Embargos Culturais

O Pianista, o Holocausto e a música como elevação e resistência da condição humana

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de fevereiro de 2018, 8h00

Spacca
O desastre histórico que decorre do desespero do ser humano civilizado em face da barbárie nazista é recorrente todas as vezes nas quais nos damos conta da violência que marca a experiência humana. É também o ponto de partida para a moderna dogmática dos direitos fundamentais. O agente definidor da reação civilizatória aos horrores do nazismo se desdobrou também na construção do texto constitucional alemão de 23 de maio de 1949 e na criação de um tribunal defensor do núcleo dessa Constituição, que principia afirmando que a dignidade da pessoa humana é inviolável.

A reminiscência dos campos de extermínio suscita intensa produção bibliográfica, a exemplo das memórias de Primo Levi, texto que referencia um gênero literário, com foco na memória do sofrimento nos campos de concentração. O assunto é permanentemente levado para o cinema, a exemplo de A Lista de Schindler (dirigido por Steven Spielberg), O Menino do Pijama Listrado (dirigido por Mark Helman) e O Pianista (dirigido por Roman Polanski), entre tantos outros.

Este último filme, O Pianista, no qual qualquer pessoa minimamente sensível à dor humana chora do início ao fim, decorre do magistral livro de memórias de Wladyslaw Szpilman[1]. Foi com as notas do piano na cabeça que Szpilman, que era pianista, padeceu e sobreviveu aos horrores do gueto de Varsóvia e da violência da Gestapo na Polônia. As recordações dessa tragédia, suportada pela música, confirmam o poder da arte sobre nossas vidas.

E foi também na Polônia, mais precisamente em Gdańsk, a antiga Danzig, que outro episódio, ainda que prosaico, também nos comprova a magia da música. Conta-nos um dos biógrafos de Arthur Schopenhauer que o filósofo pessimista alemão, ainda garoto, viveu uma profunda impressão da maravilha da música[2]. De sua mãe, Schopenhauer soube que um conhecido violoncelista, “possuído pela leviandade conferida pela animação do vinho, apostou que conseguiria enfrentar as feras que eram soltas pela noite”[3].

O músico, assim, passou a perambular pelas ruas de Danzig quando se viu atacado por uma matilha ruidosa. Eram mastins que latiam com intensidade e que ameaçam avançar. Forte na aposta, o violoncelista encostou-se na parede e começou a tocar seu instrumento, movimentando o imponente arco. Então, “os cães pararam, surpresos e enquanto ele tocava animadamente suas sarabandas, polonesas e minuetos, os mastins se acalmaram, deitaram-se a seus pés e o escutaram atentamente”[4]. Schopenhauer intuiu da estória o poder da música. A música é “capaz de expulsar e acalmar de igual maneira os incômodos e inquietações perigosas” que nos ameaçam.

Wladyslaw Szpilman, ainda que metaforicamente, escorou-se no poder libertador da música para sobreviver ao inferno no qual se viu atirado. Foi na música que conseguiu forças para enfrentar a matilha nazista. Ainda no início da narrativa, quando os nazistas começavam a tomar a Polônia, o pianista referia-se a seu pai, que se refugiava no violino: “Meu pai foi o primeiro a dedicar-se à música. Tocava por horas a fio o seu violino, ausente assim da realidade. Quando alguém trazendo más notícias tentava afastá-lo do instrumento, ele ouvia com ar preocupado e a testa franzida para dizer depois com o rosto sereno: Mas isto pouco significa! (…) Essa reação era o seu jeito de se isolar no extraterreno mundo da música, no qual se sentia melhor”[5]. O apego à música era uma característica dessa família de judeus.

Szpilman explica-nos como tomou conhecimento de que os nazistas tomaram Paris, em 1940. O fato era mais um drama que anunciava a morte iminente. Conta-nos que ensaiava com amigos. Uma parente chegara com uma edição extra do jornal, que justamente noticiava a vitória alemã na França. Registrou, então, que apoiou a cabeça no piano e caiu em prantos[6].

O pianista media o tempo pelas peças que acompanhava ao piano, exatamente como nós medimos o tempo pelos dias e horas[7]. No filme, é assustadora a cena na qual Szpilman escondia-se dos perseguidores nazistas quando subitamente encontrou um piano. Sentado junto ao instrumento, dançava com as mãos vários arpejos, acordes, diminutas e bemóis. Eram sons que ouvia apenas numa imaginação nostálgica vertida na universalidade da harmonia pedida da existência. Os timbres estavam em sua alma, enquanto seus dedos apenas apontavam, mas não tocavam, as 88 teclas do piano, que consistem em sete oitavas e uma terça menor. Qualquer ruído lhe custaria a vida. Era seu êxtase. E era sua tragédia. A partir de então se multiplicaram as situações de pânico, de dor, do toque de recolher, de desespero e de fome:

“Os loucos não tomavam conhecimento do toque de recolher. Para eles, não tinha qualquer significado. Nem para eles, nem para as crianças que emergiam de seus esconderijos nas últimas horas do dia, na esperança de conseguirem, àquela hora, despertar alguma piedade dos corações humanos. Colocavam-se ao longo das paredes, junto aos postes de iluminação e nas calçadas, choramingando monotonamente que sentiam fome (…) Mas quase ninguém tinha uma mísera cebola, e mesmo se alguém tivesse, não teria coração. A guerra havia transformado os corações em pedras”[8].

Milagres há. Szpilman sobreviveu. Conta-nos também que ao fim da guerra eventualmente deu recitais justamente num prédio onde carregara tijolos e cal, e onde muitos habitantes do gueto foram fuzilados, logo depois que concluíram a construção dos alojamentos dos oficiais da Gestapo. O prédio fora transformado numa escola. Conta-nos que nesse prédio tocava para crianças que não tinham a mais vaga noção do sofrimento e pavor que passara naquelas ensolaradas salas de aula[9].

A música é uma permanente fonte de vida. É a música que consolou um célebre guitarrista inglês, Eric Clapton, que perdeu o filho, Conor[10], e que perguntou em inesquecível canção se a criança saberia seu nome, acaso se encontrassem no céu…

Porque é com a música, e com as emoções que as concordâncias musicais provocam, que alcançamos o divino, conversamos com o transcendente, suportamos as dores e celebramos a vida[11].


[1] SZPILMAN, Wladyslaw, O Pianista, Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2003. Tradução de Tomasz Barcinski.
[2] SAFRANSKI, Rüdiger, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, São Paulo: Geração Editorial, 2011, p. 37. Tradução de William Lagos.
[3] SAFRANSKI, Rüdiger, cit., loc. cit.
[4] SAFRANSKI, Rüdiger, cit., loc. cit.
[5] SZPILMAN, Wladyslaw, cit., p. 38.
[6] SZPILMAN, Wladyslaw, cit., p. 53.
[7] A imagem é de Wladyslaw Szpilman, a propósito de um emérito pianista radiofônico, professor Ursztein. SZPILMAN, Wladyslaw, cit., p. 19.
[8] SZPILMAN, Wladyslaw, cit., p. 81.
[9] SZPILMAN, Wladyslaw, cit., p. 198.
[10] CLAPTON, Eric, The Autobiography, London: Arrow Books, 2007, pp. 267-8.
[11] Dedico esse pequeno ensaio à minha mãe, Leila Moraes Godoy, cuja imagem, junto a um piano, é permanente alegria do filho apaixonado e agradecido.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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