Destruição de obras de arte

Direito moral vence direito de propriedade em batalha judicial nos EUA

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16 de fevereiro de 2018, 7h33

O empreendedor imobiliário Jerry Wolkoff poderia ter economizado US$ 6,7 milhões se tivesse consultado um advogado especializado em artes. Esse é o valor da indenização que ele terá de pagar a 21 grafiteiros por ter destruído 45 murais em um prédio de sua propriedade. O advogado o teria aconselhado a dar um aviso prévio de 90 dias aos grafiteiros, antes de mandar trabalhadores cobrir com cal os murais no prédio, que seria destruído de qualquer forma. Se tivesse feito isso, não teria violado a lei que garante o direito moral dos grafiteiros sobre suas obras de arte.

Forsaken Fotos / Flicker C.C.2.0
Murais foram pintados ao longo dos anos no prédio 5Pointz, destruído em 2013.
Forsaken Fotos/Flicker C.C.2.0

Wolkoff foi condenado a pagar a indenização em novembro de 2017, por um júri civil, após um julgamento que durou três semanas. Um dos principais argumentos do empreendedor imobiliário foi o de que o prédio era dele e, portanto, poderia fazer o que quisesse com ele. Mas a decisão foi a de que ele violou a Lei dos Direitos do Artistas Visuais (Vara – Visual Artists Rights Act), lei de 1990 que garante proteção ao direito moral dos artistas sobre suas obras.

Assim, pela primeira vez na história dos EUA, o direito moral, garantido aos grafiteiros, venceu o direito de propriedade, garantido ao empreendedor imobiliário, nessa batalha judicial. O resultado final foi a decisão do juiz federal Frederic Block, na segunda-feira (12/2), que mandou Wolkoff pagar a indenização milionária aos grafiteiros.

Os murais foram pintados ao longo dos anos no prédio 5Pointz em Long Island City, no Queens, Nova York, e destruídos em 2013. Eles criaram um novo ponto turístico na cidade e valorizaram a área. O prédio ficou conhecido como "meca do grafite" e "sede dos artistas". Os murais ganharam o status de obra de arte de "estatura reconhecida" (recognized stature), uma das condições para ganhar a proteção da Vara.

No julgamento, os dois lados levaram peritos em arte para discutir a condição de “estatura reconhecida” dos murais. A perita de Wolkoff argumentou que essa condição não era aplicável aos murais porque eles não foram matéria de atenção acadêmica, porque o nome de alguns dos artistas sequer aparecem em pesquisas no Google e porque, apesar do 5Pointz atrair turistas, os visitantes vão ao local porque querem ver um ponto turístico, e não para ver determinadas obras de arte.

O perito dos grafiteiros ressaltou a qualidade reconhecida dos artistas, porque vários deles exibiram suas obras em um show de arte de grafite no Museu do Brooklyn. E que nem mesmo Kent Twitchell, o grafiteiro mais famoso dos EUA, aparece nos jornais de arte, por causa de um certo preconceito. “Algumas pessoas ainda são céticas sobre a arte das ruas. Elas ainda veem o grafite como pinturas nos trens do metrô”, disse.

Direitos morais
A Lei dos Direitos do Artistas foi criada em 1990, depois que uma obra de arte famosa em um parque foi desmontada sem consentimento do artista, que não pôde fazer nada. É a primeira lei federal dos EUA, que, dentro do espectro dos direitos autorais, garante aos artistas direitos morais, de acordo com a Wikipédia.

Cumpridos certos requisitos, a lei garante aos artistas direitos adicionais sobre sua obra de arte, independentemente de qualquer propriedade física dela em qualquer momento ou de quem detém os direitos autorais. Um artista pode exigir a atribuição de crédito ou citação da fonte e, em certas circunstâncias, pode processar o proprietário da obra artísticas por destruí-la, mesmo que a posse da obra seja legal. E tem o direito de publicar sua obra anonimamente ou com pseudônimo.

A Vara garante aos artistas, dentro do contexto do direito moral: 1) direito de autoria; 2) direito de proibir o uso do nome do artista em qualquer obra de arte que ele não criou; 3) direito de proibir o uso do nome do artista em qualquer obra que foi distorcida, mutilada ou modificada de alguma forma que seria prejudicial à honra ou à reputação do artista; 4) direito de proibir distorção, mutilação ou modificação da obra, que possa prejudicar a honra ou reputação do artista; 5) direito de impedir a destruição da obra de arte, se ela tiver a condição de “estatura reconhecida”.

As obras protegidas são, normalmente, pinturas, desenhos, impressos, esculturas e fotografias. São artes produzidas apenas para exibição e existentes em cópia única ou em edições limitadas de 200 ou menos cópias, assinadas e numeradas pelo artista. As esculturas são particularmente sensíveis a violações da lei, porque são removidas de parques e praças públicas para outros lugares — ou mesmo para depósitos — sem consentimento do escultor.

Renúncia ao direito
A legislação prevê que o artista pode renunciar ao seu direito moral e aos direitos garantidos pela Vara ao negociar sua obra com um comprador ou com uma organização de qualquer espécie que contrata o artista. Tal renúncia, expressa por escrito, existe nos EUA, mas é proibida em alguns países europeus, como na França.

Na maioria das vezes, esse dispositivo legal coloca os artistas nas mãos dos contratantes de obras ou de compradores. Em outras palavras, o direito moral se torna, muitas vezes, uma faca de dois gumes — um direito excepcional que, se usado, pode prejudicar o artista.

Por exemplo, prefeituras podem não contratar uma escultura para uma praça pública se preveem que terão de pagar uma alta indenização se tiverem de removê-la um dia. Proprietários de prédios podem não contratar um grande mural para uma parede externa porque podem ser processados e ter de pagar indenização se um dia precisarem reformar a parede ou destruir o prédio para construir outro mais rentável.

De acordo com a revista Artsy, o direito de propriedade, no final das contas, mantém sua majestade nos EUA. Apenas artistas muito famosos podem se dar ao luxo de não renunciar a seu direito moral, quando as contas do mês não pesam no raciocínio. Ou quando o contratante não sabe o que faz.

Esse foi, aparentemente, o caso do empreendedor imobiliário nova-iorquino Jerry Wolkoff. Depois que ele perdeu a disputa com os grafiteiros e foi obrigado a pagar a indenização milionária, advogados especializados em arte tentaram explicar por que ele deixou isso acontecer. Afinal, bastava ter notificado os grafiteiros de que os murais seriam destruídos em 90 dias. Tivesse feito isso, a responsabilidade de remover os murais, nesse prazo, seria dos grafiteiros.

Para a advogada Brooke Oliver, que representa o grafiteiro Daniel Fontes na Califórnia, o empreendedor não reconhece o valor da arte. Para o advogado Eric Bauam, que representa os grafiteiros do 5Pointz, a ganância cegou o empreendedor. Já para o advogado Eric Bjorgum, que representou o famoso grafiteiro Kent Twitchell, a explicação é mais simples: o empreendedor simplesmente não sabia que ia se meter nessa encrenca jurídica, porque pensou que a propriedade era sua e, portanto, podia fazer o que queria com ela. Devia ter consultado um advogado especializado em arte.

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