Diário de Classe

Afinal, o que é uma decisão fundamentada, segundo a exigência constitucional?

Autor

  • Rafael Giorgio Dalla Barba

    é advogado doutorando em Filosofia do Direito pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos).

17 de fevereiro de 2018, 7h00

Para escapar da arbitrariedade e do uso abusivo do poder, os rumos da história levaram a sociedade a se empenhar para que, num Estado Democrático de Direito, os atos estatais sejam fundamentados. Essa reivindicação levou o legislador a inserir, no artigo 93, IX, a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais, sob pena de nulidade, e a definir taxativamente, no artigo 489, parágrafo 1º do CPC, as hipóteses em que a decisão judicial não se considera fundamentada.

Mas em que momento podemos afirmar com tranquilidade que uma decisão está fundamentada? Em que medida a autoridade competente completa o seu dever constitucional de fundamentação?

O primeiro problema surge imediatamente depois de nos darmos conta de que qualquer proposição, para ser fundamentada, exige outras proposições. Essas, por sua vez, exigem ainda novas proposições para que possam ser fundamentadas, e assim por diante. Esse caminho, que leva a um regresso ad infinitum, se junta à petição de princípio e à circularidade como uma das três formas de carência de solidez lógica, diagnosticadas por Hans Albert com seu trilema de Münchhausen[1].

Mas então voltemos a indagar: a partir de que ponto uma decisão pode ser considerada fundamentada segundo a exigência constitucional? Tenho certeza de que não demorará para algum jurista perspicaz bradar: “É para isso que existem os embargos declaratórios!”. Sinto muito, mas a decisão dos embargos não está blindada aos fenômenos de que fala Albert. Em algum momento a sucessão de embargos precisará terminar com a (ameaça de) imposição de multa, nos termos do artigo 1.026, parágrafo 2º do CPC. Essa saída, antes de enfrentar o problema, apenas o contorna procedimentalmente. E voltamos novamente à indagação anterior.

Então o mesmo jurista, agora incomodado com a indagação, exclama: “Isso são perguntas maçantes de filósofos”, “Na prática não é bem assim” ou “As coisas são assim mesmo. Acostume-se!”. O problema é que, para os juristas em geral, as coisas só se tornam objeto de preocupação quando o prejuízo lhes atinge direta e imediatamente, como na decisão do pedido liminar que impediu a posse de Cristiane Brasil Francisco ao cargo de ministra do Trabalho com base na ofensa à “moralidade administrativa”[2].

Sem adentrar no mérito da decisão (se correta ou incorreta), cabe indagar o que é essa entidade chamada “moralidade administrativa” que está no caput do artigo 37 da CF e como é possível demonstrar que ela se aplica ao caso concreto. E mais: por que o ato estaria violando a “moralidade administrativa”, uma vez que a existência de ações trabalhistas em desfavor da indicada não consta como óbice à nomeação do cargo?

A essa altura o leitor já deve ter reparado que o ponto em que quis chegar é sobre os limites da atuação judicial dentro de um Estado de Direito e a problemática da fundamentação. Como na metáfora de Wittgenstein[3], a tarefa de fundamentar proposições se assemelha ao trabalhador que bate a pá em um rochedo contra o qual não é mais possível cavar. Aliás, a questão do fundamento último foi objeto das mais variadas especulações filosóficas desde a Grécia antiga até Heidegger[4], cujo projeto de ontologia remete à inexistência de um fundamento absoluto e inabalável para a Filosofia.

No entanto, justamente quando parece que chegamos ao fim da jornada é que somos desafiados pelos detalhes mais sutis a ir adiante. E justamente o detalhe nos faz perceber que a reivindicação de Heidegger se direciona à Filosofia, não ao Direito. Eis o ponto central: a formação dos institutos jurídicos se desenvolve independentemente de outras esferas do conhecimento (aí incluídas Filosofia Moral, Política etc.). O Direito, enquanto disciplina com seus métodos e tradições próprios, opera na prática atribuindo significados específicos e muito bem determinados a conceitos que, por sua vez, referem-se a outros objetos e situações na linguagem ordinária[5].

Essa autonomia é o que permite ao Direito desenvolver uma concepção própria e específica para o conceito de “fundamentação” e, dessa forma, se desvincular dos problemas clássicos da Filosofia. Ou seja, não há uma equivalência semântica entre os conceitos empregados no Direito e nas demais esferas do conhecimento. Se assim não o fosse, uma decisão judicial jamais poderia ser considerada verdadeiramente fundamentada, e o trânsito em julgado deveria ser excluído do ordenamento. Não é preciso refletir por muito tempo para concluir que essa não é uma saída muito adequada.

Sob essa ótica, ainda que o artigo 489, parágrafo 1º do CPC pareça trazer um critério negativo, na prática o dispositivo exerce uma função positiva: a decisão será fundamentada se nela não puder ser apontado nenhum dos aspectos elencados no parágrafo. Ou seja, o Direito constrói um significado próprio para “fundamentação”, emancipando-se de outras esferas do conhecimento ainda que com elas compartilhe os mesmos conceitos.

Não se trata de um contorno procedimental, mas da manifestação da autonomia do fenômeno jurídico[6]. É essa autonomia de significação que lhe possibilita resolver litígios em sua área de atuação com métodos e recursos especificamente jurídicos, deixando a outras esferas (sobretudo à Filosofia Moral e Política) os problemas que lhe são tradicionalmente próprios.

Ainda que a pá entorte em face ao rochedo, nada impede que se recomece a cavar em outro lugar.


[1] ALBERT, Hans. Traktat über kritische Vernunft. 5. ed. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1991. p. 13 e segs.
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/juiz-suspende-posse-cristiane-brasil.pdf
[3] WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Frankfurt: Suhrkamp, 1971. § 217.
[4] HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967. p. 19 e segs.
[5] POSCHER, Ralf. A mão de Midas: quando conceitos se tornam jurídicos ou esvaziam o debate Hart-Dworkin. Trad. de Rafael Giorgio Dalla Barba. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 10, n. 1, 2018 (no prelo).
[6] Uma abordagem prescritiva da noção de autonomia do Direito, desenvolvida como “otimismo metodológico” em relação à moral, política e economia, ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 69-78.

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