Opinião

Anomia, "Estado paralelo" e a intervenção militar no Rio de Janeiro

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20 de fevereiro de 2018, 6h38

Derivada do grego, a palavra anomia significa sem lei, ausência de regras e conota iniquidade, injustiça e desordem. O sociólogo Émile Durkheim, ao final do século XIX, primeiro em Da Divisão do Trabalho Social (1893) e depois em O Suicídio (1897), traz o conceito negativo de anomia. Contudo, em As Regras do Método Sociológico (1895), Durkheim já sustentava que “o crime é normal porque uma sociedade que dele estivesse isenta seria inteiramente impossível”[1]. De acordo com a teoria estrutural-funcionalista de Durkheim, o desvio (crime) seria um fenômeno normal em determinados limites e até funcional para o equilíbrio social e reforço do sentimento coletivo. Seria anormal apenas na hipótese de expansão excessiva, quando são ultrapassados determinados limites, em situações de anomia, ou seja, um estado de desorganização, no qual todo o sistema de regras da conduta perde valor.

Robert Merton, em 1938, desenvolveu a teoria funcionalista da anomia, teoria esta que, segundo o criminólogo Alessandro Baratta, “representa uma etapa essencial no caminho percorrido pela sociologia criminal contemporânea”. Segundo Merton, a anomia constitui um colapso na estrutura cultural, que se verifica especialmente quando ocorre uma forte discrepância entre normas e objetivos culturais, e as possibilidades ou capacidades, socialmente estruturadas, dos membros dos grupos de agir de acordo com essas normas e objetivos.

Em sua Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, o criminólogo Alessandro Baratta[2] explica que o modelo funcionalista proposto por Merton “consiste em reportar o desvio a uma possível contradição entre estrutura social e cultura: a cultura, em determinado momento do desenvolvimento de uma sociedade, propõe ao indivíduo determinadas metas, as quais constituem motivações fundamentais do seu comportamento (por exemplo, um certo nível de bem-estar e de sucesso econômico). Proporciona, também, modelos de comportamentos institucionalizados, que resguardam as modalidades e os meios legítimos para alcançar aquelas metas. Por outro lado, todavia, a estrutura econômico-social oferece aos indivíduos, em graus diversos, especialmente com base em sua posição nos diversos estratos sociais, a possibilidade de acesso às modalidades e aos meios legítimos para alcançar as metas”.

Assim, a criminalidade decorre, para Robert Merton, da desproporção entre os objetivos socialmente fomentados e os meios postos ao alcance das pessoas para atingir tais objetivos. Assim, quando os meios lícitos para atingir alcançar esses objetivos não são suficientes, busca-se através de meios ilícitos (criminalidade) o alcance de tais objetivos.

Nota-se, infelizmente, que boa parte da população excluída da relação de consumo (imposta por uma sociedade capitalista extremamente injusta e desigual), sem nenhum bem-estar e desprovida qualquer esperança de sucesso econômico, tende a buscar a alcançar as metas socialmente fomentadas através de um “Estado paralelo” que de alguma maneira oferece a esses excluídos meios, ainda que ilícitos, para obtenção dessas metas e para suas satisfações.

É evidente que, quando o Estado legalmente constituído não cumpre com deveres essenciais que assegurem as mínimas condições de vida digna aos seres humanos, o “Estado paralelo” ocupa esse lugar, e, quando isso ocorre, estaremos diante de uma situação de desagregação que pode levar à anomia. Urge que o Estado ocupe o seu espaço e cumpra com o seu papel social para que aqueles que vivem em situação de completa exclusão possam, por meio desse Estado, obter o mínimo indispensável para viver, e não necessitem recorrer a um “Estado paralelo” para alcançar um pouco de dignidade. Quanto mais vulnerável for a sociedade, mais poder e força terá o “Estado paralelo”, e quanto mais omisso for o poder público, mais espaço estará sendo proporcionado para os agentes deste “Estado paralelo”.

Não se pode olvidar que a repressão violenta ao crime sempre foi, no dizer de Luiz Antonio Machado da Silva, “uma delegação tácita conferida à polícia por parte de grupos dominantes”. Contudo, de acordo com o citado professor, foi durante a ditadura militar que ela (violência) se institucionalizou e “entrou no debate público, explodindo como uma questão política candente em meados dos anos 1980”[3].

Referindo-se, especificamente, em relação à violência no Rio de Janeiro, Luiz Antonio Machado da Silva observa que “à constituição do ‘crime’ como um mundo à parte gravitando em torno de um núcleo duro com essas características, os alvos das atividades da ordem pública tornaram-se cada vez mais territorializados: não se trata mais de coibir atividades proibidas, mas de controlar áreas tidas como perigosas (o perigo se define como ameaça embutida nas rotinas diárias) Ipso facto, todos os moradores dessas áreas tornam-se alvo de suspeita e desconfiança, de modo que o objetivo do controle social deixa de regular as relações sociais entre diferentes grupos, para converter-se em afastar do convívio com os demais segmentos sociais os moradores das áreas consideradas perigosas”[4].

Por tudo, conforme já dito alhures, a opção do Estado pela intervenção militar colocando o Exército nas ruas do Rio de Janeiro ou em qualquer outra cidade, para “golpear o crime organizado”, é, na verdade, uma demonstração inequívoca da prevalência do Estado penal sobre o Estado social. Desgraçadamente, quando o Estado faz a opção pelo uso da força, os vulneráveis, pobres, negros e favelados — os mesmos que integram a grande maioria da população carcerária — são o principal alvo da repressão para atender os desejos, conscientes e inconscientes, dos endinheirados e da classe média conservadora, preconceituosa e manipulada pela grande mídia.

Referindo-se aos aparelhos de propaganda dos sistemas penais latinos americanos (a fábrica da realidade). Os meios de comunicação social de massa, em especial a televisão, Zaffaroni aponta que são os mesmos, na atualidade, “elementos indispensáveis para o exercício do poder de todo o sistema penal”. Sem os referidos meios de comunicação de massa, “a experiência direta da realidade social permitiria que a população se desse conta da falácia dos discursos justificadores; não seria assim possível induzir os medos nos sentido desejado, nem reproduzir os fatos conflitivos interessantes de serem reproduzidos em cada conjuntura, ou seja, no momento em que são favoráveis ao poder das agência do sistema penal”[5].

Assim, é certo que não será através da intervenção militar ou federal (como preferem os interventores) que o Estado vai cumprir seu papel social, notadamente, nas áreas mais precárias e carentes do Estado.

Por fim, como bem destacaram os penalistas Hassemer e Muñoz Conde[6], o problema da criminalidade é, pois, antes de tudo um problema social e vem condicionado pelo modelo de sociedade. Seria ilusório, portanto, analisar a criminalidade a partir de um ponto de vista natural, ontológico ou puramente abstrato desconectado da realidade social em que ela surge.


[1] DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
[3] SILVA, Luiz Antonio Machado da. Violência e ordem social in Crime, polícia e justiça no Brasil. Org. José Luiz Ratton et al. São Paulo: Contexto, 2014.
[4] Idem.
[5] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
[6] HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo blanch libros, 2001.

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