Opinião

Justiça Criminal não deve ser orientada por estatísticas e números

Autor

  • Antonio Ruiz Filho

    é advogado criminalista e presidente da Comissão de Defesa da Democracia e de Prerrogativas da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv). Foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e diretor da Secional paulista da OAB e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

26 de fevereiro de 2018, 6h15

O raciocínio formulado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Rogerio Schietti Cruz exposto no jornal Folha de S.Paulo (2/1) — amparando-se em 1,64% de decisões em recursos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça para absolver ou substituir a pena —, não pode conduzir à conclusão de que a prisão após o julgamento perante o segundo grau de jurisdição seja incontestável necessidade, à vista do que consideraram “fatos”.

Segundo os ilustres ministros, se o STJ em 98,36% dos casos não modifica condenações, justo seria aplicar a pena antes de tais julgamentos. Por essa apreciação estatística, pretendem justificar a manutenção de prisões que não decorrem de decisões definitivas — agora mais conhecidas como prisão na segunda instância. Não podemos concordar com esse ponto de vista.

Voltemos ao início da discussão para compreender do que se trata. O Supremo Tribunal Federal, orientado pelo princípio constitucional da presunção de inocência, firmara jurisprudência no sentido de que o cumprimento de pena dependeria de decisão condenatória definitiva. Ao julgar Habeas Corpus em 2016, o saudoso ministro Teori Zavascki decidiu que a antecipação do cumprimento da pena, para a fase de julgamento do recurso após a condenação no primeiro grau — constituindo execução provisória da condenação —, não “comprometeria” a presunção de inocência, posição que se tornou majoritária na Suprema Corte. Foi o que bastou para todos os tribunais do país, sem outra fundamentação, decretarem prisões a granel, mesmo que a condenação fosse passível de outros recursos aos tribunais superiores.

A discussão sobre o tema tomou vulto nacional. Hoje cada brasileiro tem opinião sobre prender ou soltar alguém em tal ou qual fase processual. A condenação do ex-presidente Lula, induvidosamente, colaborou para insuflar posições a esse respeito.

Apesar de flexibilizado o preceito constitucional da presunção de inocência pelo STF, ainda havia obstáculo criado pela Lei 12.403 de 2011, que modificou substancialmente o artigo 283 do Código de Processo Penal para estabelecer: “Ninguém poderá ser preso senão (…) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”. Como se vê, o comando da Constituição foi materializado em lei ordinária, assim impedindo que a pena pudesse ser cumprida antes de decisão definitiva. Açodados, um partido político (PEN) e a própria OAB foram ao Supremo pedir que a lei fosse validada. Ao contrário, o plenário da Suprema Corte decidiu liminarmente, por um voto de diferença, que esse dispositivo legal tivesse sua validade suspensa. As ações ainda não foram julgadas.

Ainda que fosse possível relativizar o princípio constitucional da presunção de inocência, o artigo 283 do CPP, por ser a expressão de mandamento da Constituição, se tornou lei por vontade de representantes do povo — a submissão de todos à lei está na gênese do Estado Democrático de Direito. Pouco importa nesta matéria o que diz a legislação de outros países ou a percepção popular sobre impunidade. No Brasil é assim porque a Constituição Federal e a lei ordinária assim o determinam. Quem queira algo diferente pode trabalhar no sentido de modificar a estrutura normativa vigente, mas não simplesmente desprezá-la ou adaptá-la a conveniências. Aliás, esta é a razão pela qual atualmente se critica um certo ativismo judicial, forma de a vontade do juiz sobrepor-se ao império da lei a que suas decisões deveriam estar submetidas.

Para este tema é indiferente que as decisões do STJ sejam numa ou noutra direção, e que se faça, percentualmente, mais ou menos justiça. Interessa, todavia, constatar, a propósito do baixíssimo índice de recursos providos pelo STJ, que o recurso àquele tribunal superior não tem nenhum prestígio: ou a ele se nega seguimento na origem, ou os argumentos nele expostos não são aceitos pelos ministros da Corte Superior. A consequência imediata é a verdadeira enxurrada de Habeas Corpus impetrados para suprir a falta de efetividade dos recursos. A demanda pela jurisdição não pode ser contida, antes, tem de ser resolvida.

Outro ponto relevante quanto à prisão em segunda instância, é que não se pode prender ninguém sem fundamentação adequada apenas porque se atingiu alguma fase processual, que não seja a condenação definitiva. O STF, depois da guinada jurisprudencial que permitiu a execução provisória das penas, já advertiu que as decisões para prender não podem ser automáticas, baseadas exclusivamente na nova interpretação do princípio da presunção de inocência, devendo ser fundamentadas sob pena de nulidade, como o exige o artigo 93, IX, da Constituição Federal, para todas as decisões judiciais, mais ainda quando se trate de restringir a liberdade. Espera-se que mais este princípio não se torne letra morta.

Ao que parece, as pessoas que na visão dos ministros tornaram-se percentual desprezível, terão sido presas injustamente, o que, na sua ótica, justificaria prender mesmo assim, e mantê-las em condições reconhecidamente deletérias até que sejam salvas pela concessão de habeas corpus ou medida cautelar — veja-se a importância de não restringir o habeas corpus, tão combatido nas instâncias superiores.

Pessoas presas por erro, depois corrigido por um tribunal superior, impõe, isto sim, adotar postura inversa: prender alguém apenas quando haja motivos fortes e concretos, depois de afastadas as medidas alternativas. É preciso nunca olvidar que a Justiça Criminal trata de vidas humanas, e, por essa razão, estatísticas e números não devem orientar suas decisões.

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    é advogado criminalista, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Foi diretor da secional paulista da OAB, presidente da sua Comissão de Direitos e Prerrogativas e diretor adjunto do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) por duas gestões.

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