Embargos Culturais

D. Quixote e os leões: a metáfora da loucura contra o comodismo e a banalidade

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

18 de fevereiro de 2018, 8h00

Spacca
Há uma encantadora peça de Astor Piazolla, composta para violino e piano, Oblivion, cuja tristeza envolvente nos remete às frustrações que, afinal, fazem parte da vida. Frustrações devem ser entendidas e deslembradas. Oblivion é a própria expressão que nos conduz ao esquecimento, sem o que não conseguimos viver. Esse esquecimento, no entanto, não significa comodismo e banalidade. Não é uma aceitação da condição humana, pura e simples. É um grau de compreensão.

Estes dois últimos atributos (negativos), comodismo e banalidade, são nítidos em passagem alegórica de Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de D. Quixote. Cervantes viveu em um tempo no qual o sonho da cavalaria estava se esfacelando. Tempo parecido com o nosso, que também vê tantos sonhos se desfazerem. D. Quixote é o réquiem de uma época de heróis e de heroínas, lanças, castelos, sonhos e eremitas. Ainda não havia utopias. O tempo do Quixote testemunhou o fim do tempo do amor-cortês; por isso, o cavaleiro-andante de Cervantes resistia no amor desesperado à Dulcineia del Toboso. Sobrevivia na alucinação da dedicação ao ente amado.

De tanto ler livros de cavalaria, o Quixote intoxicado por estórias lancinantes inverteu a lógica de seu tempo. O excesso de leituras pode subverter a ordem real. O Quixote tornou-se a própria medida do humano[1], em cuja alma deveria gravitar a existência. Contrariou o tempo no qual éramos avaliados por uma obediência inquestionável. Nessa contraversão lógica a insensatez passou a ser o cânone da realidade. Sancho Pança desconstruiu, com seu realismo, a loucura de seu amo. Sancho representa a vida real, enquanto o Quixote simula uma existência idealizada. Aquela é dura. Essa, pior ainda, justamente porque só existe nas cabeças daqueles que as concebem.

É na parte II de D. Quixote (capítulo XVII) que a insanidade do cavaleiro da triste figura chegou ao seu ponto culminante. Não é por outra razão que Cervantes denominou esse animado capítulo de “Onde se declarou o extremo e último ponto aonde chegou a pôde chegar o inaudito ânimo de D. Quixote com a felizmente acabada aventura dos leões”[2]. É nesse episódio que se compreende, com exatidão, o sentido do adjetivo quixotesco. O quixotismo, sugeriu Miguel de Unamuno, consiste, simplesmente, na “fase mais desesperada da luta entre a Idade Média e a Idade Moderna”[3]. É o inconformismo com o antigo. É o tempo dos inconformados, como tantos inconformados hoje também os há.

Nessa parte do livro, narra Cervantes, em determinado momento, Sancho comprou uma medida de requeijão, que apressadamente deixou sobre a sela de Rocinante, fraco e pequeno, verdadeiro rocim, o célebre cavalo do Quixote. O cavaleiro solitário, também apressadamente, colocou o requeijão debaixo do capacete, apertando-o na cabeça, sem atentar para o que estava fazendo. Assustado com o queijo liquefeito que escorria em seu rosto e barba, perguntou a Sancho se, de fato, seus miolos estavam derretendo. É o que efetivamente parece ter ocorrido. Assim nos sugere Cervantes.

Depararam com um carro enfeitado, cheio de bandeiras, conduzido por um domador de leões. Quixote perguntou que carro era aquele, o que levava e o que significavam as bandeiras, ao que o carreiro-domador prontamente respondeu: “O carro é meu, o que vem nele são dois bravos leões enjaulados que o general de Orã manda à Corte, de presente para Sua Majestade; as bandeiras são do Rei nosso Senhor, em sinal de que aqui vai coisa dele”[4]. Tratava-se, assim, de um presente para o rei.

O Quixote espantou-se com o fato de que os leões eram muito grandes. O carreiro-domador, até então levando-o sério, prontificou-se a explicar: “Tão grandes (…) que nunca da África à Espanha passaram maiores, nem tamanhos. Eu sou o tratador de leões e já trouxe outros antes, mas como estes, nenhum. São fêmea e macho; o macho vai nesta primeira jaula, a fêmea na de trás, e agora estão famintos porque hoje ainda não comeram (…)”.

O cavaleiro andante não se percebeu do perigo, afirmou que os leões não passavam de leõezinhos e que queria enfrentá-los para mostrar quem era D. Quixote de la Mancha. Exigiu, então, que a jaula fosse aberta. Queria encarar os leões. O herói medieval, do qual o Quixote seria a forma mais superlativa, necessita, a todo instante, comprovar sua bravura e heroísmo. Nem ele acredita em suas qualidades; talvez porque não admita que tenha defeitos e fragilidades.

O tratador de leões compreendeu o Quixote como um louco. Pressionado por aquela estranha figura, o tratador resolveu abrir a jaula, advertindo a todos que agia contra sua vontade e que era forçado a soltar os animais a pedido daquele louco que ali estava. Protestava que todos os prejuízos que ocorressem correriam por conta do ensandecido Quixote[5]. Pediu aos presentes que corressem para um lugar seguro, certo que estava que a ele, o tratador, e apenas a ele, os leões não fariam mal.

Com lágrimas nos olhos, Sancho Pança implorou que Quixote mudasse de ideia e que desistisse da doidice. Para poupar o cavalo, Quixote quis a batalha em pé mesmo. Apenas pediu que Sancho tomasse conta de Dulcineia caso fosse na peleja trucidado pelos animais.

A jaula foi aberta. Prossegue Cervantes, relatando a reação do leão: “A primeira coisa que este fez foi se resolver na jaula onde vinha deitado e estender as garras e se espreguiçar todo. Depois abriu a boca e bocejou muito de espaço, e com quase dois palmos de língua que pôs fora limpou os olhos e lavou a cara. Isto feito pôs a cabeça fora da jaula e por toda a parte correu os olhos (…) Só D. Quixote o olhava atentamente, desejando que saltasse logo do carro e com ele viesse às mãos, entre as quais pensava fazê-lo em pedaços”[6]. O leão simplesmente não prestou atenção no Quixote e, ainda que faminto, virou de costas para quem o desafiava. A loucura do Quixote chegava ao extremo. Porém o leão, segue Cervantes, era mais comedido do que arrogante. Acovardado, o leão não quis nem ousou sair da jaula[7].

O leão da cena do Quixote representa o comodismo e a banalidade; “só cuida de sobreviver, comer e dormir entre as quatro paredes da jaula, caminhando não sabe como nem por quê pelos caminhos poeirentos da Mancha e da vida”[8]. Não devorou o Quixote e não vai devorar ninguém. É um resignado. Não tem ambições. Contenta-se com o pouco que lhe dão.

Esqueceu-se que foi assinalado como o rei da selva e conformou-se com a mesmice dos limites da jaula. É esse esquecimento que se deve combater: trata-se do esquecimento de que estamos vivos, de que a condição para a vida é a luta e de que a suposição dos desafios não pode se esgotar nas primeiras tentativas de superação. Como sugere a peça musical de Piazolla, o esquecimento necessário é o das frustrações da vida, porque inerentes à nossa condição.

E quanto ao Quixote, já o definiu Sancho Pança, não era um louco; o Quixote era um atrevido[9]. Comodismo e banalidade devem ser enfrentados com muito atrevimento e com alguma loucura. Quixote, em alguma medida, dignifica os inconformados, porque também é metáfora para a superação do arcano para o reluzente.


[1] Ver, nesse tema, San Tiago Dantas, D. Quixote, um apólogo da alma ocidental, Brasília: Editora da UnB, 1997, pp. 35 e ss.
[2] Em língua portuguesa há várias traduções de D. Quixote. Há o texto clássico, a chamada tradução dos Viscondes, Castilho e de Azevedo, ilustrada por Gustavo Doré (São Paulo: Edigraf, 1957). Há também a tradução de Sérgio Molina, São Paulo: Editora 34, 2010, que uso na composição do presente ensaio. Para o público jovem, recomenda-se, e insiste-se, na deliciosa versão de Monteiro Lobato, D. Quixote das Crianças.
[3] Cf. Ward, Ian, Mitos do Individualismo Moderno, Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 76. Tradução de Mario Pontes.
[4] Miguel de Cervantes, D. Quixote, São Paulo: Editora 34, 2010, Tomo II, p. 204. Tradução de Sérgio Molina.
[5] Cf. Miguel de Cervantes, cit., p. 206.
[6] Miguel de Cervantes, cit., p. 209.
[7] Cf. Miguel de Cervantes, cit., p. 211.
[8] Cf. Carpeaux, Otto Maria, Ensaios Reunidos, 1946-1971, volume II, Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 193.
[9] Cf. Miguel de Cervantes, cit., p. 205.

Autores

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    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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