Contas à Vista

Resiliência constitucional há de ser antídoto ao fisiologismo fiscal em 2018

Autor

2 de janeiro de 2018, 7h00

Spacca
A retomada cíclica traz consigo aprendizado quando se sabe avaliar os erros do passado, para, tanto quanto possível, superá-los ao longo da trajetória em curso, na busca de um futuro melhor. A expectativa que se me avizinha como prognóstico para a realidade brasileira em 2018, contudo, não parece ser capaz de tal evolução inteligente.

No ano em que nossa Constituição Cidadã completa três décadas de vigência, o maior teste normativo acerca da sua resiliência vem exatamente da derrogação da regra nuclear de proporcionalidade em relação ao comportamento da receita estatal, que, até 2017, marcava o regime jurídico dos pisos de custeio da saúde e educação.

Ora, o “Novo Regime Fiscal”, fixado no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pela Emenda 95/2016, entra em pleno vigor neste ano, quando se espera que cumpra seu desiderato primordial de ampliar a discricionariedade alocativa no ciclo orçamentário da União, por meio da mitigação das vinculações protetivas de direitos sociais.

Tão controversa é essa rota de ajuste fiscal seletivamente focada apenas no controle das despesas primárias federais, que vimos, ao longo do ano passado, inúmeras iniciativas francamente contrárias ao seu propalado horizonte de austeridade e estabilização da dívida pública. A realidade vivida pela população brasileira comprovou se tratar de mera falácia argumentativa a aventada necessidade de um ajuste fiscal amplo, mas nada isonômico e impessoal. Para que ninguém duvide do mau uso da discricionariedade alocativa advinda da Emenda 95, vale lembrar, por exemplo, a majoração cavalar de renúncias fiscais[1], a reiteração de programas de refinanciamento de débitos tributários para sonegadores contumazes (mais de 30 edições de "Refis" nos últimos 18 anos)[2], a criação de mais de 2 mil cargos comissionados nos últimos 20 meses[3], a alocação superior a R$ 2,6 bilhões para os fundos eleitoral e partidário[4], o abrandamento das exigências legais para adesão à repactuação de dívidas dos entes subnacionais[5] etc.

Intervenção tão radical e extrema como essa do congelamento dos pisos em saúde e educação não se apresenta como medida razoável diante de tantas e tamanhas hipóteses de explícito fisiologismo fiscal. Houve quem precificasse em mais de R$ 32 bilhões o custo[6] da “compra” de apoio parlamentar para o presidente Michel Temer adiar o trâmite processual regular das denúncias penais apresentadas contra ele.

No somatório de todas essas variáveis, realmente soa quimera a promessa de um reequilíbrio justo e intertemporalmente estável nas contas públicas, sobretudo diante da falta de qualquer medida capaz de corrigir a regressiva matriz tributária[7] e da inconstitucional omissão em limitar as dívidas consolidada e mobiliária da União[8].

Ao longo deste ano, a tendência não é de resolução de tais históricos conflitos distributivos, por mais que agora eles pareçam estar submetidos a maior debate público e, portanto, sejam alvo de ampliados questionamentos acerca da sua conformidade constitucional.

Infelizmente, 2018 é ano de Copa do Mundo na Rússia, e o torpor futebolístico contribui para a opacidade que distorce a parca reflexão da sociedade brasileira sobre a íntima correlação entre democracia e orçamento público. Assim, caminharemos para as eleições nacionais e estaduais preocupados muito mais com a escolha de lideranças carismáticas e personalidades avulsas do que com a escolha de projetos de futuro que digam respeito às nossas prioridades coletivas.

O ciclo perverso e vicioso se fechará com o maniqueísmo político-eleitoral que prega soluções fáceis e rápidas para problemas antigos e complexos em uma federação desequilibrada e em uma sociedade infantilizada na sua relação com o Estado. Esse mesmo aparato estatal, por seu turno, parece haver sido capturado por oligarquias políticas e econômicas, que não se constrangem em entregar desigualdade tão abrupta (onde 1% da população mais rica concentra 28% da riqueza produzida no país[9]), que, direta ou indiretamente, associa-se cruelmente a níveis internacionalmente alarmantes de insegurança pública (mais de 60 mil assassinatos por ano[10]).

A pouca esperança que me resta diante de todo esse quadro advém da luta cotidiana e silenciosa de muitos de nós, quiçá a maioria dos brasileiros, que defendemos resiliente e bravamente o compromisso civilizatório firmado há 30 anos. Enquanto nós a mantivermos como nosso acordo nuclear de convivência possível, todas as tensões acima hão de encontrar ali, ao menos, a possibilidade de justa e democrática medida de equalização. Daí porque é tão arriscado o discurso autoritário e oportunista de que seria necessária uma nova Constituinte.

Em 1988, Ulisses Guimarães desejava à então recém-promulgada Constituição Cidadã: “Que isso se cumpra!”. Quase três décadas depois, o meu compromisso, mais do que uma mera promessa de cunho particular para este 2018, é assumir a cota de responsabilidade que me cabe, como brasileira que se sente dela signatária, para exigir e fazer com que a nossa Constituição se cumpra.

O pessimismo analítico não pode nos prostrar diante da necessidade de enfrentarmos a realidade em busca da sua consonância constitucional. Talvez precisemos retomar, neste ano que ora se inicia, a forte lição do saudoso Paulo Freire, nosso irrefutável “patrono da educação brasileira”, para quem a esperança é um imperativo existencial e histórico, enquanto a desesperança é imobilizadora da ação, na medida em que faz crer no fatalismo de que não é possível mudar ou recriar o mundo.

Precisamos voltar a acreditar e lutar criticamente em prol da agenda civilizatória que soubemos coletiva e democraticamente construir na Constituição de 1988. De todos os horizontes que se abrem para 2018, esse é, sem dúvida, o maior e mais desafiador que temos pela frente, porque não basta a esperança. Há de haver uma ação cívica e plural capaz de mobilizar a agenda das finanças públicas para o seu fim último de realização dos direitos fundamentais. Afinal, como bem dizia Paulo Freire, “enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica”[11].


[1] A exemplo do que se pode ler em https://g1.globo.com/economia/noticia/renuncia-fiscal-soma-r-400-bi-em-2017-e-supera-gastos-com-saude-e-educacao.ghtml, http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-12/deficit-da-previdencia-seria-40-menor-sem-renuncias-fiscais-diz-relatorio, https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/10/31/estudos-apontam-perdas-de-r-1-tri-em-renuncia-fiscal-com-leilao-do-pre-sal.htm, https://g1.globo.com/economia/noticia/governo-abre-mao-de-mais-de-r-10-bilhoes-com-alivio-de-dividas-de-ruralistas.ghtml e https://www.poder360.com.br/economia/refis-mais-benevolente-aumenta-renuncia-fiscal-para-r-84-bilhoes-ate-2020/.
[2] Como se depreende das seguintes notícias: https://oglobo.globo.com/economia/novo-refis-o-31-programa-de-parcelamentos-especiais-em-17-anos-21419078, https://g1.globo.com/politica/noticia/nao-e-razoavel-que-se-faca-refis-a-cada-6-meses-no-brasil-diz-eunicio.ghtml e https://dcomercio.com.br/categoria/leis-e-tributos/meirelles-critica-novo-refis-passa-a-ser-mais-negocio-nao-pagar.
[3] Tal como noticiado em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/videos/t/edicoes/v/governo-criou-2-mil-cargos-comissionados-em-um-ano-e-meio/6350914/ e http://www.contasabertas.com.br/site/transparencia/governo-eleva-numero-de-comissionados-mesmo-com-promessa-de-corte.
[4] O Congresso Nacional aprovou para o orçamento de 2018 montante de R$ 1,7 bilhão para o Fundo Eleitoral, recentemente criado, e previu cerca de R$ 900 milhões para o Fundo Partidário, como se pode ler em https://g1.globo.com/politica/noticia/relatorio-do-orcamento-de-2018-define-fundo-de-r-17-bilhao-para-campanhas-eleitorais.ghtml, https://g1.globo.com/politica/noticia/camara-aprova-criacao-de-fundo-para-bancar-campanha-eleitoral.ghtml, https://g1.globo.com/politica/noticia/congresso-nacional-aprova-orcamento-da-uniao-para-2018.ghtml, http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fundo-de-r-3-6-bi-e-um-desaforo-afirma-barroso,70001942782 e https://oglobo.globo.com/brasil/apesar-da-crise-fiscal-planalto-infla-previsao-para-despesas-dos-partidos-em-ano-eleitoral-21781656.
[5] Tal como aventada na Medida Provisória 801/2017: https://g1.globo.com/economia/noticia/mp-simplifica-renegociacao-de-divida-de-estados-e-municipios-com-a-uniao.ghtml e http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ADMINISTRACAO-PUBLICA/550449-COMISSAO-MISTA-APROVA-MP-SOBRE-RENEGOCIACAO-DE-DIVIDAS-DE-ESTADOS-E-MUNICIPIOS-COM-A-UNIAO.html.
[6] Noticiado em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,custo-de-denuncias-contra-temer-alcanca-r-32-1-bi,70002059125.
[7] A esse respeito, a contundente entrevista de Sérgio Wulff Gobetti disponível em http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/12/politica/599446-tributacao-brasileira-e-escandalosamente-benefica-aos-muito-ricos–diz-economista.html, que questiona a falta de tributação sobre dividendos percebidos por pessoas físicas, na mesma linha de estudo feito por ele e por Rodrigo Orair para as Nações Unidas, divulgado em https://nacoesunidas.org/brasil-e-paraiso-tributario-para-super-ricos-diz-estudo-de-centro-da-onu/ e disponível, na íntegra, em http://www.ipc-undp.org/pub/port/WP136PT_Tributacao_e_distribuicao_da_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a_partir_das_declaracoes_tributarias_das_pessoas.pdf.
[8] Como suscitáramos, ao lado de José Roberto Afonso e Lais Khaled Porto, em https://www.conjur.com.br/2017-dez-05/contas-vista-inconstitucional-omissao-limitar-divida-publica-federal.
[9] Tal como alertado em https://g1.globo.com/economia/noticia/1-mais-ricos-concentram-28-de-toda-a-renda-no-brasil-diz-estudo.ghtml e https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/13/internacional/1513193348_895757.html.
[10] Uma verdadeira guerra não declarada que nos coloca na triste liderança mundial no Atlas da Violência, tal como evidenciado em http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-tem-recorde-de-assassinatos-com-171-mortes-por-dia,70002065887 e http://www.valor.com.br/brasil/4493134/brasil-lidera-em-numero-de-homicidios-no-mundo-diz-atlas-da-violencia.
[11] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 05.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!