Interesse Público

Literalidade faz da presunção de inocência uma garantia de impunidade

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

22 de fevereiro de 2018, 8h00

Spacca
Caricatura Adilson Dallari [Spacca]O propósito deste artigo é comentar o disposto no artigo 5, LVII da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Tal dispositivo abriga o princípio da presunção de inocência. O que se pretende demonstrar é que a utilização abusiva e inquestionada da literalidade desse dispositivo, mudou o seu significado, transformando-se em uma presunção de impunidade. Esse tema não é privativo dos criminalistas, mas, primordialmente, é dos constitucionalistas, até porque está atualmente em debate no Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, aplicado em sua literalidade, no limite, esse dispositivo impediria qualquer prisão cautelar ou preventiva e mesmo em flagrante delito, pois, obviamente, nessas situações não há decisão transitada em julgado. Como se sabe, todo direito é limitado e nenhuma norma jurídica pode ser aplicada isoladamente, mas, sim, em face do contexto normativo do qual é um fragmento, considerando também o ambiente fático e os valores que se pretende sejam protegidos.

Nos limites de um simples artigo jornalístico não é possível fazer uma análise exaustiva, mas é preciso apontar alguns pontos essenciais para o desenvolvimento do raciocínio. Primeiro, trata-se de uma simples presunção “juris tantum”, que admite prova em contrário. Segundo, há, na Constituição Federal, uma hierarquia de princípios: uns são meramente extraídos de normas específicas (como é o caso), outros são enunciados como tais (artigo 37) e outros são referidos como princípios fundamentais (Título I). Terceiro, como se sabe o direito é dinâmico (é um “dinamismo” como diz o ministro Eros Grau), devendo sempre acompanhar a evolução da realidade social.

Uma coisa é a aplicação correta dos direitos e garantias fundamentais, mas outra coisa é o exacerbado “garantismo”, em detrimento dos interesses comuns da coletividade. Já diziam os romanos que “summum jus, summa injuria”. Um exemplo é sempre ilustrativo e esclarecedor. No Boletim de Notícias ConJur, de 20.2.18, está transcrita decisão do STJ, no RE 1.705.690-SP, relatado pelo ministro Nefi Cordeiro, que reformou sentença num caso de condenação por homicídio qualificado.

Seguindo a jurisprudência dominante, o STJ decidiu anular a decisão que determinou a quebra do sigilo telefônico, e as provas dele decorrentes, com base no artigo 5º da Lei 9.296/96, dado que o juiz não apresentou justificativas suficientes ao deferir o pedido da autoridade policial. Note-se que estão em colisão dois valores fundamentais: a segurança da coletividade e o sigilo das comunicações.

Evidentemente, não se está pretendendo dizer que um princípio de interesse da coletividade deve aniquilar outro princípio protetivo do direito individual. Na verdade, como ensina a doutrina, “em relação aos princípios, os conflitos devem ser resolvidos por intermédio de uma ponderação a respeito da sua importância, do seu peso, para a solução do caso específico”. (Oscar Vilhena Vieira, Discricionariedade Judicial e Interpretação Constitucional, in Constituição Federal de 1988, coordenação Antônio Carlos Mathias Coltro, Editora Juarez de Oliveira, São Paulo, 1999, p. 426-427)

Outro caso ilustrativo está na revista Época, de 12.2.18, sob o expressivo título de O DNA da impunidade. Relata-se que de março de 2014 a janeiro de 2016, seis agências bancárias, em diferentes e bem distantes cidades brasileiras, tiveram seus cofres explodidos. Em cada um desses locais foi possível coletar material genético dos assaltantes. Colocadas essas informações nos bancos de perfis genéticos existentes em 19 estados e na Polícia Federal, foi possível verificar que a mesma pessoa esteve presente em todos eles, mas não se sabe quem é. Talvez isso pudesse ser feito se a Lei 12.654, de 28.5.12 estivesse sendo fielmente cumprida. Essa lei disciplina a criação de bancos de dados de perfis genéticos e estabelece que a identificação criminal poderá incluir material biológico para determinar o perfil genético, sendo que, no caso de crimes dolosos com violência contra pessoa, a identificação do DNA é obrigatória.

Porém a constitucionalidade dessa lei está sendo questionada no STF, em Recurso Extraordinário cujo relator é o ministro Gilmar Mendes. Conforme consta dessa matéria jornalística, assinada por Débora Bergamasco, “Em um caso ocorrido em Minas Gerais, o suspeito envolvido não autorizou que sua saliva fosse coletada para um exame de DNA, como manda a lei. Seu defensor público levou o caso ao Supremo, questionando a constitucionalidade da lei. Ele argumentou que a coleta é uma possível violação de direitos da personalidade e da prerrogativa de alguém não se autoincriminar. Em seu parecer, Raquel Dodge recomenda que o Supremo não dê provimento ao recurso do defensor e mantenha a norma vigente. No texto, a procuradora-geral afirma que não há “ofensa aos artigos 1º e 5º da Constituição Federal”. Para ela, “a identificação criminal é direito do Estado voltado à promoção da segurança pública”.” Apenas para completar, diz a Revista que a coleta de material genético tem sido muito útil em casos de estupro, no qual a identificação do DNA em um caso tem permitido a solução de diversos outros.

Atualmente é lícita e insuscetível de sanção a recusa em fornecer material (genético ou não, como é o caso da escrita e da voz – para comparações) na coleta de provas, que é dever e encargo de quem acusa. Já cuidamos desse assunto em artigo publicado neste espaço (Interesse Público, 21.9.17 – Colaboração premiada e direito de mentir são incompatíveis) enfocando o disposto no inciso LXIII, do artigo 5º da Constituição: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado…”. Esse direito de permanecer calado significa que nenhum acusado é obrigado a se auto incriminar, ou a colaborar com a acusação. O silêncio não pode ser tomado como confissão. Juridicamente, quem cala não consente.

Como todo e qualquer direito o de não se auto incriminar (redundância expletiva) também tem limites. Levado ao extremo poderia chegar à proibição do uso de câmeras de segurança. Mais ainda, poderia impedir a identificação do acusado, como é o caso da fotografia e da coleta das impressões digitais. No caso especificamente em exame, da coleta de material biológico para a montagem de um banco de informações genéticas, o que se tem é simplesmente um novo processo de identificação, resultante da evolução tecnológica, que não pode ser ignorada na interpretação e aplicação das disposições constitucionais.

Conforme, desde longa data, já ensinava Antonino Pensovecchio Li Bassi(L' Interpretazione delle Norme Costituzionale, Milano, 1972, p. 62 e 81), numa tradução para o português, "O intérprete das normas constitucionais deve aplicar no seu trabalho também o critério evolutivo, atentando para com a realidade e referindo as normas isoladas a um sistema constitucional em contínua evolução, como decorrência das mutações das exigências político-sociais da coletividade. Deve aplicar as normas não com base no sistema no qual o dispositivo historicamente nasceu, mas, sim, com base no sistema atual no qual vive."

A doutrina brasileira mais moderna aponta para a mesma direção. Egon Bockmann Moreira (Exploração Privada dos Portos Brasileiros: Concessão Versus Autorização, in Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, Ano 1, maio-junho, Revista dos Tribunais, 2013, p.33), alertando que o mandamento contido na norma constitucional sempre depende da interpretação de seu enunciado, pondera: “Porém, a interpretação constitucional não é tarefa mecânica e abstrata, como se o sentido e o alcance da norma pudessem ser revelados por meio da aplicação de uma sequência predefinida de técnicas formais – independentemente de sua materialidade e papel desempenhado no respectivo espaço-tempo. Mais: a interpretação/aplicação constitucional não é nem declaratória nem estática, mas sim constitutiva, que sempre precisa evoluir e se transformar”.

Interpretar os textos jurídicos, para aferir o real significado de seus mandamentos, não é um fim em si e nem uma atividade lúdica. O trabalho do intérprete é instrumental ou, pelo menos, deve estar voltado para a busca da solução mais adequada e mais justa dos problemas suscitados.

Afaste-se o intérprete sério e realmente preocupado com a realização da Justiça segundo a Constituição, daqueles que, conforme destaca José Roberto Dromi, (Derecho Administrativo, Ed. Ciudad Argentina, 4ª ed. 1995, Buenos Aires, p. 35), entendem o sistema jurídico como uma máquina de impedir, orientada pelo código do fracasso, cujos mandamentos são: art. 1º – não pode; art. 2º – no caso de dúvida, abstenha-se; art. 3º – se é urgente, espere; art. 4º – sempre é mais prudente não fazer coisa alguma.

Sem ousar, o direito não evolui. Mas ousar não é agir irresponsavelmente; é, sim, procurar extrair da Constituição o máximo de seu conteúdo como fundamento para a concretização de seus princípios mais importantes, de maior hierarquia, que estão muito acima de meras normas isoladas ou de fragmentos de normas isoladas.

A presunção de inocência, na prática, transformou-se numa garantia de impunidade para alguns brasileiros, em clara ofensa ao princípio fundamental da igualdade, inerente à república e ao estado democrático de direito, e redundantemente afirmado no “caput” e no inciso I, do artigo 5º, da Constituição. Seria pura hipocrisia negar que, atualmente, pessoas economicamente poderosas podem se valer de questiúnculas processuais em infinitos recursos, até alcançar a prescrição. Exemplos não faltam, mas a prisão de Paulo Maluf, depois de dezenas de anos dos delitos praticados, mostra o ponto fora da curva e a mais absoluta exceção. A reafirmação da possibilidade de prisão, após decisão de segundo grau, é um imperativo determinado pela redução das desigualdades, afirmada como um dos objetivos fundamentais da República, pelo inciso III, do artigo 3º, da Constituição Federal.

A politização do Judiciário, a exacerbada ideologização das questões institucionais e a divulgação pelos meios de comunicação de falsas notícias levaram o autor deste artigo a buscar uma visão provavelmente mais neutra e equilibrada, qual seja o do professor suíço, Manuel Eisner, diretor do Centro de Estudos da Violência da Universidade de Cambridge: ”Chama a minha atenção o fato de o Brasil ser caracterizado por uma cultura de falta de respeito pela lei, o que se espalha por todo o sistema: a chance de um assassino ser preso é mínima, a corrupção está espalhada, e os agentes da polícia quase nunca são responsáveis por execuções extrajudiciais” (OESP, 18.02.18 p. A18). Ninguém contesta que é preciso mudar esse cenário, mas, como é lugar comum, não é possível obter resultados diferentes, fazendo-se sempre as mesmas coisas.

Em resumo: a interpretação evolutiva dos dispositivos e princípios constitucionais é uma exigência de ordem lógica. Mudar o que está visivelmente errado é uma simples questão de racionalidade. Buscar a maior eficácia possível dos valores mais elevados da nacionalidade é um dever de todo brasileiro.

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