Tribuna da Defensoria

Quando o óbvio precisa ser dito: pobres não podem pagar fiança!

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal e chefe da Defensoria Pública da União em Campinas/SP. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Processo Penal e Direitos Humanos do Curso CEI. Coeditor do Clube do Direito (www.clubedodireito.com). É autor dos livros Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro e Prática Penal para Defensoria Pública e coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos.

20 de fevereiro de 2018, 10h04

“Já se disse que o sonho que a dignidade inspira é o de uma sociedade em que todos são tratados como nobres. Aqui e agora, porém, temos um desafio aparentemente mais singelo: construir uma sociedade em que todos sejam tratados como gente. Pode parecer pouco, mas, pelo menos no Brasil, é uma enormidade” (Sarmento, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 340).

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus 397.587, em 27.6.2017, relator o ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, concedeu a ordem e determinou que o paciente fosse colocado em liberdade. No caso, tratava-se de furto de coisa avaliada em R$ 285 por réu primário, sem antecedentes, sobrevivendo em situação de rua, para quem a autoridade policial arbitrou fiança no valor de R$ 1 mil, medida cautelar mantida pelos juízos de primeira e segunda instâncias do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O que o processo penal deve refletir quando visto no espelho?

Embora tratando de outra temática, Carnelutti explorou essa metáfora em ensaio publicado em 1952[1], que aqui invoco para introduzir esse breve texto sobre um dos problemas mais dramáticos da periferia processual penal brasileira — expressão aqui utilizada para designar procedimentos, métodos e ideologias da justiça criminal aplicada aos pobres: a imposição de fiança para réus que não podem pagá-la, colocando a pobreza como um obstáculo à liberdade.

Abstraindo o debate em torno da natureza jurídica da fiança — se medida cautelar ou de contracautela, se alternativa ou substitutiva da prisão preventiva etc. —, o Código de Processo Penal, após a Lei 12.403/2011, a inclui entre as medidas cautelares diversas da prisão, atribuindo-lhe o objetivo de assegurar o comparecimento do réu a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou coibir resistência injustificada à ordem judicial (artigo 319, VIII). Importante destacar, ainda, um pressuposto negativo da fiança: ela somente pode ser concedida quando ausentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (CPP, artigo 324, IV). Assim, concedida a fiança, pode-se concluir que não existem ou não persistem os motivos autorizadores da prisão cautelar.

O que tem acontecido na prática da justiça criminal brasileira, mais especificamente no contexto da periferia processual penal, observado de perto pelas defensorias públicas[2]? Os juízes reconhecem que não há requisitos para a decretação da prisão preventiva, mas decidem por conceder a liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, independentemente da situação econômica do réu, descumprindo o CPP, que determina a dispensa da fiança nesses casos (artigo 325, § 1º, I). Diante desse cenário, duas situações costumam ocorrer: a) ou o réu simplesmente não paga o valor da fiança, permanecendo preso por dias ou meses até que consiga êxito em habeas corpus; ou b) pessoas do convívio do réu, como familiares, amigos etc., procedem com o pagamento da fiança para que ele seja colocado em liberdade, não sendo raro casos de alienação de bens essenciais para alcançar o valor da fiança.

Essas situações podem ser evitadas a partir de uma nova compreensão do instituto da fiança.

Em primeiro lugar, os juízes, ao decidirem sobre qual cautelar irão aplicar, precisam observar o artigo 282, II, do CPP, segundo o qual as medidas cautelares devem obedecer o requisito da adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do réu. Se não está demonstrado nos autos que a situação econômica do réu permite o pagamento de fiança, esta medida deve ser imediatamente descartada. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido reiteradamente que “O fato de pessoas pobres ficarem presas preventivamente apenas por não possuírem recursos financeiros para arcar com o valor da fiança arbitrada ofende a sistemática constitucional” (HC 369.449, rel. min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 14.03.2017). Sobre esse ponto, não me parece excessivo, ainda, atribuir o ônus da prova sobre o estado econômico do réu ao Ministério Público, já que é mais fácil comprovar a suficiência do que a insuficiência financeira.

Em segundo lugar, é inconstitucional transmitir a responsabilidade pelo pagamento da fiança aos familiares da pessoa presa, e isso pelo seguinte fundamento: quando o constituinte estabeleceu o princípio da intranscendência da pena, prevendo que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado (…)” (CF, artigo 5º, XLV), também se pretendeu evitar que qualquer medida cautelar, sobretudo de natureza patrimonial, atinja bens ou valores de familiares da pessoa presa. Para corrigir definitivamente esse problema, considero muito oportuno o ajuizamento de uma ação de descumprimento de preceito fundamental, a fim de que o Supremo Tribunal Federal aprecie a matéria em controle concentrado de constitucionalidade, assentando que os dispositivos do CPP que disciplinam a fiança devem receber uma interpretação conforme a Constituição Federal, de modo a impedir que a medida cautelar da fiança transcenda o patrimônio do réu e atinja bens de terceiros.

Em terceiro lugar, ainda nos casos em que a fiança seja arbitrada em valor compatível com o estado financeiro do réu, considerando que o juízo já terá reconhecido a ausência de cautelaridade para a prisão, impõe-se que seja conferida à fiança o mesmo tratamento destinado às demais medidas cautelares: o seu cumprimento em liberdade, viabilizando que, em prazo a ser fixado pela autoridade judicial, o réu possa realizar o pagamento. Descumprida a cautelar da fiança, o juiz poderá, nos termos do artigo 282, § 4º, do CPP, substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva.

Resumindo as propostas apresentadas nesse breve texto para alterar a prática processual no que diz respeito à fiança, temos o seguinte:

1) A medida cautelar da fiança deve obedecer ao requisito da adequação à situação econômica do réu, não devendo ser utilizada quando se tratar de réu pobre;
2) Não havendo nos autos do processo elementos que permitam concluir pela suficiência financeira do réu, o ônus da prova sobre esse ponto deve ser incumbido ao Ministério Público, ou, na pior das hipóteses, satisfeito mediante o poder geral de cautela do juiz, que pode requisitar informações bancárias, fiscais e patrimoniais sobre o réu;
3) A fiança, assim como a pena, não pode transcender o patrimônio do réu, sendo inconstitucional transferir para terceiros o seu pagamento; e
4) A fiança deve receber o mesmo tratamento processual das demais medidas cautelares, permitindo que o réu a cumpra em liberdade, no prazo razoável a ser fixado pela autoridade judicial.

E assim, retornando à metáfora de Carnelutti, o processo penal, quando visto no espelho, irá refletir, conforme adverte Hassemer, o grau de cultura jurídica ou política do país[3]. Em tempos sombrios — e muito estranhos, como costuma diagnosticar o ministro Marco Aurélio, do STF —, o óbvio precisa ser dito e defendido: a liberdade de pessoas pobres não pode ser condicionada ao pagamento de fiança.


1 O ensaio El Proceso Penal visto en el Espejo pode ser encontrado em CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el Proceso Penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Libreria el Foro, 1960, p. 93-102.

2 Sobre a atuação das Defensorias Públicas na matéria, ver Defensoria pede súmula ao STJ contra prisão de quem não pode pagar fiança: https://www.conjur.com.br/2017-mai-29/defensoria-stj-proiba-prisao-quem-nao-pagar-fianca. Acessado no dia 19.02.2018. E ainda, tese institucional da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, do ano de 2013, que oficializou o início desse debate: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/tese-2013-defensoria-fianca.pdf. Acessado no dia 19.02.2018.

3 HASSEMER, Winfried. Crítica al Derecho Penal de hoy. Traducción de Patrícia S. Ziffer. 2ª ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 72-73

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    é defensor público federal, chefe da Defensoria Pública da União em Guarulhos (SP), especialista em Ciências Criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015) e coautor de "Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos". Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.

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