Limite Penal

Para você que acredita em verdade real,
um abraço

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16 de fevereiro de 2018, 7h00

Spacca
Como nunca teremos todas as informações possíveis no dispositivo do processo penal[1], mostra-se ilusório acreditar em "verdade real" como sinônimo de obtenção do que "verdadeiramente" aconteceu no caso penal, a saber, há um resto desconhecido por definição. Sabe-se que o discurso da verdade real[2] é acolhido de boa-fé por muitos, preocupados em não condenar um inocente e descobrir o que de fato ocorreu. A questão é que o discurso da verdade real traz consigo o rompimento das barreiras e limitações legais em nome do resultado. Por mais que tenhamos acesso, por exemplo, a uma prova posteriormente declarada ilícita, o conteúdo dela se faz presente no processo cognitivo, gerando o que se denomina de "dissonância cognitiva"[3]. Em um processo crime em que a prova da materialidade seja subtraída, por ilícita, o regime de verdade opera em outro nível. O que pretendo, nesse desvio, é demonstrar que se julga para além da dúvida razoável, tendo o processo como procedimento em contraditório como limite democrático. Superar o discurso da verdade real significa ultrapassar os limites metafísicos do modo de pensar, embora a maioria dos jogadores, no aspecto filosófico, esteja pelo menos um século atrasado: pensam em descobertas de verdades e não em construções de verdades na linguagem. Precisamos, então, saber modular os discursos porque superar o mantra da verdade real é somente para quem conseguiu compreender o giro linguístico operado na Filosofia. Ganha espaço o campo da argumentação e a teoria da derrotabilidade (aqui).

“O processo busca a verdade real” é o mantra, entendido como uma fórmula mística que recitada muitas vezes, ganha o efeito de acreditação ou como um estereótipo[4], entoado reiteradamente desde os bancos escolares e que esconde interesses ideológicos outros, além de ser mecanismo retórico[5] para superação do devido processo legal em nome dos fins e, também, decorrer da heurística do excesso de confiança.

As condições de possibilidade da produção dos regimes de verdade no processo penal devem ser problematizadas[6]. É claro que os partidários da verdade fundante não entendem a crítica, até porque o mundo é o limite pelo qual foram adestrados. Logo, para eles, não faz sentido. E a grande, imensa maioria é composta de togados e membros do Ministério Público, além de defensores. Em geral, se indagados, respondem: a verdade é a verdade. São tautológicos e de uma ingenuidade filosófica obscena[7].

A distinção entre verdade formal e material demanda reconhecer em Kant[8] sua origem. A distinção entre duas formas de verdade forjou o mal-entendido. A verdade formal vinculava proposições a leis do pensamento, falseando a realidade, enquanto a segunda fundia essas percepções. A teoria da história mostra que fatos tidos como verdadeiros são controvertidos e que a versão oficial pode se distanciar do que de fato ocorreu, embora nunca se possa colocar uma última e definitiva versão[9]. É claro que o processo, ao ser aparentemente retrospectivo[10] (mas é prospectivo), implica na escolha dos elementos mais interessantes, os quais restam sublinhados, incidindo o viés retrospectivo. Sempre, contudo, são parciais e representam interesses não ditos. É nos jogos de linguagem[11] que o significante probatório ganhará sentido no contexto em que é invocado.

A ilusão medieval da verdade real[12], quem sabe, parta da alucinação de que se pode saber tudo[13]. Aliás, o lema para se decidir com qualidade é: “Devemos saber tudo e saberemos”, lançando-se no mundo de investigação sem limites, nem regras. Afinal, em nome da verdade (do sujeito) tudo vale[14]. O lugar do processo no contexto inquisitório é da ordem do estorvo.

A questão é que o regime de informações, ou melhor, o subjogo probatório, também está regulado por lei e com as sutilezas da linguagem, prenhe de enganos linguísticos e cognitivos. A aposta na imparcialidade do julgador seria o mecanismo garantidor da verificação, não fosse ilusório. Isso porque há uma impossibilidade em conhecer tudo, desde o lugar até o sujeito, além de mecanismos cognitivos, como a dissonância. O infinito que se pretende conhecer no processo, em ato, somente pode acontecer em potência. Em outras palavras: o infinito de provas só é possível em potência, jamais em ato.

Aclarando a afirmação, podemos dizer que, se quisermos conhecer todos os números naturais (1, 2, 3 e assim por diante), poderíamos começar nossa vida infantil e morreríamos sem chegar ao final. Aliás, qualquer pessoa ou mesmo computador jamais poderia chegar ao infinito. A objeção de que no processo penal não se opera com infinitos, mas, sim, com singulares, exigiria que antes se estabelecesse o conjunto dos significantes possíveis, mas isso é ilusório. Sempre pode aparecer uma nova prova, uma nova testemunha, um novo documento, uma mudança de declarações. Para propiciar essa abertura ao futuro é que a revisão criminal é prevista. De outro lado, para que o processo penal tenha início, meio e fim, restringem-se as provas, sob pena de nunca terminar. E se decide com o que é mostrado pelos jogadores (atividade cognitiva e persuasiva), na fusão de horizontes de mapas mentais que o dispositivo do processo penal proporciona[15]. O que se pode ter é um processo justo, jamais dita verdade real.

Por isso cabe a advertência de Wittegenstein: “Não diga: ‘Não há nenhuma última elucidação’. É exatamente o mesmo que dizer: ‘Não há nenhuma última casa nesta rua’; pode-se sempre construir mais uma”. Um abraço.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: short introduction. Florianópolis: EModara-EMais, 2018.
[2] STRECK, Lenio Luiz. A verdade das mentiras e as mentiras da verdade (real), https://www.conjur.com.br/2013-nov-28/senso-incomum-verdade-mentiras-mentiras-verdade-real; OLIVEIRA, Rafael Tomaz; STRECK, Lenio Luiz. https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/diario-classe-exorcizar-fantasmas-livre-convencimento-verdade-real; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2018.
[3] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[4] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 13: “Nas atividades cotidianas — teóricas, práticas e acadêmicas — os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, habitus de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação”.
[5] TARUFFO, Michele. La prueba. Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 26: “La idea de una verdad absoluta puede ser una hipótesis abstracta en um contexto filosófico amplio, pero no se puede sostener racionalmente que una verdad absoluta pueda y deba ser establecida en ningún dominio del conocimiento humano, y ni qué decir tiene del contexto judicial”.
[6] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. Recomendo muito a leitura.
[7] PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 346: “Talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal. O aludido princípio, batizado como da verdade real, tinha incumbência de legitimar eventuais desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada ao juiz em nosso processo penal. A expressão, como que portadora de de efeitos mágicos, autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou da acusação). Dissemos autorizava, no passado, por entendermos que, desde 1988, tal não é mais possível a igualdade a par conditio (paridade de armas), o contraditório e a ampla defesa, bem como a imparcialidade, de convicção e de atuação, do juiz, impedem-no”.
[8] KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura. Trad. J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
[9] GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009.
[10] CASARA, Rubens R.R. Interpretação Retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
[11] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53: “Mas então o emprego da palavra não está regulamentado; o ‘jogo’ que jogamos com ela não está regulamentado. Ele não está inteiramente limitado por regras; mas também não há nenhuma regra no tênis que prescreva até que altura é permitido lançar a bola nem com quanta força; mas o tênis é um jogo e também tem regras”.
[12] ROQUE, Tatiana. História da Matemática. Zahar: Rio de Janeiro, 2014, p. 24: “Cada época acaba elaborando, sobre o passado, as histórias que se adaptam, de alguma forma, à visão que possui sobre si mesma”.
[13] ÁVILA, Gustavo Noronha de; GUALAND, Dieter Mayrhofer; PIRES FILHO, Luiz Alberto Brasil Simões. A obsessão pela verdade e algumas de suas consequências para o processo penal. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A crise no processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006, p.43-44: “Acima de tudo, a verdade real é um mito, que deve ser desconstruído, e apenas serviu (e ainda serve) para justificar os atos abusivos praticados pelo Estado. Falar em verdade real é falar em algo absolutamente impossível de ser alcançado, a começar pela inexistência de verdades absolutas. A própria ciência encarregou-se de demonstrar isto. Ademais, não há que se esquecer que o crime é um fato histórico (para isso servem a prova e o próprio processo) é sempre minimalista e imperfeita”.
[14] DIAS, Paulo Thiago Fernandes. A adoção do adágio do in dubio pro societate na decisão de pronúncia: (in)constitucionalidade e (in)convencionalidade. Porto Alegre: PUC-RS (Dissertação de Mestrado – Direito), 2016, p. 63: “Em apertada síntese, a inquisição estava estruturada nas seguintes premissas: busca da verdade absoluta (que nada mais era do que a reafirmação do dogma católico); ausência de limites éticos para o encontro dessa verdade (privilegiando-se a obtenção da tortura do processado ou suspeito de heresia); ausência de partes no processo (já que o Estado concentrava as funções típicas do acusador e de julgador, suprimindo a possibilidade do exercício de defesa); estímulo às delações; a prisão se torna a regra (o corpo do herege não lhe pertence mais); não atribuição do efeito de coisa julgada à sentença absolutória (a insegurança jurídica era mais uma pena imposta ao absolvido pela acusação de heresia); a pedagogia do medo (enquanto decorrência do sigilo, já que o acusado desconhecia a identidade de seus acusadores); o excesso de poder (o inquisidor não era a lei, ele estava acima da lei)”.
[15] KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. O objeto da prova judiciária e a derrotabilidade processual no campo da teoria da argumentação. In: SERBENA, Cesar Antonio (coord). Teoria da Derrotabilidade: pressupostos teóricos e aplicações. Curitiba: Juruá, 2012, p. 392: “Com efeito, se (i) é impossível o restabelecimento dos fatos pretéritos e (ii) se jamais se logrará extirpar toda a dúvida possivelmente existente sobre a ocorrência dos mesmos, tem-se que o aspecto racional da ação julgadora do magistrado deve contemplar a mediação dialético-argumentativa ainda durante a construção da decisão judicial campo da argumentação. O ideário sugerido deve estar amparado nos argumentos que sustentam as pretensões das partes, pois, se é impossível a apreensão exata do fato — uma vez que sua percepção é deturpada por uma multiplicidade de fatores —, a finalidade precípua da prova judiciária consiste em promover a reconstrução histórica do fato narrado, com apego à escolha da versão mais convincente e congruente entre alternativas possíveis”.

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  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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