos têm. Eles cresceram ouvindo que o plágio era a pior coisa do mundo. Hoje os jovens acham que a colaboração é a melhor coisa do mundo. Se eu tomo emprestado de alguém, tudo bem. E talvez não seja tão ruim. Os pais cresceram pensando que tinham de proteger sua privacidade, informação é tudo, informação sobre a saúde e tal. Os jovens acham que se deve compartilhar essa informação, pois, se compartilho informações sobre minha saúde, poderemos curar as doenças com mais sucesso. Não se trata de uma mudança tecnológica nas capacidades, mas uma mudança de atitude na cultura.

Marcelo Lins — E, se tiver de apontar duas coisas, os maiores desafios para essa nova forma de encarar a educação, a curto e a longo prazo, quais seriam?
Marc Prensky —
É uma boa pergunta. O interessante em relação à tecnologia é que tendemos a superestimar as mudanças a curto prazo e a subestimar as mudanças a longo prazo. As coisas vão mudar de forma muito rápida e dramática. Atualmente estamos numa curva ascendente em termos de população e de inovação que cresce muito rápido. Então veremos muitas mudanças. O desafio é a rapidez com que vamos nos adaptar a essas mudanças. Porque o ser humano sabe se adaptar, sempre fizemos isso, mas se as mudanças chegarem mais rápido, se a era do gelo chegar antes de nos adaptarmos, estaremos encrencados. Então temos de nos adaptar melhor ao futuro. É por isso que, se eu fosse formador de professores, diria: 'Vamos pensar no futuro. Como se adaptariam? Como fariam tal coisa? Querem ser transmissores de conteúdo o resto da vida?' O desafio a curto prazo é mudar a atitude dessas pessoas. O desafio a longo prazo é como vamos fazer com que todos, mas principalmente as novas gerações, trabalhem cada vez mais na solução dos problemas do mundo e dos problemas que os afligem. Como vamos integrar as pessoas dos estágios mais básicos nesse processo de adaptação a um ambiente muito novo?

Marcelo Lins — E pelo que estudou, pelo que escreveu, pelo que leu e pelo contexto do mundo atual, tem esperança de que isso aconteça?
Marc Prensky —
Estou muito esperançoso. Sou muito otimista em relação aos jovens, porque eu os vejo e converso com eles e sei o que eles querem e podem fazer. Acho que outro grande desafio, talvez o maior, é não atrapalhá-los, não tentar forçá-los a fazer o que foi bom para nós, porque isso não vale mais para o futuro.

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