Opinião

É preciso cautela ao exigir compliance em contrato público

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18 de fevereiro de 2018, 10h00

Recentemente, os Estados do Rio de Janeiro e do Distrito Federal editaram, respectivamente, leis que passaram a exigir programas de compliance para a celebração de contratos com a Administração Pública estadual.

Observa-se que a lei estadual fluminense e a distrital são muito similares, tanto em sua redação como em suas disposições, ao se estabelecer que a existência de programas de compliance configura como um dos requisitos necessários para o que contratado possa realizar a assinatura do contrato com a Administração Pública.

A partir dos preceitos da legislação fluminense (Lei Estadual 7.752/2017), para que os contratados possam assinar contratos administrativos com o Estado (somente nos casos acima de R$ 1,5 milhão para obras e serviços de engenharia ou R$ 650 mil, nos casos de compras e prestações de serviços por período superior a seis meses), será necessário que os particulares possuam programas de compliance.

Por sua vez, a Lei Distrital 6.112/2018 prescreve a obrigatoriedade da implantação ou existência de Programa de Integridade para todas as contratações administrativas – seja na forma de convênio, consórcio, concessão ou PPP – cujo valor seja igual ou superior aos da licitação na modalidade tomada de preço, estimados entre R$ 80 mil e R$ 650 mil e com duração igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias.

Além dos novos contratos a serem celebrados, a Lei Distrital nº 6.112/2018 também se aplica aos contratos em vigor, com prazo de duração superior a 12 (doze) meses e aos contratos celebrados com ou sem dispensa de licitação, desde que atendidos os requisitos de valor estabelecidos no art. 1º da Lei Distrital.

Tanto na Lei distrital e fluminense, os programas de compliance a serem implantados devem prever mecanismos e procedimentos de integridade, auditoria, controle e incentivo a denúncias de irregularidades, de acordo com a própria a legislação federal e regulamentações no tema (cf. art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 12.846/2013, art. 42, do Decreto Presidencial 8.420/2015 e Portaria CGU 909/2015).

Em que pese os inegáveis avanços na postura proativa tomada por ambos os entes federativos, compreende-se que ainda existem alguns pontos obscuros na exigência de programas de compliance para a assinatura de contratos administrativos, especialmente do ponto de vista constitucional e do direito contratual público, que merecem maior debate e reflexão.

O primeiro ponto que merece destaque é que a imposição para a assinatura do contrato administrativo, por parte de ente federativo estadual e distrital, poderia ser considerada como inconstitucional.

Isso porque pode se aventar violação expressa à competência privativa da União para dispor sobre normas gerais de licitações e contratos (art. 22, XXVII, da Constituição Federal).[1] Inegavelmente, lei estadual criou uma condição especial para a assinatura de contrato administrativo, o que, em nosso modo de ver, acaba por criar restrição que somente poderia se veicular por meio de norma geral, de competência privativa da União.

Conforme já definiu o Supremo Tribunal Federal, em caso de lei do Distrito Federal que impunha restrição à contratação de empresas que realizassem discriminação na mão de obra, que ensejou em reconhecimento de inconstitucionalidade: “O dispositivo atacado estabelece um critério a ser observado de modo geral nos contratos administrativos do Governo do Distrito Federal, vale dizer, que não especifica tampouco destaca tema capaz de retirar-lhe a abstração, a generalidade e impessoalidade: também nãos e trata de norma especial, atinente a particularidades da orientação local – mas, sim, de normal geral de incapacitação para licitar” (STF, ADI 3.670, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 2-4-2007, P, DJ de 18-5-2007).

De igual modo, entende-se que as leis comentadas estabelecem critérios aplicáveis a todos aqueles que desejam celebrar contratos com suas respectivas administrações, violando, ainda que em tese, o art. 22, XXVII, da Constituição Federal, por infringir a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitações e contratação.

Segundo, entende-se que a imposição da obrigatoriedade de implantação de programas de compliance para os contratos já vigentes, especialmente no caso do Distrito Federal,[2] poderá ter reflexos diretos no próprio equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Ao se estabelecer como obrigatória a exigência da existência de programas de integridade, o contratado terá que dispender recursos para atender uma exigência criada pela Administração Pública, equiparando-se, ao que tudo indica, a um fato do príncipe.[3]

Ou seja, entendemos que, caso comprovado pelo contratado que os custos para a implementação de um programa de compliance, por estrita observância à exigência criada pela Administração Pública, esta deverá recompor os custos realizados pelo particular para o atendimento das requisições do Poder Público, de modo a reequilibrar as condições da proposta (art. 37, XXI, da Constituição Federal).[4]

Em terceiro lugar, destaca-se que mesmo que as leis mencionadas não venham a estabelecer que a existência de programas de compliance como um requisito de habilitação ou de participação na licitação, todavia, na fase de assinatura contratual, a exigência acaba por privilegiar, inegavelmente, as empresas que já venham a possuir tais mecanismos de integridade, normalmente grandes empresas, em prejuízo ao preceito de competitividade nos procedimentos de contratação pública.[5]

Entende-se que seria muito mais adequada a utilização dos programas de compliance como um critério para a pontuação das propostas, quando da utilização do tipo de licitação “melhor técnica” ou “técnica e preço” (art. 46, § 1º, I, da Lei 8.666/1993), e não como uma condicionante à assinatura contratual.

Como sabido, a implementação de programas de compliance (até mesmo pela novidade do tema envolvendo a Administração Pública) exige recursos e profissionais capacitados, o que poderá restringir o número de empresas que tenham efetivas condições de celebrar contratos administrativo.

Em conclusão, compreende-se que a exigência de programas de compliance deve ser vista sempre com bons olhos, sobretudo por exigir uma postura ativa dos entes privados perante a Administração Pública. Em momento algum se está a defender a irrelevância de tais programas; porém, a mera exigência, sem a definição ou obrigação da existência de programas de compliance efetivos, também não contribui com os propósitos de combate à corrupção.[6] Programas de compliance devem ser antes o desígnio da efetividade do que o da obrigatoriedade.

O objetivo do presente artigo é demonstrar que ainda restam alguns pontos nebulosos sobre a possibilidade dos entes federativos estabelecerem tais programas como requisitos à assinatura de contratos administrativos (que merecem maior discussão e debate), por conta de: i) possível inconstitucionalidade (por afronta ao art. 22, XXVII, da Constituição Federal); ii) prejudicar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato (art. 37, XXI, da Constituição Federal), por conta da aplicação da teoria do fato do príncipe, tendo em vista que a Administração Pública (sobretudo a do DF) poderá impor custos anteriormente inexistentes ao contratado; e, iii) restrição de mercado às empresas que já possuem programas de compliance, em detrimento à competividade necessária nos procedimentos licitatórios, ainda que como um requisito à assinatura do contrato administrativo.

[1] “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: […] XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III”.

[2] Assim dispôs a Lei Distrital nº 6.112/2018: “Art. 2º Aplica-se o disposto nesta Lei: […] II – aos contratos em vigor com prazo de duração superior a 12 meses”.

[3] Na lição de José Cretella Júnior: “a teoria jurídica que procura explicar em que se fundamenta a responsabilidade pecuniária da Administração quando, em virtude de medidas por esta tomadas e que oneram sobremaneira a execução do contrato por parte do particular, está o Estado obrigado a indenizar, recebe o nome de teoria do fato do príncipe” (CRETELLA JÚNIOR, José. Teoria do “fato do príncipe”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 75, 1964, p. 30. Disponível em: <https://goo.gl/7H6ZbV>. Acesso em 10 de fev. de 2018.

[4] Destaca-se que isso restou expressamente ressalvado na norma fluminense, em grave violação ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato: “Art. 5º – A implantação do Programa de Integridade no âmbito da pessoa jurídica dar-se-á no prazo de 180 (cento e oitenta) dias corridos, a partir da data de celebração do contrato. […] § 2º Para efetiva implantação do Programa de Integridade, os custos/despesas resultantes correrão à conta da empresa contratada, não cabendo ao órgão contratante o seu ressarcimento”.

[5] Discussão similar ocorreu na exigência de certificação da ISO 9001 como condição de habilitação em licitações. O Tribunal de Contas da União entendeu que tal exigência seria indevida, por violar a competividade do certame: “Afastar os participantes não certificados reduz a possibilidade de alcance da melhor proposta para a Administração, sem que haja justificativa razoável para tanto. Por outro lado, não há óbice para a utilização do aludido certificado para atribuir pontuação à licitante, o que permite reconhecer seu diferencial em relação a outras que não comprovaram a adequação de seu sistema de produção aos critérios de qualidade estabelecidos nas normas pertinentes” (TCU, Acórdão n.º 1085/2011- Plenário, TC-007.924/2007-0, Rel. Min. José Múcio, j. em 27.04.2011).

[6] Nesse mesmo sentido se inclina Carla Veríssimo, que compreende que mera a exigência de programas de compliance sem o compromisso de efetividade não contribui com os objetivos de combate à corrupção, devendo o Estado regular somente suas estruturas mínimas de funcionamento: “Para que um programa [de] compliance possa contribuir para a conformidade com as leis e repercutir favoravelmente na responsabilização da pessoa jurídica e das pessoas físicas, ele deve ser efetivo. Numa ótica de autorregulação regulada, não cabe determinação minudente por parte do Estado sobre como devem ser esses programas. Isso além de não ser possível, não seria igualmente recomendável. Apenas estruturas fundamentais devem ser indicadas na legislação” (VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 272-273

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  • Brave

    é doutorando em Direito do Estado pela UFPR, mestre em Direito pela USP e advogado em Curitiba na área de Direito Público.

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