Contas à Vista

Os direitos sociais, o limite para as escolhas trágicas e o Supremo

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

20 de fevereiro de 2018, 8h00

Spacca
Comentei na coluna anterior que vivemos entre a reserva do possível e as escolhas trágicas, isto é, entre o limite de nossos recursos, inclusive financeiros, e as opções que temos para seu uso, o que inclui as decisões governamentais. Trato nesta coluna sobre os limites que a Constituição estabelece para o uso desses recursos, limitando as opções governamentais. De certa maneira, isso implica em adentrar em uma seara que é estudada pelos administrativistas, que é a da discricionariedade. Como entendo que o Direito é uno, dividido em disciplinas jurídicas apenas para fins didáticos, usarei o instrumental de Direito Financeiro para expor meu ponto de vista.

Comecemos pelo lado da receita pública, pouco analisado sob esse aspecto. A Constituição determina, de forma quase exclusiva, quais bases impositivas podem ser usadas pelos diferentes níveis de governo da federação brasileira. Por exemplo, se o estado de São Paulo criar por lei um imposto que incida sobre a renda das pessoas que vivem em seu território, tal norma será inconstitucional, pois a competência para criar incidências sobre essa manifestação de riqueza é da União. O mesmo acontecerá ser esta decidir criar um imposto sobre a propriedade urbana, pois tal competência é municipal.

A situação será diversa se a União, usando de sua competência impositiva, decidir aumentar o imposto sobre o rendimento das aplicações financeiras, ou mesmo isentá-las de qualquer incidência. Aqui estará dentro das opções de política econômica que a Constituição lhe reserva, caracterizando-se, nesse aspecto, como uma escolha trágica no âmbito da receita pública. Claro que existem diversas outras normas que regem essa matéria, começando pelo princípio da reserva legal, mas vamos abstrair esse ponto para podermos avançar.

Pelo lado da dívida pública, o ente público tem a alternativa de aumentar seu endividamento para investir em obras públicas, como novas linhas de metrô ou na construção de hospitais, podendo localizá-los em diversos pontos de seu território. Pode também decidir não se endividar e fazer tais investimentos com recursos próprios, aumentando a tributação. Também aqui existem limitações normativas de diversas naturezas, que influenciarão sobremaneira a decisão a ser tomada, sendo um dos principais o nível de endividamento existente.

Pelo lado da despesa, a situação é semelhante, pois existem inúmeras possibilidades de gastos públicos. Um município pode decidir investir em transporte urbano de massa para ligar a periferia ao centro da cidade, porém pode também decidir ampliar ou melhorar os meios hoje existentes, sem alargar a malha viária. Como sempre, tal decisão estará limitada aos recursos financeiros existentes, isto é, pela reserva do possível.

Pode-se ver que a classe política possui liberdade para uso dos recursos públicos, cabendo-lhe escolher, na forma da legislação pertinente, onde, como e quando serão hauridos e gastos os recursos que arrecadam da sociedade. Isso é consagrado na Constituição na primeira parte do artigo 167, IV, quando estabelece ser vedada “a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa”. Tecnicamente a isso se denomina de liberdade do legislador orçamentário.

Todavia, ao mesmo tempo em que consagrou tal liberdade, o constituinte protegeu alguns direitos, estabelecendo mecanismos financeiros que restringem essa liberdade da classe política, sendo que alguns deles foram inseridos no próprio artigo 167, IV, em sua segunda parte, ao mencionar: “…ressalvadas…”. As ressalvas que limitam a liberdade do legislador orçamentário possuem diversas naturezas.

Algumas se caracterizam como vinculações para custeio de alguns direitos sociais, notadamente para as ações e serviços públicos de saúde (artigo 198, parágrafo 2º) e para manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212), ambas constantes das ressalvas do artigo 167, IV. Aqui existem fontes de custeio próprias para fazer frente a tais direitos. Existe outra fonte de financiamento desses gastos sociais, mais difusa, nos artigos 79 e 80 do ADCT, que deve ser usada para viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida, e que constituem o Fundo de Combate à Pobreza[1]. A discricionariedade do legislador e do administrador público fica restringida nesse âmbito, pois uma parte do orçamento deve ser utilizada para fazer frente a tais gastos.

Ainda nas ressalvas constantes do artigo 167, IV, constam outros mecanismos que são as garantias financeiras federativas, e se referem às transferências obrigatórias intergovernamentais (artigos 158 e 159) e para a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita (artigo 165, parágrafo 8º, e artigo 166, parágrafo 4º). Aqui não há propriamente uma vinculação, mas uma opção para que o legislador e/ou o administrador público se utilize dessas transferências como instrumento de garantia de operações financeiras que venha a realizar. Observe-se que se trata de uma estrutura jurídica diferente da anterior, pois aquela vincula a arrecadação a determinados gastos sociais, enquanto que esta cria a possibilidade de uso desses recursos como garantia financeira.

Ainda dentro das ressalvas do artigo 167, IV, verifica-se outro mecanismo, que é o da priorização dos gastos com a administração tributária, essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, os quais terão recursos prioritários para a realização de suas atividades (artigo 37, XXII). Mais uma vez a construção jurídica difere das anteriores, pois se trata do estabelecimento de uma prioridade de gastos, sem apontar nenhuma vinculação de recursos, e sem indicar a possibilidade de seu uso como garantia financeira.

Expostos esses pontos, constata-se que os direitos sociais referentes à saúde e educação encontram-se dentre aqueles que possuem fonte de recursos próprios estabelecidos na Constituição, o que impede que o legislador e o administrador público tenham ampla discricionariedade, pois limitada ao custeio desses direitos sociais. Remanescem escolhas trágicas a serem feitas, pois deverão ser construídos novos postos de saúde ou melhor aparelhados os existentes? A vacinação deve ser para todos ou apenas para os maiores de 60 anos? Enfim, embora com escopo reduzido, as escolhas trágicas permanecem.

Não tenho dúvidas de que reduzir a fonte de custeio desses direitos sociais é inconstitucional, como fez a Emenda Constitucional 95 ao inserir o artigo 110 no ADCT, criando um teto de gastos. Isso viola a cláusula pétrea do artigo 60, parágrafo 4º, IV, pois abole direitos e garantias individuais.

A inconstitucionalidade é patente, pois estabelece o artigo 5º, parágrafo 2º, CF, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”, o que se conecta com o rol de direitos sociais previstos na Constituição (artigo 6º), dos quais apenas dois (saúde e educação) possuem fonte mínima direta para seu custeio (artigos 198, parágrafo 2º e 212), sendo que outros possuem fonte mínima difusa (artigos 79 e 80, ADCT). Cortar essa fonte mínima de custeio, seja direta ou difusa, será o mesmo que cancelar a efetiva concretização desses direitos — que são essencialmente prestacionais.

O argumento de que cortar a fonte de custeio não implica extinguir tais direitos é falacioso, pois, se não for para investir o mínimo estabelecido, quanto será investido? Menos do que o mínimo constitucionalmente exigido, por certo. Isso é extirpar esses direitos da população que mais necessita deles, que é aquela que não os pode custear através do próprio bolso. Seguramente isso infringe a cláusula pétrea constitucional, que proíbe a discussão de emendas tendentes a abolir direitos e garantias individuais (artigo 60, parágrafo 4º, IV, CF). E viola o objetivo constitucional de redução das desigualdades sociais e erradicação da pobreza (artigo 3º, III).

Enfatiza-se, dessa forma, o caráter de cláusula pétrea constitucional das normas que estabelecem o vínculo orçamentário para o custeio dos direitos fundamentais sociais para saúde, educação e redução da pobreza.

Observe-se que a Constituição de 1988 não mudou apenas a estrutura do governo brasileiro; mudou a estrutura do Estado brasileiro, e os diferentes governos, sucessivos no tempo e superpostos federativamente, devem obediência a essa nova estrutura, criada pela Constituição de 1988, que, definitivamente, não é uma Constituição liberal. Pode-se até ter um governo liberal sob a atual estrutura constitucional, que é plural, porém, mesmo um governo liberal deve obediência ao conteúdo mínimo dos direitos sociais estabelecidos e que tem nas vinculações orçamentárias um piso para o custeio de seus gastos. Pode-se até gastar além do mínimo estabelecido com o custeio desses direitos, visando acelerar a redução das desigualdades sociais, porém não se pode gastar menos. Trata-se, aqui, de mais um limite à liberdade do legislador orçamentário.

No âmbito das relações federativas, este assunto está em debate na ADI 5.628, tendo recebido liminar do ministro Teori Zavascki em 19/12/2016, para que a DRU não reduzisse o percentual de transferência que a União faz aos estados em razão da Cide.

No que se refere aos direitos sociais, a discussão foi iniciada pela ADI 5.595, cujo julgamento principiou em outubro de 2017 e até hoje não prosseguiu, e segue na ADI 5.633 e correlatas, da relatoria da ministra Rosa Weber, ainda sem liminar.

Por qual motivo se vê de forma mais clara a redução de fontes de financiamento nas relações entre os entes federativos do que nas relações sociais? Talvez porque a classe política grita mais alto quando ocorre a redução de sua própria fonte de custeio? Não tenho resposta.


[1] Existem outras vinculações constitucionais, mas não vem ao caso alongar a exposição, pendendo o foco do debate. Aponta-se a que veda a utilização de recursos provenientes das contribuições sociais previdenciárias (artigo 195, I, “a”, e II), para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social (artigo 167, XI), e a contribuição da Cide-Petróleo, cuja vinculação encontra-se estabelecida pelo artigo 177, parágrafo 4º, II, CF.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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