Opinião

Auxílio-moradia pago a juízes encontra total respaldo na lei

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27 de fevereiro de 2018, 16h26

1. Discorrendo sobre o propósito deste artigo
Há, em curso, uma guerra de comunicação que tem por objeto o famigerado auxílio-moradia, benefício hoje pago a juízes e promotores, na esteira de decisão proferida pelo ministro Luiz Fux em sede cautelar na Ação Originária 1.773-DF, com base no artigo 65, inciso II, da Loman. Como toda guerra de comunicação, seus debates se tornam, a partir de certo ponto, superficiais e distantes daquilo que deveria ser o seu cerne. Passa, nessas hipóteses, a valer a máxima de que uma mentira dita diversas vezes se torna uma verdade.

O propósito do presente estudo reside não necessariamente em convencer o leitor de que a dita parcela deve ser paga aos juízes, mas, sim, apresentar o que está por trás do referido benefício e quais os argumentos que norteiam as pretensões daqueles que o defendem. Quando se argumenta em favor de algo em que se acredita, no entanto, na há dúvidas de que se espera que o interlocutor saia convencido de suas ideias. Não há por que se esconder esse propósito. O que precisa ficar claro é que as ponderações a serem aqui tecidas são absolutamente honestas e procuram ser coerentes com conceitos como retidão, legalidade e justiça.

2. A expressa previsão legal do auxílio-moradia
A primeira inverdade que se procura espraiar nos debates sobre o auxílio-moradia é que se trata de um benefício “ilegal”. Tempos atrás, minha própria mãe ficou surpresa quando lhe apresentei a redação do artigo 65, inciso II, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a prever, expressamente, no rol de direitos dos magistrados a “ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado”.

De pronto, se observa que a expressão “auxílio-moradia” foi cunhada pelo senso comum. A própria Resolução CNJ 115/2014, na esteira do que estabelece a lei, diversas vezes se remete à “ajuda de custo para moradia”. Apesar da referida imprecisão terminológica, a discussão em torno dela nada nos acrescenta em termos práticos. Aproveitemos, então, para deixá-la de lado e ir ao que interessa.

A ajuda de custo para fins de moradia não consiste, assim, em penduricalho corporativista inventado por representantes das associações de magistrados. Trata-se de benefício que, bem ou mal, é expresso em lei complementar federal, e o fato de tribunais não o observarem há décadas não foi capaz de revogar o mandamento legal. A regra impõe aos diversos tribunais a opção pelas seguintes possibilidades:

a) oferecer aos magistrados “residências oficiais” ou

b) pagar-lhes a “ajuda de custo, para moradia nas localidades em que não houver residência oficial”.

A lei não faz qualquer ressalva sobre eventual caráter temporário do benefício, nem sobre quaisquer outras circunstâncias, a exemplo de ser o juiz proprietário de outros. O texto da lei não deixa dúvidas: a ajuda de custo para moradia é devida a todos os magistrados nos locais onde não lhes seja disponibilizada residência oficial. E a regulamentação do referido dispositivo seguiu-o à risca: a Resolução 115/2014 do CNJ prevê, em seu artigo 3º, que “o magistrado não terá direito ao pagamento da ajuda de custo para moradia quando (…) houver residência oficial colocada à sua disposição, ainda que não a utilize”.

Há quem diga, porém, que o dispositivo que é objeto do presente artigo necessitaria de regulamentação legal para que pudesse ser aplicado. Em desfavor de tal argumento, diversos outros militam. O primeiro e principal deles reside no fato de que a redação do inciso II do artigo 65 da Loman ostenta densidade normativa suficiente para que se lhe possa conferir imediata obediência. No mais, outros direitos previstos no mesmo rol do artigo 65 da Loman são plenamente aceitos na administração dos tribunais, sem que em relação a eles jamais se tenha exigido lei específica, como no caso das diárias, benefício previsto no inciso IV do mesmo artigo. A prevalecer o entendimento de que falta a lei que regulamentaria o artigo 65, os juízes, desembargadores e ministros do STF e dos tribunais superiores jamais poderiam perceber diárias em suas viagens a serviço.

Além disso, ministros do STF e STJ sempre foram contemplados com imóveis funcionais ou auxílio-moradia. No âmbito do STJ, por exemplo, em 2003, seu Conselho de Administração deliberou pelo pagamento do benefício aos respectivos ministros. E o fundamento legal para tanto não pode ser outro senão a própria Loman.

O poder normativo do CNJ é outro elemento a ser aqui tido em conta. Diversas são as resoluções emanadas de tal órgão a preverem restrições e deveres impostos aos magistrados que não encontram respaldo direto na lei. São resoluções que manifestamente inovam no ordenamento e são, no geral, bem-vindas. Com muito mais razão, uma resolução que se dispõe a regulamentar um direito expresso na lei sem fugir de seus exatos limites, como é o caso da Resolução 115/2014, deve ser suficiente para que esse direito seja respeitado.

3. A natureza indenizatória do auxílio-moradia à luz dos conceitos básicos da responsabilidade civil
Assentada a legalidade do auxílio-moradia, restam algumas perguntas. Como pode um juiz que tem imóvel na cidade receber auxílio-moradia? Se o benefício tem natureza indenizatória, como pode ser percebido sem a correspondente demonstração dos custos? Essas perguntas, embora pertinentes, não se sustentam frente à mais superficial análise dos conceitos básicos da Teoria Geral da Responsabilidade Civil, especialmente no que diz respeito à responsabilidade civil por atos ilícitos.

A cláusula geral em matéria de responsabilidade civil por atos ilícitos reside na combinação dos artigos 186 e 927 do Código Civil. O primeiro assevera que: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Já o segundo tem o seguinte conteúdo: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

O caso de que trata o presente estudo é emblemático nesse contexto. Os juízes têm o direito, previsto em lei, de ter, à sua disposição, residências oficiais. Quando os tribunais, por “omissão voluntária”, não oferecem esses imóveis, violam esse direito, de modo que, assim, incorrem em ato ilícito (artigo 186 do CC). Isso os obriga, na esteira do artigo 927 do CC, a indenizar os legítimos titulares do direito. O foco da obrigação de indenizar não está na conduta daquele que teve seu direito violado, mas na conduta daquele que o violou. Quando se exige do juiz que ele não possua imóvel próprio e demonstre os gastos com aluguel, inverte-se essa lógica, relegando-se a segundo plano aquilo que deveria ser o cerne da responsabilidade civil: o ato ilícito do tribunal que, a despeito da lei, não oferece o imóvel funcional que estava por ela obrigado a oferecer.

Veja-se, a partir da comparação a seguir, como o condicionamento do pagamento do auxílio-moradia à comprovação efetiva de gastos e à ausência de imóvel próprio desvirtua completamente a lógica da responsabilidade civil. Isso equivaleria, num caso de colisão entre carros, a negar à vítima o direito à indenização porque ela mesma promoveu o conserto de seu veículo, diante da inadimplência do agente responsável. A pensar dessa maneira, teríamos de dizer:

ao juiz: “Juiz, o tribunal realmente tinha a obrigação de oferecer-lhe residência oficial e ele reconhecidamente descumpriu essa obrigação, mas como você mesmo já comprou seu próprio imóvel porque o tribunal não lho ofereceu, não terá direito a indenização alguma. Ora, se você já tem onde morar, não faz sentido que queira que o tribunal o indenize em virtude da ausência de imóvel funcional, simplesmente porque você não gastará esse dinheiro com aluguel algum”.

à vítima do acidente: “Vítima, o responsável pelo acidente realmente tinha a obrigação de consertar seu veículo e ele reconhecidamente descumpriu essa obrigação, mas como você mesma já consertou o carro porque o responsável não o fez, não tem direito a indenização alguma. Ora, se o seu carro já está funcionando, não faz sentido que queira que o responsável pelo acidente a indenize em virtude do conserto do carro, simplesmente porque você não gastará esse dinheiro com conserto algum”.

E para aqueles que acreditam que este é um esforço interpretativo exagerado, digo que o STJ tem remansosa jurisprudência em caso análogo, a utilizar os mesmos fundamentos aqui defendidos. Trata-se da análise do benefício de auxílio-transporte, previsto no artigo 1º da MP 2.165-36/2001, que instituiu, em favor de servidores da União, o direito ao pagamento de parcela destinada a custear seu transporte entre a residência e o local de trabalho.

A propósito de tal benefício, o STJ entendeu pela ilegalidade da norma contida no artigo 2º, parágrafo único, da ON 04/2011 – MPOG/SRH, que impedia que servidores a fazer uso de veículos próprios tivessem acesso ao benefício, ao tempo em que exigia deles a efetiva comprovação de gastos. O fundamento dos precedentes jurisprudenciais é exatamente o mesmo que aqui se defende: não se pode estabelecer uma condicionante que a lei não previu. No mais, quanto à natureza indenizatória do benefício, dizem esses mesmos precedentes que ela decorre, justamente, do ato ilícito praticado pelos órgãos ao não oferecer transporte funcional, o que geraria o direito à indenização, independentemente de comprovação e do fato de o servidor fazer uso de seu próprio veículo. Veja-se:

3. O acórdão recorrido não merece reparo, uma vez que está em sintonia com a jurisprudência do STJ, segundo a qual o auxílio-transporte tem por fim o custeio de despesas realizadas pelos servidores públicos com transporte, mediante veículo próprio ou coletivo municipal, intermunicipal ou interestadual, relativas aos deslocamentos entre a residência e o local de trabalho e vice-versa.

4. Não encontra respaldo na legislação vigente a necessidade de comprovação prévia das despesas relacionadas ao transporte do servidor, razão pela qual a Administração não pode proceder a tal exigência.

(REsp 1.617.987/SC, rel. ministro Herman Benjamin, DJe 19/12/2016)

Ora, esses são, rigorosamente, os mesmos fundamentos para que se mantenha a disciplina da ajuda de custo para moradia (auxílio-moradia) tal qual hoje prevista na Resolução 115/2014 CNJ. Não é difícil identificar os mesmos traços que a sedimentada jurisprudência do STJ cunhou para o auxílio transporte também no benefício pago aos magistrados e que hoje é objeto de verdadeiro e vexatório linchamento público. Vamos às comparações:

Quadro comparativo
  Auxílio-moradia (juízes) Auxílio-transporte (servidores)
Fundamento legal Artigo 65, inciso II, da Loman Artigo 1º da MP 2.165-36/2001
Destinação Ajuda de custo aos magistrados em favor de quem o tribunal não disponibiliza residência oficial Auxílio pecuniário aos servidores em favor de quem o órgão não disponibiliza transporte funcional
Utilização de bem próprio Uso de imóvel próprio pelo juiz não impede o recebimento do benefício Uso de veículo próprio pelo servidor não impede o recebimento do benefício
(Des)necessidade de comprovação de gastos Não há necessidade de demonstração de gastos com aluguel para a percepção do benefício Não há necessidade de demonstração dos gastos efetivos com o transporte
Precedentes jurisprudenciais Medida Cautelar na Ação Originária 1.773-DF, STF, min. Fux AgInt no AREsp 1.124.998; REsp 1.665.500; REsp 1.592.866; REsp 1.617.987 etc.

Deve incidir na espécie o brocardo latino segundo o qual ubi eadem ratio, ibi jus idem esse debet (onde a mesma razão, o mesmo direito). Não podem nossos tribunais dizerem, de um lado, que o uso de veículo próprio não inibe o auxílio-transporte e, de outro, afirmar que o auxílio-moradia não pode ser pago a quem tem imóvel próprio. O fundamento dos dois benefícios é o mesmo: a administração não oferece aos agentes (juízes e servidores) a benesse legal (residência oficial e transporte funcional), logo, deve indenizá-los pelo ato ilícito desse não oferecimento, independentemente de quaisquer outras circunstâncias.

4. A percepção do auxílio-moradia por juízes que residem em definitivo na comarca
Não menos raros que os questionamentos sobre juízes que possuem imóveis e percebem o auxílio-moradia são os questionamentos que se voltam contra a percepção desse benefício por juízes que moram na própria comarca. Este último questionamento traz uma contradição intrínseca: se o juiz que mora na comarca não pode receber auxílio-moradia, então o juiz que tem direito é o juiz que lá não mora? Fica parecendo que somente o juiz TQQ (terça, quarta e quinta) tem direito ao auxílio-moradia. Ele recebe o auxílio-moradia por não morar na comarca. Curioso! E tudo se acaba num grande emaranhado semântico, como, aliás, toda a discussão sobre o auxílio-moradia.

Ao que parece, procura-se dizer que aquele que reside em definitivo na localidade não deveria receber o auxílio-moradia. Mas como definir quem reside “em definitivo” na localidade? É preciso, então, estabelecer qual critério será capaz de estabelecer quem tem direito ao auxílio-moradia. De um lado, pode-se adotar o jus sanguinis, de modo a se presumir que o juiz que já está lotado no local de residência de seus ascendentes pretende lá residir em definitivo. De outro, pode-se adotar o jus solis, a permitir a presunção de que o juiz que já se encontra lotado na comarca de seu nascimento lá pretende morar em definitivo. Em um ou noutro caso, o juiz que, de acordo com o critério adotado, já reside em sua lotação definitiva não terá direito à parcela indenizatória do auxílio-moradia.

A par de que o estabelecimento desses critérios não fazer sentido algum, qualquer que seja a definição adotada para concluir pela “definitividade” da lotação, ela criará situações inusitadas. Nos exemplos de que cuida o parágrafo acima, o juiz que opta por residir num local onde não residem seus pais e distante de sua terra natal poderá sempre receber o auxílio-moradia sem problemas. Há alguma justiça nessa distinção? É o caso de se ponderar.

A carreira da magistratura é intrinsecamente marcada pela rotatividade de juízes em suas lotações. Não é possível estabelecer qualquer critério para presumir que determinado juiz ficará lotado para sempre em sua comarca atual. O sistema de promoções entre entrâncias e para o tribunal impõe essa realidade ao magistrado. Logo, qualquer que seja sua lotação, jamais se a poderá ter como definitiva.

5. Conclusão
A conclusão das ideias aqui apresentadas é tão simples quanto todo o teor do presente artigo: o auxílio-moradia encontra total respaldo na lei (artigo 65, II, da Loman) e o seu pagamento, independentemente de quaisquer condicionantes, é fruto da aplicação, à espécie, de conceitos básicos da Teoria Geral da Responsabilidade Civil. A Resolução 115/2014, tal qual hoje redigida, é perfeitamente válida.

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