Opinião

Se não houver indicação, seguro de vida deve ser pago ao último companheiro

Autor

  • Maria Berenice Dias

    é advogada vice-presidente do IBDFAM e integrante da Comissão de juristas instituída Senado para elaborar proposta de atualização do Código Civil.

28 de fevereiro de 2018, 6h21

Em sede de seguro de vida, há uma discrepância na lei para lá de inconstitucional. Quando o titular morre, sem ter indicado beneficiário na apólice, o legislador elege o cônjuge não separado judicialmente como favorecido. Concede-lhe metade do valor do seguro. O restante, aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem de vocação hereditária (CC 792).

Na união estável, a concessão do benefício está sujeita a dupla condição (CC 793): que o contrato seja firmado depois de o tomador estar separado de fato e que o companheiro conste como seu beneficiário. Ou seja, só é contemplado se foi expressamente indicado em seguro instituído depois do fim do casamento do segurado.

Não atendidas essas duas exigências, a indenização é paga ao ex-cônjuge, que recebe o capital segurado simplesmente por não ter sido formalizada a dissolução do casamento. Ora, de há muito está pacificado que a separação de fato sela o término do casamento, não sobrevivendo quaisquer direitos ou deveres entre ex-cônjuges[1]. De outro lado, a expressão "não separado judicialmente" não dispõe de qualquer significado, eis que o instituto da separação judicial foi excluído do panorama jurídico[2]. Logo, depois da separação de fato, não há como conceder direito algum nem a ex-cônjuge nem a ex-companheiro.

O Superior Tribunal de Justiça, buscando uma solução salomônica — mas distanciada do que diz a lei — atribuiu um quarto do capital segurado à ex-mulher e um quarto à companheira, sendo o restante pago aos herdeiros[3].

É imperioso reconhecer que existe uma lacuna na lei no que diz com o companheiro sobrevivente, quando não há indicação do beneficiário. No entanto, o reconhecimento constitucional da união estável como entidade familiar (CF, artigo 226, parágrafo 3º) é o que basta para impedir que a omissão legal sirva para conceder privilégio a quem nem mais estava casado com o segurado.

Agora, não mais subsiste qualquer resquício de dúvida sobre a equiparação entre casamento e união estável. Foi espancada pelo Supremo Tribunal Federal, que, em sede de repercussão geral, proclamou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil[4]. Mas a decisão foi além. Consta da própria ementa: não é legítimo desequiparar cônjuges e companheiros; a hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. E conclui o ministro Luis Roberto Barroso: discriminar os companheiros, dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos aos cônjuges, entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso[5].

Ou seja, a equiparação levada a efeito pelo Supremo Tribunal Federal não se limita à concorrência sucessória. Vai além. Enlaça todas as hipóteses em que se verifica eventual discriminação entre cônjuges e companheiros. Ainda que o seguro de vida esteja fora do âmbito do Direito Sucessório, sua eficácia está sujeita a condição suspensiva — o evento morte. Ainda assim, o companheiro não pode ser reconhecido como beneficiário somente quando indicado como tal ao tempo da contratação do seguro.

Quer pelo fim do instituto da separação, quer por a separação de fato romper o casamento, não pode subsistir a desequiparação consagrada nos artigos 792 e 793 do Código Civil. Está maculada de inconstitucionalidade. Quem convivia com o instituidor à data de sua morte — cônjuge ou companheiro — é que pode se beneficiar do seguro. Independentemente de quando o contrato foi firmado, se antes ou depois da separação do segurado. Não é possível consagrar enriquecimento sem causa. De todo descabido deferir o seguro a quem não mais convive com o segurado, deixando de beneficiar a pessoa que com ele mantinha uma entidade familiar[6].

Voltaire Marensi vai além. Sugere que o seguro seja pago, em sua integralidade, a quem vivia com o segurado, mantendo-se o parágrafo único do artigo 792 do CC, única hipótese em os herdeiros seriam contemplados com a metade do capital segurado[7].

A consagração constitucional do princípio da afetividade, como elemento constitutivo dos elos de convivência, faz com que, na falta de indicação de beneficiário na apólice, seja contemplado com a indenização securitária quem dividiu a vida com outro alguém até sua morte.


[1] IBDFAM – Enunciado 2: A separação de fato põe fim ao regime de bens e importa extinção dos deveres entre cônjuges e entre companheiros.
[2] A Emenda Constitucional 66/2010 deu nova redação ao parágrafo 6º do artigo 226 da CF.
[3] STJ, REsp 1.401.538- RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, decisão monocrática de 14/8/2015.
[4] STF – Tese 498: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002 (RE 646.721 e RE 878.694).
[5] STF, RE 646.721/RS, rel. min. Marco Aurélio, rel. p/ acórdão, min. Luis Roberto Barroso. j. 10/5/2017.
[6] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, São Paulo: RT, 11ª ed., 2017, p. 241.
[7] MARENSI, Voltaire. A união estável e o seguro de pessoa (www.conjur.com.br)

Autores

  • Brave

    é advogada especializada em Direito de Família, das Sucessões e Homoafetivo, além de vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).

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