Tribuna da Defensoria

Defensor pode negar defesa por pretensão contrária a precedente (parte 3)?

Autor

  • Júlio Camargo de Azevedo

    é doutorando em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) coordenador do Grupo de Estudos de Direito Processual Civil da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (GEDPC-DPSP) e defensor público no estado de São Paulo.

27 de fevereiro de 2018, 14h09

3. Estratégias de atuação frente à sistemática de precedentes
Nas duas colunas anteriores, procurou-se apresentar alguns dos possíveis problemas envolvendo a negativa de defesa judicial por parte do defensor público em relação à pretensão contrária a precedente.

No primeiro escrito, foram apresentadas as premissas dogmáticas do sistema de precedentes inaugurado pelo CPC/2015, sem prejuízo de algumas reflexões envolvendo a fundamentalidade do serviço de assistência jurídica gratuita. Assentou-se, ademais, que a recusa de atuação do defensor público não pode legitimar nova e infeliz barreira ao acesso à Justiça dos vulneráveis.

Já no segundo texto, foram levantadas algumas balizas para a atividade denegatória, representadas pela adequada identificação das razões de decidir (ratio decidendi), pela separação das questões anexas impertinentes (obter dicta), pela certificação da não ocorrência de distinção (distinguishing) ou superação (overruling), além da adequada fundamentação da recusa. Argumentou-se, ainda, pela necessidade de respeito aos direitos dos usuários — direito à informação, direito de ter sua pretensão revista e direito à atuação extrajudicial —, apontando, ao final, os ganhos que uma adequada normatização institucional alcançaria em termos de litigância estratégica.

Neste terceiro e derradeiro texto, aborda-se uma situação espinhosa: convencido acerca da viabilidade da pretensão, quais estratégias pode o defensor público adotar para evitar as penalidades processuais impostas pela sistemática de precedentes?

De início, é preciso desmistificar a ideia de que pensar estratégias de atuação frente à sistemática de precedentes implique ode à violação das normas e valores perseguidos pelo CPC/2015 (uniformidade, estabilidade, integridade e coerência). Trata-se, ao invés, de buscar a melhor defesa possível ao público assistido a partir de saídas oferecidas pelo próprio sistema, evitando que o atuar institucional confunda-se com indesejada improbidade processual.

Nessa linha, a fim de evitar as sanções processuais impostas pela sistemática de precedentes, imprescindível o domínio de duas técnicas processuais pelo defensor público: a técnica da distinção (distinguishing) e a técnica da superação (overruling).

Em breve síntese, o distinguishing cuida da distinção operada pelo defensor público entre o caso ajuizado e a decisão paradigma indicada como precedente. A partir dessa diferenciação, identificam-se os elementos peculiares da segunda causa levada ao conhecimento judiciário, impedindo a aplicação da mesma razão de decidir (ratio decidendi) ao caso concreto subsequente.

Digno de nota, referida técnica encontra-se expressamente agasalhada no CPC/2015, o qual admite que as partes promovam o debate a respeito da distinção do caso apresentado em relação ao precedente anteriormente firmado (artigo 1.037, parágrafos 9º e 12) ou mesmo rescindam a decisão de mérito que não considere a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento (artigo 966, parágrafo 5º). A regra volta-se principalmente aos juízes, que não podem deixar de observar a distinção por ocasião da aplicação do precedente, sob pena de odioso vício de fundamentação (artigo 489, parágrafo 1º, inciso VI).

A técnica da distinção, porém, não se confunde com a ideia de superação do precedente (overruling). Nesta, a proposta é a eliminação do próprio precedente (ou, ao menos, parcela dele), seja por revogação expressa do tribunal, seja pela edição de texto de lei que o contrarie. Há, aqui, verdadeira atividade substitutiva, o que implica na consequente exclusão do precedente do sistema de fontes normativas.

Importante ter em vista que a superação somente pode ser levada a efeito pelo próprio tribunal prolator da decisão que aplicou o precedente. De outra banda, não se admite que tribunais inferiores, juízes de primeiro grau ou que as próprias partes pretendam superar os precedentes em suas decisões ou arrazoados. O que se permite a esses atores é a mera provocação da superação do precedente, mediante a exposição de razões que conduzam ao overruling. Contudo, quem efetivamente realiza a superação é o órgão prolator da decisão que aplicou o precedente.

Não obstante a existência dessas duas técnicas, já bastante decantadas na doutrina processual, possível pensar ainda em outras duas perspectivas de atuação, mais engenhosas a nosso sentir, voltadas especificamente à litigância estratégica da Defensoria Pública.

A primeira proposta consiste na utilização de argumentos pautados em tratados internacionais de direitos humanos e decisões das cortes internacionais de direitos humanos como fundamento para a distinção/superação do caso precedente ou padrão decisório fixado como paradigma.

O objetivo: instar os tribunais a confrontar o direito interno reproduzido no acordão com a normativa internacional de direitos humanos. Nessa linha, argumenta Paiva: “Outra técnica que pode ser muito eficaz para impugnar o precedente, desde que utilizada de forma oportuna e adequadamente, consiste na invocação de dispositivos de tratados internacionais de direitos humanos e também da jurisprudência dos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos, não apenas como mero argumento de autoridade diante da sua eficácia vinculante para o Brasil, mas principalmente como argumento persuasivo-preventivo no sentido de demonstrar para o Tribunal que a manutenção do precedente poderá ensejar a denúncia do caso para uma instância internacional”[1].

Com efeito, uma análise minuciosa dos dispositivos contidos em tratados internacionais e, principalmente, da jurisprudência das cortes internacionais de direitos humanos[2] pode escancarar inúmeras contradições entre o direito proclamado pelos tribunais pátrios e o direito internacional dos direitos humanos, impulsionando um novo modo de agir processual frente à necessidade de distinção/superação de precedentes judiciais.

Considerando que a Defensoria Pública é a instituição que detém entre suas funções cardeais a missão de promover a defesa dos direitos humanos (artigo 134, caput, CF/1988), evidencia-se a absoluta adequação dessa atividade de oxigenação da jurisprudência à luz dos tratados e da jurisprudência internacional.

Doutro giro, ainda que se projete uma visão pessimista em relação à modificação da jurisprudência interna a partir dessa atuação estratégica, fato é que os pretórios não poderão deixar de admitir demandas e recursos da Defensoria Pública, tampouco apontar eventual conduta de improbidade processual, uma vez que a técnica de distinção ou superação operada à luz dos direitos humanos encontrará guarida no próprio CPC/2015.

Há, ainda, outra estratégia que parece calhar ao debate proposto, a qual pode ser levada a efeito a partir da distinção entre enunciados de súmula, jurisprudência e precedente.

Consoante é cediço, embora reproduzidos por má técnica legislativa no mesmo dispositivo legal (artigo 927), as súmulas, a jurisprudência e o precedente são institutos jurídicos que não se confundem.

No que toca ao legítimo precedente, a extração da razão de decidir decorre sempre de um caso individualizado, umbilicalmente imbricado a uma hipótese fática determinada, aplicável a casos similares futuros. As súmulas, a seu turno, consubstanciam enunciados que sintetizam uma jurisprudência dominante, não se vinculando a casos singulares passados. São textos genéricos e abstratos, redigidos por órgãos judiciais colegiados. Esse mesmo raciocínio se aplica à jurisprudência dominante, a qual pressupõe a reiteração de julgados sobre um mesmo assunto, sem um alinhamento íntegro e coerente das razões de decidir. Funcionam como a replicação de partes dispositivas de acórdãos, sem observância de uma unidade de fundamentação.

Nessa toada, apesar da inscrição no artigo 927 do CPC/15 dos entendimentos sumulares e do direito jurisprudencial, esses institutos nem sempre ostentarão eficácia normativa obrigatória, seja pela ausência de vinculação a uma base fática anterior, pela falta de qualidade ou consistência de seus argumentos ou mesmo pela impossibilidade de extração de uma adequada razão de decidir[3].

Nessa perspectiva, advoga-se que não necessariamente caberá ao defensor público negar a defesa judicial por pretensão contrária à súmula ou à jurisprudência dominante, entendimento que equipararia esses institutos ao precedente, representando um transporte inadequado da técnica do stare decisis a enunciados sem vinculação fática ou integridade das razões de decidir.

Entrementes, à margem de fundamentação concreta e da indicação precisa das circunstâncias fáticas que motivaram a criação do entendimento sumular, os tribunais não poderão exigir idêntica vinculação com base no regime de precedentes, sob pena de violação ao artigo 926, parágrafo 2º, do CPC/2015[4].

Sob esse prisma, enquanto instrumento do regime democrático e instituição responsável pela defesa judicial de grupos marginalizados, à Defensoria Pública sempre cumprirá um papel inovador perante as cortes de vértice, eis que invariavelmente provocará alterações de súmula e jurisprudência ao conferir voz a minorias e grupos vulneráveis.

Não se trata de franquear à Defensoria Pública uma licença jurídica para não seguir os enunciados de súmula ou a jurisprudência dominante. Trata-se, ao invés, de reconhecer um perfil institucional muitas vezes voltado à defesa de interesses contramajoritários, inerente a grupos que não compartilham do mesmo reconhecimento frente às instâncias normativas de poder.

Daí a necessidade de perspicácia ao lidar com a temática dos precedentes, afastando-se de interpretações que impliquem novos obstáculos ao acesso à Justiça.

4. Conclusão
Como visto, há perigos no caminho daqueles que se aventuram a litigar contra o precedente. Ao defensor público cumpre, portanto, compreender adequadamente os meandros de uma teoria dos precedentes judiciais, identificando seus fundamentos, pressupostos, requisitos de aplicação, bem como as vantagens, ônus e limites de sua aplicabilidade.

Necessário refletir ainda acerca das balizas que devem orientar a atividade institucional denegatória, primando pelo respeito aos direitos dos usuários. Indispensável, por fim, pensar estratégias processuais que permitam evitar as sanções impostas pela nova codificação, garantindo, dessa forma, viabilidade à pretensão instrumentalizada.

Ao longo destes três singelos textos, tentou-se contribuir com referido debate. Que as boas oportunidades trazidas pela sistemática de precedentes não sejam perdidas, desvirtuadas ou importem novo e ilegítimo engessamento do acesso à Justiça. É o que, humildemente, se deseja.


[1] PAIVA, Caio Cezar. Prática Penal para Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 296. No mesmo sentido, o defensor público paulista Júlio Grostein havia se manifestado a respeito da mutação constitucional: “Depreende-se dessa atribuição, portanto, que eventual violação grave a um direito protegido internacionalmente faz com que o Defensor natural empreenda esforços, junto à jurisdição interna, para convencer o(s) julgador(es) acerca da ofensa a algum dispositivo internacional, quando pertinente a alegação. Nesse contexto, permite-se que os tribunais nacionais sejam instados a se manifestar sobre parâmetros internacionais de direitos humanos, o que, evidentemente, constitui campo fértil para a mutação constitucional”. GROSTEIN, Julio. O papel da Defensoria Pública na mutação constitucional: um enfoque à luz das atribuições institucionais. In: RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri; SOARES DOS REIS, Gustavo Augusto (coords.). Temas aprofundados da Defensoria Pública. Volume 2. Salvador: Juspodivm, Salvador, 2014, p. 654.
[2] Sobre o tema, conferir a obra Paiva, Caio Cezar; ARAGON, Thimotie Heemann. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2 e. Belo Horizonte: Editora CEI, 2017.
[3] Sobre a eficácia da jurisprudência, ensina Mancuso: "(…) donde ser útil fixar como critério identificador da jurisprudência a aptidão, própria de uma interativa coleção de acórdãos consonantes sobre uma dada questão de direito, para se irradiar expansivamente, em maior ou menor dimensão, projetando força persuasiva, assim operando no plano da influência". MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas — a luta contra a dispersão jurisprudencial excessiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 15.
[4] Hoje existem cerca de 1.318 enunciados sumulares no Brasil, contabilizando-se apenas as cortes superiores (736 do STF e 582 do STJ). São mais enunciados do que dispositivos no Código de Processo Civil (1.072), o que nos faz questionar se não há, de fato, uma inversão dos papéis legiferante e jurisdicional no caso das súmulas.

Autores

  • é defensor público no estado de São Paulo, mestrando em Direito Processual Civil pela USP, especialista em Direito Processual Civil pela Unesp, coordenador auxiliar do Grupo de Estudos de Direito Processual Civil da Defensoria Pública de São Paulo e membro do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro).

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