Opinião

A polêmica do ato de ofício para o crime de corrupção passiva

Autor

26 de fevereiro de 2018, 7h28

Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, não é o primeiro ex-presidente brasileiro a ser acusado do crime de corrupção passiva. Também o ex-presidente Fernando Collor de Mello foi denunciado perante o Supremo Tribunal Federal, entre outros delitos, pela suposta prática do crime previsto no artigo 317 do Código Penal. Quanto à aplicação da norma penal um precedente deveria vincular o outro. A qualquer cidadão parece injusto que uma pessoa seja condenada por uma conduta enquanto outra é absolvida pela prática de ato bastante análogo.

Em relação ao delito de corrupção passiva, o Poder Judiciário tem dado interpretação ao artigo 317 do Código Penal absolutamente diversa do que fora decidido pelo STF no âmbito da AP 307-3/DF. Não apenas no caso Lula, mas em diversos outros precedentes da denominada operação "lava jato", tem-se prescindido da comprovação do nexo de causalidade entre o recebimento de uma determinada vantagem e um ato de ofício determinado do funcionário público. No caso Collor, foi a primeira vez que a discussão, quanto à (des)necessidade do ato de ofício para a configuração do delito de corrupção, surgiu com certo aprofundamento.

Na AP 307-3/DF, o STF deixou bastante claro que é necessário a demonstração de um ato de ofício concreto, relacionado com a função pública desempenhada pelo agente do delito de corrupção passiva. Muito embora, no precedente, tenha sido reconhecido o recebimento de vantagem ilícita por parte do ex-presidente, consistente na doação do automóvel Fiat Elba e de uma reforma na Casa da Dinda, Collor foi absolvido pelo artigo 317 do CP. Isso porque não havia a indicação de qual promessa ou ato específico o ex-presidente teria praticado em troca de tais benefícios. O Plenário do Supremo Tribunal Federal deixou bem claro que:

Para a configuração do artigo 317, do Código Penal, a atividade visada pelo suborno há de encontrar-se abrangida nas atribuições ou na competência do funcionário que a realizou ou se comprometeu a realiza-la, ou que, ao menos, se encontre numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo, assim acontecendo sempre que a realização do ato subornado caiba no âmbito dos poderes de fato inerente ao exercício do cargo do agente.

No material juntado aos autos da AP 307-3/DF, destaca-se o parecer de Eugênio Raúl Zaffaroni, em que o professor relembrou a existência de uma corrente ibérica que tipifica expressamente a figura de aceitação de dádivas ou de presentes sem vinculação com ato ou omissão alguma do funcionário público. De outro lado, segundo Zaffaroni, a tradição brasileira firmou-se no sentido de que o bem jurídico referenciado no art. 317 do Código Penal apenas é ofendido quando a vantagem oferecida guardar nexo causal com um ato de ofício do funcionário público. Para o mencionado parecerista, decorre do bem jurídico referenciado na norma a necessidade de vinculação entre os atos de solicitar, receber ou aceitar vantagem indevida com o ato de ofício.

Realmente, a relação entre a vantagem indevida e o ato de ofício é o que assinala o conteúdo de injusto da ação, ou seja, é aquilo que caracteriza o fato como corrupção passiva. Sem o ato de ofício, o crime de corrupção passiva se tornaria um delito de enriquecimento ilícito do funcionário público. Não haveria a efetiva necessidade de violação ao bem jurídico probidade administrativa. O bem jurídico, inegavelmente, seria diverso. Exatamente para diferenciar o crime de corrupção de atos do cotidiano, tal como o recebimento de um presente, ou de ações privadas praticadas no âmbito da repartição, é indispensável a existência de uma relação de causalidade entre a vantagem indevida e a realização de ato de ofício a ela vinculado. Dito de outra maneira, sem o ato de ofício, a corrupção perderia como objeto de tutela a administração pública e os deveres legais a ela correlatos.

Ainda no Caso Collor, o Supremo Tribunal Federal, por meio do voto-condutor, assinalou, com precisão, a distinção entre o delito de corrupção e a conduta de recebimento de vantagens por parte do funcionário público, não criminalizada em nosso país. Na ocasião, explicitou-se que não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, o crime de recebimento de vantagens indevidas se essas não guardarem um nexo causal com o ato de ofício concreto do agente público. Para a configuração da corrupção são imprescindíveis duas prestações recíprocas:

É que, do direito brasileiro, se excluiu a hipótese de punição, a título de corrupção passiva, das dádivas solicitadas ou recebidas, ou oferecidas e prometidas, assentando-se a corrupção, de modo real ou virtual, na existência de duas prestações recíprocas, a comporem um pseudo-sinalagma, que, no dizer do penalista luso Antônio Manuel de Almeida Costa, constitui o apanágio do suborno e consubstancia a lesão efetiva da “autonomia intencional” do Estado, como bem jurídico tutelado pela norma que o sanciona. (Fl. 28 do voto do ministro Ilmar Galvão, na AP 307, STF).

Já no caso Lula, na sentença, com todo respeito, o juiz não conseguiu precisar qual seria, de fato, o ato de ofício atribuível ao acusado. Pelo contrário, há uma evidente confusão de datas, fala-se em recebimento de vantagem num período em que o ex-presidente sequer funcionário público era. O próprio Juízo reconhece a impossibilidade de se identificar um ato de ofício concreto. Contudo o juiz Sergio Moro tangencia a exigência legal com base em argumentos de política criminal de combate à macrocriminalidade (Fl. 214 da sentença):

Tal compreensão [aceitar ato de ofício com certo grau de indeterminação] é essencial em casos de macrocorrupção envolvendo elevadas autoridades públicas, especialmente quando o crime de corrupção envolve não um ato isolado no tempo e espaço, mas uma relação duradoura, o que é o caso quando o pagamento de vantagem indevida é tratado como uma "regra de mercado" ou uma "obrigação consentida" ou envolve uma "conta corrente informal de propinas" entre um grupo empresarial e agentes públicos.

A aplicação da Lei Penal não pode variar de acordo com a pessoa acusada. Ela é um imperativo com vigência e aplicabilidade para todos os cidadãos, independentemente da posição ocupada na administração pública. Em suma, o artigo 317 do Código Penal tem o mesmo teor proibitivo para qualquer funcionário público. O que pode aumentar, conforme o disposto no artigo 327, § 2º, do CP, é o desvalor da conduta, a depender do locus ocupado na administração pública pelo agente.

De toda sorte, a acusação contra o ex-presidente Fernando Collor também se tratava de um suposto escândalo envolvendo elevadas autoridades públicas e, ainda assim, o STF teve a serenidade necessária para a devida aplicação da lei penal. No caso Lula, o afastamento das exigências legais de aplicação do artigo 317 do CP é um indicativo de que o tratamento conferido ao ex-presidente foi sim um ponto fora da curva.

O tratamento não isonômico fica ainda mais evidente no acórdão de apelação proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que prescindiu por completo do ato de ofício para a configuração do tipo penal de corrupção passiva (Fl. 114 do acórdão):

O tipo penal, diversamente da prevaricação, dispensa a ocorrência de ato de ofício, exigindo-se somente a solicitação/recebimento de vantagem indevida em decorrência do cargo ou função. Trata-se de crime formal que se concretiza com a solicitação ou o recebimento da benesse, de modo que a prática efetiva de ato de ofício não consubstancia elementar do tipo penal, mas somente causa de aumento de pena (§ 1º do artigo 317, CP).

Conforme o trecho do acórdão acima reproduzido, o ex-presidente Lula foi claramente condenado por um delito que não existe no ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, o de enriquecimento ilícito. Eugênio R. Zaffaroni, no parecer apresentado no caso Collor, assinalou bem a diferença entre o crime de corrupção passiva e a tradição ibérica de se criminalizar o puro e simples recebimento de benefícios por funcionário público. Não demonstrado o ato de ofício concreto atribuível ao presidente, haveria a conduta de enriquecimento ilícito, não criminalizada no Brasil.

Que fique claro, o Plenário do STF, na AP 307-3/DF, já decidiu que o recebimento de vantagem, por si só, não é suficiente para a configuração do crime de corrupção passiva e que o ordenamento jurídico brasileiro não criminaliza o recebimento de presentes ou benefícios por parte de funcionário público se a vantagem não guardar um nexo causal com um ato de ofício determinado. É, com todo respeito, inexplicável sob o ponto de vista jurídico que o Poder Judiciário tenha se esquecido da discussão travada na AP 307-3/DF e tenha proposto uma solução específica para o ex-presidente Lula. Como já dito, é necessário isonomia na aplicação da Lei penal.

Autores

  • é advogado criminalista em Brasília, professor voluntário de Direito Penal na UnB, especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP, especialista em Direito Penal Econômico e em Parte Geral pelo IBCCRIM.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!