Opinião

Unanimidade do Supremo na regulação das imunidades exige atenção

Autor

  • Henrique Napoleão Alves

    é sócio do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor universitário.

28 de fevereiro de 2018, 6h56

Um tema já clássico na literatura especializada diz respeito à regulamentação das imunidades. A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 2.028 conferiu novo impulso às reflexões sobre a matéria, convidando advogados e estudiosos da seara tributária ao reexame de suas bases, assim como à análise descritiva e crítica do julgado.

Todo advogado e consultor jurídico precisa ter muito cuidado com decisões unânimes: a unanimidade aparente pode acabar escondendo discordâncias relevantes, como ocorreu no precedente em questão.

A decisão do STF na ADI 2.028
A ADI 2.028 foi ajuizada pela Confederação Nacional de Saúde (CNS) em 1999. A autora alegou que mudanças operadas por lei ordinária restringiram indevidamente o conceito de “entidade beneficente de assistência social” e terminaram por limitar o escopo da isenção das contribuições sociais.

O caso foi finalmente examinado na sessão plenária de junho de 2014. Na ocasião, foram apregoados para julgamento conjunto, além da ADI 2.028, as ADIs 2.036, 2.228 e 2.621 (todas atribuídas ao ministro Joaquim Barbosa) e o Recurso Extraordinário 566.622 (de relatoria do ministro Marco Aurélio), entendidos como voltados ao mesmo tema. A decisão final só veio em 2017.

Conversão da ADI em ADPF
Preliminarmente, o STF decidiu, por maioria, pelo conhecimento da ADI como convertida em ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental.

A ratio decidendi foi capitaneada pelo voto do ministro Teori Zavascki. Para ele, o conhecimento da ADI exigiria sua conversão em ADPF em virtude de ela incluir, em seu escopo, atos normativos posteriormente revogados.

No mesmo sentido, o ministro Ricardo Lewandowski destacou a “fungibilidade das ações objetivas” e a ausência de “prejuízo nessa conversão”.

Entre os vencidos, o ministro Marco Aurélio entendeu que a ação estaria prejudicada quanto à tese de inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 9.732/1998, uma vez que a redação que esse dispositivo deu ao artigo 55, III, da Lei 8.212/1991 foi revogada pela Lei 12.101/2009.

Mérito: resultado comum, posições em contraste
No mérito, o resultado foi comum a todos os ministros: a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 9.732/1998. De seus votos, contudo, decorrem posições diversas a respeito da quaestio juris.

O entendimento de que o artigo 195, parágrafo 7º cuida de imunidade que reclama, em algum nível, lei complementar para sua regulamentação parece, sim, ter sido compartilhado por todos; o problema é saber quando a lei complementar é exigida, e quando a lei ordinária, ou mesmo o regramento infraconstitucional, é suficiente.

Vários sustentaram dualidades extremamente fluidas:

Ministro Critério
Joaquim Barbosa Exigência de lei complementar para "vinculações mais restritivas à livre disposição do indivíduo para agir nos campos da beneficência ou da filantropia".
Teori Zavascki Lei complementar para "intervenções mais severas". Lei ordinária para "aspectos meramente procedimentais".
Dias Toffoli Lei complementar para "requisitos" dos "lindes da imunidade". Lei ordinária e regramentos infralegais para "procedimentos".
Ricardo Lewandowski Lei complementar para "requisitos materiais". Lei ordinária para "aspectos procedimentais".

Faz todo sentido que não se exija que a lei complementar desça ao nível dos detalhes mais específicos sobre como os requisitos legalmente postos serão fiscalizados, mas determinar com precisão, em cada caso, o que significa uma “intervenção mais severa” é tão difícil quanto fazer o mesmo em relação às mencionadas “vinculações mais restritivas à livre disposição”.

O mesmo ocorre com as dualidades “requisitos”/“procedimentos”, “requisitos de constituição e funcionamento”/“requisitos atinentes aos lindes da imunidade”, ou ainda “requisitos materiais”/“aspetos procedimentais”. Com a devida vênia, todos esses são conceitos algo imprecisos, o que prejudica a expectativa dos contribuintes por mais segurança na regulação jurídica da matéria.

Possivelmente em atenção às enormes dificuldades práticas envolvidas na diferenciação entre o que seria “mais” ou “menos” importante para fins de regulação complementar ou ordinária, o ministro Marco Aurélio pronunciou-se sobre a matéria em acentuado contraste com as posições criticamente examinadas acima.

Para esse ministro, o artigo 195, parágrafo 7º estabelece dois requisitos para o gozo da imunidade: ser pessoa jurídica beneficente de assistência social e atender a parâmetros legais. Quanto ao primeiro requisito, o conceito de assistência social é amplo e abrange saúde e educação e, enfim, os direitos sociais. Quanto ao segundo requisito, em consonância com o artigo 146 da Constituição, é preciso que os requisitos legais constem de lei complementar. Por isso, prevalece a disciplina do artigo 14 do CTN. Como o artigo 1º da Lei 9.732/1998 extrapola o teor e rol de requisitos do citado dispositivo do CTN, padeceria assim de inconstitucionalidade formal.

É uma posição bem diferente daquela defendida pelo ministro Teori Zavascki, que em seu voto reforçou uma dualidade fluida com o argumento consequencialista de que, fulminada a legislação ordinária, a imunidade do artigo 195 terminaria regulada pelo artigo 14 do CTN, cujos requisitos seriam “evidentemente insuficientes”, culminando em “substancial impacto orçamentário” em prejuízo à seguridade social.

Quem tem a razão?
A redação do artigo 195, parágrafo 7º da Constituição determina que as entidades beneficentes de assistência social são imunes (não obstante se utilize do termo “isentas”), devendo, para tanto, atender “as exigências estabelecidas em lei”. Por se tratar de imunidade, a lei complementar é o veículo adequado para dispor sobre as condutas exigíveis da entidade para que possa ser considerada beneficente, pois àquela cabe topicamente dar aplicabilidade aos comandos constitucionais, além de regular as limitações constitucionais ao poder de tributar. Nesse campo, portanto, é vedada a intromissão de lei ordinária. Respeitado, portanto, esse conteúdo mínimo da Constituição, que não pode ser alterado, muito menos restringido, caberia à lei complementar exigir as condutas necessárias para que uma entidade possa fruir da imunidade.

O artigo 55 da Lei 8.212/91 e alterações padecem de inconstitucionalidade formal, pois não se destinam a definir o modelo jurídico geral e único das entidades imunes, mas, sim, estabelecem exigências para que as entidades façam jus à imunidade. Seu escopo é exclusivamente tributário, invadindo assim a tarefa da lei complementar reservada pelo artigo 146, II da Constituição.

Diagnosticada a inconstitucionalidade formal, há uma lacuna a ser preenchida, na medida em que nenhuma lei complementar prevê as exigências para fruição da imunidade tributária. A melhor solução é a aplicação analógica do artigo 14 do CTN, até mesmo por respeito ao artigo 108 do mesmo diploma.

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