Direito no atacado

Cabimento de HC coletivo ainda divide opiniões no meio jurídico e dentro do STF

Autor

21 de fevereiro de 2018, 21h12

A decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que reconheceu Habeas Corpus coletivo e concedeu a ordem em nome de todas as presas cautelares que estão grávidas ou são mães de crianças reacendeu o debate sobre o tema.

Mesmo com a decisão desta terça-feira (20/2), o cabimento de HCs para concessão de ordem genérica, sem individualização do beneficiário do recurso, a um número indeterminado de pessoas, divide opiniões no meio jurídico consultados pela ConJur e até dentro do próprio Supremo.

Os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello acompanharam o relator, Ricardo Lewandowski. O único voto contrário no julgamento foi do ministro Luiz Edson Fachin. Para ele, não há como conceder a ordem na forma como o pedido foi impetrado pela Defensoria Pública da União.

“Mesmo no caso das mulheres gestantes, a primazia do direito à infância exige a individualização das concretas circunstâncias em que a prisão cautelar poderia ser substituída pela domiciliar”, disse Fachin.

Na 1ª Turma, o ministro Alexandre de Moraes é relator de dois pedidos de HCs desse tipo. Em relação a um deles, ele já negou o pleito para transferir pessoas presas há mais de dois anos em penitenciárias federais de segurança máxima, para presídios estaduais.

Em decisão monocrática assinada na segunda-feira (19/2), Moraes afirma que a DPU não indicou de maneira individualizada o específico constrangimento ilegal ao qual cada um dos presos estaria submetido. Ele ainda não se manifestou sobre o outro caso, voltado a todos os presos que seriam beneficiados pelo decreto de indulto. Se o ministro não levar os casos para análise da 1ª Turma, não se saberá tão cedo a posição do colegiado em relação ao assunto.

Democracia e salvo-conduto
O criminalista Délio Lins e Silva Júnior entende que, como “o HC é o instrumento mais democrático que existe a ser utilizado em favor das garantias fundamentais”, deve ser usado sem limites ou amarras.

O juiz Orlando Faccini Neto, do Rio Grande do Sul, lembra que não há, a rigor, vedação ao Habeas Corpus coletivo. “Se a Constituição e o Código de Processo não limitam, nestes termos, o instituto, parece idônea a interpretação de que, dadas as mesmas circunstâncias fáticas, admite-o em benefício de um grupo mais amplo de pessoas”.

Já o constitucionalista Gustavo Binenbojm vê com restrições o uso do instituto. Ele avalia que a concessão de HCs coletivos de forma indiscriminada pode gerar decisões díspares e incoerentes entre tribunais ou até mesmo dentro da mesma corte, aumentando a imprevisibilidade das deliberações judiciais e a sensação de insegurança jurídica.

Binenbojm alerta para o risco do instrumento generalizado ser utilizado para beneficiar presos que não estão na mesma situação, o que pode se tornar uma espécie de “salvo conduto”, colocando em liberdade pessoas que deveriam continuar presas. “É preciso contrabalancear os direitos e liberdades individuais com os de tutela coletiva e da ordem pública”, afirmou.

O professor Gustavo Badaró, que leciona Direito Processual Penal na USP, vê com reservas a validade desse tipo de medida coletiva. Ele reconhece a importância do precedente para o direito das presas, mas considera que o STF acabou concedendo um “HC coletivo fake” [falso], pois a própria 2ª Turma criou condições para a concessão individual da medida.

Há exceção para mulheres que tenham cometido crimes mediante violência ou grave ameaça, contra os próprios filhos, ou, ainda, em situações excepcionalíssimas Como caberá aos juízos de todo o país avaliar se o perfil se encaixa, a decisão não será automática como num Habeas Corpus individual, diz Badaró.

Economia processual
Na avaliação do constitucionalista Daniel Sarmento, a reunião em um único processo de questões que poderiam estar diluídas em centenas ou milhares de ações importa em economia de tempo, esforço e recursos. A medida, segundo o professor, é indispensável para que se possa a atender ao crescente desafio de tornar a prestação jurisdicional mais célere e eficiente.

Como a jurisprudência do STF já reconheceu a impetração coletiva de mandado de injunção, ele avalia que o entendimento pode ser estendido, “por razões ainda mais robustas, ao HC”. Sarmento inclusive já escreveu parecer defendendo essa posição.

Para ele, o HC coletivo é importante também por causa da “explosão demográfica” da população carcerária ocorrida nos últimos anos. De acordo com levantamento feito pelo Departamento Penitenciário Nacional, o total de pessoas encarceradas no Brasil chegou a 726.712 em junho de 2016, quase o dobro do número de vagas (368.049 no mesmo período).

Cerca de 40% dos presos são provisórios, ou seja, ainda não têm condenação judicial. O Brasil é terceiro país com maior número de pessoas presas, atrás dos Estados Unidos e da China, sendo seguido na quarta colocação pela Rússia.

Sarmento exemplifica casos em que caberia ou não um HC coletivo. Para ele, seria incabível para declarar a inconstitucionalidade de normas penais porque não pode ser usado para controle abstrato de constitucionalidade. “Mas poderia ser utilizado para garantir os direitos de moradores de determinada região por causa de algum tipo de mandado coletivo”, afirmou, lembrado que esse tipo de ação está sendo cogitada quando começar a intervenção federal no Rio de Janeiro.

No Superior Tribunal de Justiça, ministros que julgam na área penal divergiram sobre o tema ao serem questionados pela ConJur. Eles falaram sob condição de anonimato.

Enquanto um deles declarou-se favorável, outro membro do STJ disse que os HCs coletivos não podem virar o “remédio para todos os males”, pois “decidir uma tese vai apenas transferir o problema para o juiz de origem que vai verificar se a situação concreta se encaixa, ou não, na decisão proferida”. Um terceiro membro do STJ disse que não reconhecia o cabimento,  considerando os limites interpretativos da legislação. "Todavia, reconheço que a decisão da 2ª Turma foi corajosa e muda o paradigma na interpretação do HC", disse.  

* Texto atualizado às 9h03 do dia 22/2/2018 para correção e acréscimos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!