Opinião

Política, Constituição e a Suprema Corte dos Estados Unidos

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20 de fevereiro de 2018, 8h35

A democracia e o constitucionalismo americanos têm sido, ao longo dos últimos dois séculos, fonte de inspiração para juristas, cientistas políticos, sociólogos e filósofos brasileiros. Supremas cortes são tão importantes e merecem tanto respeito e admiração que devem ser veneradas. Sempre e em qualquer país.

O principal motivo é que produzem algo ainda mais precioso que justiça: produzem história. Por isso, as lições da história e as doutrinas legais devem sempre guiá-las, sobretudo quando a névoa das paixões exige que ajudem os povos a atravessar tempestades momentâneas. Ser essa bússola precisa é sua missão mais nobre e necessária.

Pelo refinamento da análise histórica e pela franqueza e humildade da autocrítica de um membro da Suprema Corte dos EUA, merece destaque um livro de 2010 do juiz Stephen Breyer, indicado por Bill Clinton em 1994 e professor de Harvard desde 1967, chamado Making our democracy work: a judge’s view (Fazendo nossa democracia funcionar: a visão de um juiz em português).

O magistrado revisita o poder da Suprema Corte de anular atos dos representantes eleitos pelo povo sob o fundamento da incompatibilidade com a Constituição (o judicial review). Qualifica esse poder de “anomalia democrática” por vetar decisões adotadas pela maioria, mas o justifica reconhecendo que a democracia americana não é puramente majoritária e que os limites da vontade da maioria são fixados na estrutura constitucional e nos direitos fundamentais.

São dissecados no livro cinco casos cruciais julgados pela Suprema Corte: Marbury v. Madison, Cherokee Nation v. Georgia, Scott v. Sandford, Cooper v. Aaron e Bush v. Gore. Deles extrai lições valiosas sobre o papel político desempenhado pela corte e de como essa atuação pode induzir e respaldar o respeito à legalidade, fomentar o desenvolvimento econômico e social da nação sobre bases jurídicas sólidas ou, por outro lado, aprofundar divisões e empurrar o país na direção de uma guerra civil.

Citando Hamilton e Iradell, ambos integrantes da geração de founding fathers dos EUA, o autor conclui que o poder da Suprema Corte de dar a palavra final sobre a constitucionalidade de leis aprovadas pelo Legislativo e atos praticados pelo Executivo é da própria essência do modelo de freios e contrapesos do Estado americano e da inexorabilidade de se estabelecer proteção legal às minorias.

Adverte, entretanto, que, quando a Suprema Corte erra ou abusa do seu poder, o povo (diretamente ou por seus representantes) tem o direito de reagir. Essa reação, segundo ele, pode se dar por meio de leis que exponham o equívoco da corte ou mesmo pela eleição de um presidente da República e de senadores que, respectivamente, nomeie e confirmem novos juízes cujo comportamento seja substancialmente distinto daqueles tidos como equivocados.

Um caso não citado por Breyer, embora se enquadre na narrativa proposta no livro, é o West Coast Hotel Co. v. Parrish, decidido em 1937 por 5 a 4 com uma súbita mudança de posição do justice Owen Roberts. Nos idos de 1935, o presidente Franklin Roosevelt tentava implementar o New Deal e encontrava forte resistência da Suprema Corte, que declarara diversas medidas inconstitucionais. Entre os críticos estava Owen Roberts, que votara reiteradas vezes contra medidas do plano econômico. Reeleito em 1936, Roosevelt surpreende ao propor, já nos primeiros dias de seu segundo mandato, o chamado Court-packing plan, que previa o aumento dos membros da Suprema Corte de 9 para 15.

A pressão política exercida por Roosevelt sobre a corte foi apontada por inúmeros estudiosos como a causa determinante da mudança de posição do justice Roberts. Essa mudança ocorreu apenas três semanas após o presidente dar publicidade ao seu plano de modificar a composição da corte. Com a nova maioria formada, o pacote econômico foi implementado, e a ampliação da Suprema Corte perdeu força no Senado, acabando arquivada.

Por sua vez, os desdobramentos sociais e políticos do caso Scott, julgado em 1857, também legaram à cultura institucional dos EUA enorme aprendizado. No julgamento, não só foi recusada a condição de “cidadão americano” ao ex-escravo Dred Scott, como também foi aplicado o judicial review para declarar que o Congresso não teria competência para editar leis que criassem hipóteses de libertação, matéria reservada às leis estaduais.

Reafirmou-se o direito dos cidadãos dos estados escravagistas de transitar livremente no território americano levando consigo seus escravos sob o fundamento de que a Constituição veda a privação da propriedade por meio de leis inconstitucionais. Em suma, a corte chancelou a reescravização de Scott, que nos últimos anos vivera como homem livre, com a permissão de seu proprietário, em estados não escravocratas.

Isso desencadeou veementes reações nos estados do norte não escravagista. A eloquência do voto dissidente — e a posterior renúncia ao cargo na Suprema Corte — do justice Benjamin Curtis se transformaram em mote da campanha abolicionista e circulou em panfletos país afora, servindo de inspiração para discursos ácidos de Abraham Lincoln, o que lhe deu visibilidade nacional e viabilizou que em 1860 fosse eleito presidente da República.

Inúmeros pensadores americanos consideram a decisão da Suprema Corte no caso Scott a faísca que alimentou a reação aguerrida dos estados abolicionistas do norte, acarretou o rompimento da solução de compromisso firmada na Convenção da Filadélfia, o impulso à eleição de Lincoln e, por fim, a Guerra da Secessão de 1861. Finda a guerra civil, a decisão da Suprema Corte foi revogada pelas 13ª, 14ª e 15ª emendas à Constituição, que aboliram a escravidão e garantiram tratamento isonômico e direitos civis e políticos aos escravos libertados.

O autor observa que a corte foi imprudente e voluntariosa em pretender resolver por sentença judicial uma questão política sensível, havendo motivo processual para se afastar. Aduz que “a court that acts ‘politically’ plays with fire” (uma corte que age politicamente brinca com fogo). Para ele, interpretando os escritos de Alexander Hamilton, o controle de constitucionalidade serve para proteger minorias, pois o zelo pelas maiorias já cabe aos representantes por elas eleitos: “The power of judicial review was to offer constitutional security where doing so is politically unpopular” (o controle de constitucionalidade deveria servir para oferecer proteção constitucional quando fazê-lo for politicamente impopular).

No fechamento do primeiro capítulo do livro, cita diálogo travado na peça Henry IV de Shakespeare para ilustrar que a Suprema Corte não pode superestimar seu próprio poder nem subestimar o poder dos eleitos pelo povo: ao ouvir Owen Glendower se vangloriar de que poderia invocar espíritos das mais vastas profundezas, Hotspur retruca: “Invocar eu também posso, assim como pode qualquer pessoa, mas os espíritos atendem o seu chamado?”.

A lição de Breyer é que a função política da Suprema Corte é ordinariamente contramajoritária e exige articulação com os demais poderes do Estado. Os aplausos e o apoio popular por executar a agenda majoritária — assim como as vaias e a reprovação em caso de fracasso — cabem aos representantes eleitos dos poderes Legislativo e Executivo, não ao Judiciário.

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    é ministro do Tribunal de Contas da União, professor na Uninove, pós-doutor em Direito (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), doutor e mestre em Direito Processual Civil (PUC-SP) e pesquisador visitante na Cardozo School of Law (Nova York), e no Max Planck Institute Luxembourg for Regulatory Procedural Law.

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