Licença para matar

Exército pede "carta branca" na intervenção, mas lei já resguarda militar

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21 de fevereiro de 2018, 17h40

O Exército e o governo Michel Temer (MDB) vêm pedindo mais proteção jurídica para os militares que atuarem na intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. O objetivo é que eles não sejam punidos por atos e mortes em operações. Porém, as normas atuais já são suficientes para resguardar policiais e integrantes das Forças Armadas em situações de conflito ou de risco. Assim, dizem especialistas ouvidos pela ConJur, uma mudança na área colocaria os militares acima da lei e lhes daria uma espécie de “carta branca”.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Militares já têm proteção legal por operações, só não podem abusar da força.
Tânia Rêgo/Agência Brasil

Na reunião desta segunda-feira (19/2) do Conselho da República para discutir a intervenção no Rio, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, afirmou que é preciso providenciar “garantias” aos militares envolvidos na intervenção federal no Rio de Janeiro para que eles não enfrentem “uma nova Comissão da Verdade”, órgão criado pela Lei 12.528/2011 para apurar crimes cometidos pelo governo e seus agentes durante a ditadura militar (1964-1985).

“O Exército tira o jovem da família para o serviço militar obrigatório. Ele se depara com traficantes, mata os bandidos para se defender. Depois, o Exército devolve esse jovem para sua família como um indiciado pela Justiça comum”, reclamou Villas Bôas.

À ConJur, o Exército declarou que as garantias a que o general se refere “dizem respeito a um emprego que se dará em um claro clima de anormalidade em que se encontra a cidade do Rio de Janeiro e que tem que se dar, por óbvio, dentro do regramento jurídico pátrio”, sem especificar quais seriam essas proteções.

“Ocorre que para que a missão possa ser cumprida como espera e merece a população do Rio de Janeiro, a tropa empregada terá que fazer frente à liberdade de ação do crime organizado — que não tem a mesma preocupação com o cumprimento da lei e que expõe a população ao risco em que hoje se encontra — e ao grau de violência por eles empregado”, explicou o Exército, argumentando que o uso de seus soldados, “não raro”, levará à preservação de vidas da população carioca, “refém da violência do crime organizado”.

Vale lembrar que, desde outubro, cabe à Justiça Militar julgar integrantes das Forças Armadas por crimes dolosos contra a vida cometidos contra civis em operações de garantia da lei e da ordem. A medida, inclusive, foi apoiada por Eduardo Villas Bôas.

Especialistas ouvidos pela ConJur durante a tramitação da proposta disseram que a transferência de competência de crimes dolosos cometidos contra civis não atingirá os "benefícios" esperados. Segundo eles, o retorno ao sistema pré-1996 sinalizaria ao militar que ele passaria a ter um julgamento mais brando nesses casos e, ao contrário do que diz o governo e o Superior Tribunal Militar, não aumentaria a segurança jurídica.

No entanto, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, e o general da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira, que comandou as tropas da ONU no Haiti, foram mais claros com relação a tais garantias. Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, Jardim disse que o Rio está em “guerra” contra “inimigos internos”. Nesse cenário, seria “razoável” uma mudança legislativa para proteger os soldados envolvidos nessas operações, opinou.

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Torquato Jardim disse ser "razoável" mudar leis para proteger militares em operações.
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“Você está no posto, mirando a distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino a distância? Ele é um cidadão sob suspeita porque não está praticando o ato naquele momento ou é um combatente inimigo? Os EUA enfrentaram esse tema como um inimigo combatente. É a noção de guerra assimétrica, estamos vivendo uma guerra simétrica”, avaliou o ministro.

Questionado em programa da GloboNews sobre o que faria se fosse convidado a ser o interventor federal no Rio, Heleno respondeu que, como condição, pediria uma “regra de engajamento” mais flexível. O termo designa as normas que determinam o quanto de força o Exército, a Marinha e a Aeronáutica podem usar em um certo contexto. As regras variam conforme a operação.

“A nossa regra de engajamento no Haiti era uma regra de engajamento altamente flexível, que dava ao comandante da cena onde estava acontecendo aquilo o poder de ferir, e chegar a ferimento letal, aquele sujeito que tivesse ato ou intenção hostil. Ou seja: um sujeito armado de fuzil assaltando, roubando carga, ele passa a ser um alvo. E, a partir daí, eu posso eliminá-lo. É duro, é duro, sim. Mas é assim que tem que acontecer. (…) E quem fizer essa ação está isento de responsabilidade jurídica. Essa é a segurança jurídica que nós temos brigado muito [sic]. Melhorou com a história de ser julgado na Justiça Militar, mas falta”, defendeu o general.

Proteção exagerada
Apesar dos índices elevados de criminalidade (ainda assim, longe de serem os mais altos do Brasil), o Rio de Janeiro não está em guerra, tampouco em uma situação de luta violenta pelo poder, como o Haiti se encontrava em 2004, antes da intervenção da ONU.

Dessa forma, o Estado não pode tratar suspeitos de crimes como beligerantes e admitir que eles sejam mortos em conflitos. Continua valendo a regra constitucional de uma pessoa só pode ser considerada culpada se, ao final de um processo com contraditório e ampla defesa, for sentenciada, e a condenação transitar em julgado.

Isso não quer dizer, contudo, que os militares – e policiais – que atuarem na intervenção no Rio não têm proteção jurídica para defender a si próprios ou a terceiros. O artigo 23 do Código Penal estabelece que não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal.

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Na visão de especialistas, proteção a militares desejada pelo governo colocaria soldados e oficiais acima da lei.
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Logo, o integrante das Forças Armadas ou policial que atirar em uma situação de conflito, ou quando ele ou outra pessoa estiverem correndo risco, não será responsabilizado por homicídio. O que ele não pode fazer é disparar gratuitamente, quando isso não é necessário. Nesse caso, o agente responde por seu excesso doloso ou culposo.

O professor de Direito Penal da UFRJ e advogado criminalista Salo de Carvalho afirma que, se militares e policiais agirem dentro de suas funções, já estarão protegidos juridicamente, mesmo se porventura matarem alguém.

Entretanto, só se considera que alguém agiu em legítima defesa se sua reação atendeu aos requisitos do artigo 25 do Código Penal, ressalta Carvalho. O dispositivo fixa que pratica uma conduta desse tipo quem, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Pelas declarações de militares e integrantes do governo Temer, o que se pretende é uma “ampla flexibilização” nesses requisitos, destaca o professor da UFRJ. E isso, a seu ver, seria uma “carta branca” para os agentes das operações de segurança agirem livremente, sem que fossem responsabilizados por atos ilegais.

“Assim, não haveria necessidade de comprovar o uso moderado, justificando o excesso. Não haveria necessidade de comprovar o uso dos meios adequados, justificando ações abusivas. Não haveria necessidade de comprovar a existência de uma real agressão. Sem o respeito aos requisitos legais, o que se tem é, efetivamente, uma ‘carta branca’ para ações sem gerar qualquer responsabilidade, penal ou civil ou administrativa”, avalia o criminalista.

Nessa mesma linha, o advogado Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da UFRJ e da Uerj, deixa claro que o militar ou policial pode matar alguém em legítima defesa, própria ou de terceiro, desde que haja uma injusta agressão e ele não use força excessiva.

Mas Malan aponta que um integrante das Forças Armadas ou das polícias não pode “jamais matar alguém só pode fato de essa pessoa ser suspeita ou estar portando arma de fogo”. Caso isso fosse permitido, analisa, o homicídio passaria a constar das atividades legais dessas profissões, o que é juridicamente impossível, conforme o advogado.

Por sua vez, o delegado de polícia de São Paulo Lucas Neuhauser Magalhães considera que a instituição da proteção jurídica a militares desejada por generais e pelo governo Temer criaria um “verdadeiro sistema jurídico de exceção”.

“Fornecer ‘carta branca’ para que integrantes das Forças Armadas deixem de ser responsabilizados por suas condutas, criando uma legislação específica para o momento em que vivemos, criaria verdadeiro sistema jurídico de exceção, o que é extremamente danoso ao Estado Democrático de Direito”.

Na visão do delegado, tempos de crise exigem o reforço dos direitos e garantias, e não a supressão deles.

“É fácil defender a aplicação da lei em tempos de paz. Entretanto, a experiência mostra que é justamente em tempos de crise que as garantias e liberdades individuais devem ser reforçadas, e não suprimidas, sob pena de retrocedermos na conquista dos direitos dos cidadãos”, opina Magalhães.

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