Opinião

Caso mostra conflito de municípios sobre domínio dos bens vacantes

Autor

  • Beatriz de Sousa Gonçalves

    é advogada pública da Procuradoria do Município de Duque de Caxias pós-graduada em Direito Empresarial pela Ibmec-RJ e mestranda em Direito Público pela Universidade de São Paulo (USP).

24 de fevereiro de 2018, 10h33

Inicialmente, não é novidade para nenhum operador do Direito que as lacunas da lei devem ser supridas pela analogia, costumes, doutrina e jurisprudência. Talvez esse seja, inclusive, um dos maiores mantras repetidos pelos professores de Introdução ao Estudo do Direito ou Teoria do Direito.

No entanto, se deparar concretamente com uma dessas situações diante de uma Constituição extremamente analítica e de leis infraconstitucionais que tratam sobre uma infinidade de temas, tem se tornado cada vez mais difícil. Frise-se: difícil não é impossível.

Nesse sentido, ao se analisar um processo sobre herança vacante, há de se indagar: a quem cabe a propriedade dos bens vacantes? Há regra sobre isso? E se existir mais de um município envolvido na discussão? A resposta que, a princípio, poderia parecer fácil, na verdade apresenta-se como mais trabalhosa do que o normal, visto que além de não existir nenhuma previsão legal sobre o tema, também não há doutrina ou jurisprudência que responda tais dúvidas.

Possivelmente, então, neste momento, alguém poderia pensar que somente não há previsão legal, doutrinária ou jurisprudencial por ser um caso altamente improvável ou até mesmo impossível. Pois bem, esse exato caso surgiu no município de Duque de Caxias, nos autos da ação de reconhecimento de herança vacante 0061343-70.2016.8.19.0021[1], comprovando-se o argumento de que, não obstante ser difícil encontrar lacunas da lei nos dias atuais, tal feito não é impossível.

No caso supracitado, o autor da herança, trabalhador que prestava serviços no município de Duque de Caxias, apesar de ter falecido sem deixar testamento ou herdeiros, tinha verbas trabalhistas a receber perante uma das varas trabalhistas de Duque de Caxias – local este em que o processo trabalhista tramitou inteiramente.

Assim, o município de Duque de Caxias ajuizou, perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro — mais especificamente, na comarca de Duque de Caxias —, a referida ação de reconhecimento de herança, já que nada seria mais justo do que o domínio dos bens vacantes pelo município onde eles se encontram, certo? Bem, pode até ser mais justo, mas, diante do clássico positivismo brasileiro, não precisaríamos de alguma lei para fundamentar essa decisão?

É neste ponto que começa o árduo trabalho do operador de Direito, pois não há previsão legal dispondo a quem caiba o domínio do bem vacante, mas tão somente de quem é a competência para “arrecadar os respectivos bens”, que é, faz-se saber, a “comarca onde o falecido tiver domicílio” (art. 738 do CPC/15).

“Art. 738 do CPC/15: Nos casos em que a lei considere jacente a herança, o juiz em cuja comarca tiver domicílio o falecido procederá imediatamente à arrecadação dos respectivos bens.”

Sabendo-se que o objeto do presente trabalho não é diferenciar herança jacente e herança vacante, mas sendo importante mencionar a distinção entre ambas, há de se dizer que o art. 738 do CPC/15 se aplica também à herança vacante, uma vez que a herança jacente é aquela que fica sob a guarda e administração de um curador até que se encontre um herdeiro hábil e, não sendo reclamada a herança por nenhum herdeiro, esta será declarada como vacante, conforme dispõe o art. 743, caput, do CPC/15. Em outras palavras: a herança jacente sempre é anterior à herança vacante.

Destarte, sendo inconteste a regra de competência para a arrecadação dos bens deixados pelo autor da herança, dada a clareza do art. 738 do CPC/15, foi indubitavelmente acertada a decisão da 3ª Vara Cível da Comarca de Duque de Caxias, nos autos do processo 00061343-70.20168.19.0021, de declinar de sua competência para uma das varas da Comarca de Nova Iguaçu – comarca onde o de cujus tinha domicílio.

Urge salientar, nesse diapasão, que a competência prioritária do município na obtenção do domínio do bem vacante foi prevista a partir da edição da Lei 8.049/1990, tendo sido referendado pelo Código Civil de 2002, que, no seu art. 1.822, afirma que: “A declaração de vacância da herança não prejudicará os herdeiros que legalmente se habilitarem; mas, decorridos cinco anos da abertura da sucessão, os bens arrecadados passarão ao domínio do Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União quando situados em território federal”.

Todavia, a dúvida ainda permanece: a qual dos dois municípios cabe o domínio das verbas trabalhistas deixadas pelo autor da herança? Ao município de Duque de Caxias ou ao município de Nova Iguaçu?

Sabendo-se que não há previsão legal específica ou doutrina sobre o tema, após diversas buscas em outras fontes de Direito, é indispensável se mencionar o voto do desembargador Paulo Alcides, da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento 0132451-72.2012.8.26.0000.

HERANÇA VACANTE. Inaplicabilidade das regras gerais pertinentes aos herdeiros, porque o Município não ostenta esta condição, recebendo o bem situado na sua jurisdição no estado em que se encontra, com suas dívidas e direitos. Assim, configura-se descabida a pretensão de que o bem situado em outro município e por ele adjudicado responda pelas dívidas do bem adjudicado ao recorrente. RECURSO DESPROVIDO.
(TJ-SP – AI: 01324517220128260000 SP 0132451-72.2012.8.26.0000, Relator: Paulo Alcides, Data de Julgamento: 25/04/2013, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/04/2013).

Acrescentam-se, ainda, trechos do voto citado, posto que este descreve, de maneira bastante objetiva, como se soluciona o conflito de competências entre dois municípios para a obtenção do bem vacante.

“Independentemente da curadoria inicialmente ter sido exercida pelo Município de São Paulo, a situação rege-se por regras diferentes daquelas relativas à herança obtida por pessoas naturais. Isto porque o Município não é herdeiro, em relação a ele não vige o princípio de Saisine, nem a regra da indivisibilidade da herança. Ele só recebe o que se encontra em sua base territorial e se não houver herdeiros, após 5 anos do decreto de vacância, conforme estabelece o art. 1822 do CC: “A declaração de vacância não prejudicará os herdeiros que legalmente se habilitarem; mas, decorridos cinco anos da abertura da sucessão, os bens arrecadados passarão ao domínio do Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União quando situados em território federal”. Por conseguinte, cada Município recebe a coisa no estado em que se encontra, inclusive com suas dívidas e eventuais frutos, sendo descabida a pretensão de que os aluguéis do imóvel de São Paulo respondam pelas dívidas daquele situado em Santos.”

Dessa forma, a 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo coloca fim à discussão gerada pela ausência de previsão legal: no caso de conflito entre dois municípios para a obtenção do domínio do bem vacante, será competente para adquirir a sua propriedade aquele em que, observados os requisitos do art. 1.822 do CC/2002, estiver localizado o bem a ser transmitido.

Portanto, no embate citado anteriormente, é inegável a competência do município de Nova Iguaçu para julgar a ação de reconhecimento de herança e arrecadar os bens deixados pelo de cujus, na forma do art. 738 do CPC/15, enquanto, ao município de Duque de Caxias, cabe a incorporação ao seu patrimônio das verbas trabalhistas deixadas pelo autor da herança, já que estas se encontram acauteladas numa das Varas Trabalhistas de Duque de Caxias.

Em última análise, no presente caso, não obstante o senso de “justiça” acabar tendo correspondido ao entendimento jurídico sobre o tema, a presente discussão serve para demonstrar que é dever do aplicador de Direito esgotar as fontes de Direito e tentar, ao máximo, encontrar soluções jurídicas para as controvérsias que se apresentam no seu cotidiano.

Afinal, se, no ordenamento jurídico brasileiro, vigora a proibição do non liquet para o juiz, por que não exigir o mesmo esforço técnico dos advogados?

 


[1] A referida demanda tramita na 3ª Vara Cível da Comarca de Duque de Caxias do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acesso disponível em: http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProcesso=2016.021.060401-7

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