Um dos sentidos mais evidentes da crise vem da economia. A co-causalidade é flagrante: os problemas econômicos são produtos e produtores, ao mesmo tempo, dos problemas constitucionais vividos. A crise fiscal e o déficit das contas públicas talvez componham o aspecto mais relevante a demonstrar essa relação.
Apontado como um dos fatores da crise, o projeto da democracia social imbuída na constituinte passou a ser foco das reformas atualmente em discussão. A Constituição de 1988, com a previsão dos direitos e garantias sociais, esteve sob forte ataque com a justificativa de que tais previsões constitucionais não possuíam sistema de financiamento sustentável. Deu-se, assim, azo à reforma trabalhista e à necessidade de flexibilização de muitos direitos sociais constitucionalmente previstos. Da mesma forma, é esse discurso que orienta a reforma da previdência em curso.
Não foram atacados com a mesma intensidade, no entanto, outros fatores que contribuem de forma igual ou ainda mais intensa para o agravamento do rombo nas contas públicas. Um exemplo é o aumento dos gastos públicos com regalias constitucionalmente desproporcionais, travestidas de garantias estampadas nos muitos auxílios que dilatam o já inchado orçamento. Destaco aqui a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no primeiro semestre que flexibilizou o acúmulo de vencimentos, com a possibilidade de recebimento acima do teto em caso de acúmulo de cargos públicos. Assim, o teto deixa de existir.
Outro fator de impacto relevante no problema fiscal é a endemia da corrupção, que também se traveste numa crise ética. O combate à corrupção comporta necessariamente a defesa da Constituição e, portanto, deve ser feito em fortalecimento e não em detrimento dos parâmetros constitucionais.
Portanto, encontramos mais um sentido para a crise no abandono das disposições constitucionais em situações relevantes para a superação dos problemas do Brasil. Se a corrupção é uma cultura arraigada no cenário político nacional, o semear de uma contracultura terá o condão de mudá-la. A base dessa mudança é a educação para a cidadania e os direitos. Atalhos e aparos nos caminhos constitucionalmente estabelecidos não podem ser justificados pelas boas intenções de combate aos corruptos.
O combate à corrupção desborda em vilipêndio constitucional quando é feito ao arrepio de garantias constitucionais integrantes do estatuto de proteção dos direitos fundamentais e também do sistema internacional de proteção aos direitos humanos, do qual o Brasil é signatário. Essa tendência é reforçada pela tônica repressiva do idioma do direito penal como solucionador de todos os males. A crise relacionada ao necessário combate à corrupção também se manifesta na incerteza que dominou os debates no Supremo Tribunal Federal durante todo o ano.
Uma das questões colocadas, por exemplo, foi a revisão –que (ainda) não se concretizou– do precedente de outubro de 2016 sobre a possibilidade do início do cumprimento da pena a partir da decisão de segunda instância. Corrobora nessa linha arriscada o recentíssimo debate, já iniciado com formação de maioria, sobre o poder da Polícia Federal para celebrar acordos de delação.
A pauta de retrocessos nos direitos e garantias fundamentais, que ocupa as diversas instâncias, demonstra bem a crise dos direitos humanos que marcou o constitucionalismo em 2017. Além da crise de efetividade que mancha o projeto constitucional quase três décadas após sua entrada em vigor, movimentos conservadores ganharam considerável espaço nos legislativos com bandeiras e projetos que têm o objetivo de esvaziar e neutralizar o debate e o espaço público.
Encontrou óbices neste ano a promessa constitucional da igualdade substancial como política de reconhecimento de identidades –orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e outros atributos. Pautas de reconhecimentos que avançam no Judiciário –quanto aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e sua autonomia corporal, por exemplo– encontram contraponto em iniciativas legislativas como a PEC 181, que reduz as hipóteses legais já definidas para a realização do aborto.
A queda de força, ao invés dos diálogos, marcou 2017 nas relações entre Legislativo e Judiciário, como espelho da crise entre os poderes. Neste ponto há o exemplo emblemático da promulgação da Emenda Constitucional 96, que acrescenta o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal, para permitir a realização das manifestações culturais registradas como patrimônio cultural brasileiro que não atentem contra o bem-estar animal.
O acréscimo constitucional vem em resposta ao julgamento realizado em outubro de 2016 pelo STF sobre a Adin 4.983. Por maioria apertada, naquela ocasião, o tribunal declarou inconstitucional lei do Ceará que regulamentava a prática da vaquejada.
A crise federativa também foi um problema evidente em 2017. A consolidação da concepção solidária da federação, estampada no projeto de federalismo cooperativo, começou a apontar no horizonte constitucional. Terminado em novembro, o julgamento da APDF 109, sobre tema de relevância extrema a respeito do uso do amianto, referencia o respeito e a efetividade do pluralismo do Estado que busca a otimização da cooperação entre os entes federados com vistas à maximização do conteúdo normativo dos direitos fundamentais. Este precedente ainda é um registro minoritário em um cenário centralizador dos poderes e competências.
Mas o ano também registrou avanços. No que toca à raça, o STF declarou constitucional a Lei 12.990/2014, que reserva a negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta. A superação do racismo estrutural e institucional e a necessidade de garantir a igualdade material, por meio do reconhecimento da população afrodescendente, foi um dos fundamentos principais da decisão.
No que toca às questões de gênero e de orientação sexual, destaque para os debates iniciados, mas ainda pendentes, a respeito da mudança de nome social sem realização da cirurgia de transgenitalização, sem nenhum voto em sentido contrário registrado até o momento e 5 votos favoráveis. A justificativa da maioria do STF é que discriminação sem base constitucional configura limitação indevida à liberdade e ao reconhecimento dos sujeitos e de seus direitos.
Desse rol acima exposto, que não possui qualquer pretensão exauriente, notam-se que são diversos os sentidos de crise que o constitucionalismo em 2017 assumiu; as crises, portanto. Ainda que reconhecida a pluralidade, emerge também ponto em comum: a hiperjudicialização de todas as dimensões constitucionais. Este superdimensionamento judicial, com destaque ao STF, contribuiu para este cenário de crise.
Retomar o sentido do poder constituinte, recolocar os sujeitos constitucionais em seus devidos lugares e estabelecer diálogos – e não enfrentamentos – entre as diferentes instâncias deliberativas em prol da Constituição passam a ser ainda mais fundamentais para superação dos dilemas do constitucionalismo presente, exacerbados em 2017.
A crise, todavia, não possui apenas efeitos negativos, pode ter um sentido tenso, porém, criativo e transformador de paradigmas, como queria Thomas Kuhn. Espera-se ser este o sentido prospectivo a prevalecer às vésperas do aniversário de 30 anos da Constituição. Que venham os desafios (constitucionais) de 2018!