Opinião

Efeitos penais da dação em pagamento (Portaria PGFN 32/2018)

Autor

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

15 de fevereiro de 2018, 11h31

Ainda em 2001, a Lei Complementar 104 inseriu a dação em pagamento no rol de figuras que extinguem o crédito tributário no artigo 156 do CTN, “na forma e condições especificadas na lei”, que só sobreveio em 2016. Mesmo assim, informa o Valor Econômico de 15 de fevereiro de 2018, o instituto não era aplicado, por ausência de regulamentação.

Esse é o escopo da Portaria PGFN 32, de 8 de fevereiro de 2018: regulamentar o procedimento da dação em pagamento de bem imóveis para extinção de débitos, de natureza tributária, inscritos na dívida ativa da União.

Não nos cabe aqui discutir os contornos tributários do instituto. O foco é apenas o efeito penal dessa nova figura, para fins de crimes tributários, formais e materiais.

Como se sabe, o Direito Penal Tributário conhece uma forma particular de extinção da punibilidade, a saber, o pagamento do tributo devido.

Em que pese existir desde a década de 1960, foi com a Lei 8.137/90 que o instituto ganhou maior relevância; no artigo 14, lia-se que “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1° a 3° quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”. O artigo foi revogado em 1991, pela Lei 8.383, porém ressuscitado, em linguagem muito semelhante, pela Lei 9.249/95.

Por anos discutiu-se o alcance da expressão “promover o pagamento”, tendo preponderado no STJ (porém não no STF) a interpretação de que promover o pagamento seria qualquer demonstração do contribuinte de buscar pagar o montante devido, inclusive pelo parcelamento, que foi considerado, por importantes precedentes, uma novação da dívida tributária.

Essa interpretação trazia um inconveniente político-criminal: bastava ao cidadão aderir ao parcelamento que já se operaria a extinção da punibilidade, sendo irrelevante a continuidade do pagamento das parcelas e a permanência dele no programa de parcelamento.

A Lei do Refis, de 2000, traz, então, pela primeira vez, efeitos penais expressos ao parcelamento tributário: a suspensão da pretensão punitiva estatal. Trocando em miúdos: enquanto o contribuinte estiver pagando o parcelamento, o Estado-penal nada pode fazer; adimplida a última parcela, dá-se o pagamento e, com ele, a extinção da punibilidade.

Desde 2000, portanto, com oscilações quanto ao marco temporal (ou seja, se antes ou depois do recebimento da denúncia do Ministério Público pelo juiz), dois institutos tributários guardam efeito penal específico: o pagamento extingue a punibilidade, e o parcelamento suspende a pretensão punitiva estatal.

Mas nem só o pagamento extingue o crédito tributário, bem como nem só o parcelamento suspende sua exigibilidade.

Como extrapolar efeitos penais às figuras congêneres ao pagamento e ao parcelamento?

No âmbito da suspensão da exigibilidade do crédito tributário, as figuras do depósito judicial e mesmo das cartas bancárias de fiança vêm sendo entendidas como suficientes para garantir o futuro adimplemento do crédito, caso o interesse fiscal do ente prevaleça.

Confira-se, por exemplo, decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que trancou ação penal ao julgar, em 2013, o Habeas Corpus 27833-70.2010.4.01.3300, em razão de o paciente ter depositado judicialmente montante integral do crédito tributário: “O depósito do montante integral do crédito constitui causa de suspensão de sua exigibilidade, assim como o parcelamento, o que conduz, na hipótese dos autos, ao trancamento da ação penal. 3 – Suspensa a exigibilidade do crédito tributário por meio de depósito que inclusive supera o montante cobrado pela Fazenda Pública, com razão a Impetrante ao pretender o trancamento da ação penal, pois, em caso de decisão favorável à empresa, ser-lhe-á devolvida a quantia depositada à ordem do Juízo; caso seja vencida, certamente, haverá conversão em renda a favor da União”.

Também o Tribunal de Justiça de São Paulo já confirmou decisão monocrática que, diante do oferecimento de carta de fiança bancária aceita pelo juízo de execução fiscal, aplicou o artigo 93 do Código de Processo Penal a um inquérito em andamento; na prática, houve suspensão do feito enquanto pendente a ação tributária (Rese 0002444-36.2012.8.26.0050, rel. des. Toloza Neto, 4/11/2014).

O tema da dação em pagamento parece ainda mais simples.

O racional da política-criminal tributária que confere extinção da punibilidade (penal) ao pagamento (tributário) é do prêmio ao acusado que restitui o status quo ante pela via da reparação à vítima (no caso, o erário público).

Em que pese a norma ser muito mais generosa do que a reparação do furtador (que só obterá redução da pena de 1/3 a 2/3, conforme artigo 16 do Código Penal), o Código Penal já conhece, há tempos, a extinção da punibilidade no delito de peculato culposo, quando há reparação do dano antes de sentença irrecorrível (artigo 312).

A leitura da Portaria PGFN 32/2018 — e não poderia ser diferente, considerando o instituto da dação em pagamento — deixa claríssimo que a reparação do dano (para usar o jargão penal) há de ser integral:

“Art. 2º A dação em pagamento de bens imóveis deve abranger a totalidade do débito que se pretende liquidar, com atualização, juros, multa e encargos legais, sem desconto de qualquer natureza, assegurando-se ao devedor a possibilidade de complementação em dinheiro de eventual diferença entre o valor da totalidade da dívida e o valor do bem ofertado”.

Além disso, havendo ainda controvérsia judicial em relação ao crédito, é condição que o contribuinte desista das ações, caso queira valer-se da dação (conforme artigo 4º).

Por todos os ângulos, a dação em pagamento tem a mesma funcionalidade do pagamento para fins de política-criminal tributária, de sorte que a aplicação da analogia favor rei é de rigor, ou seja, obtida a dação em pagamento, a extinção da punibilidade tem de se operar.

Resta, ainda, a questão do marco temporal: até quando a dação aproveita o cidadão para fins penais? O recebimento da denúncia ainda é decisivo?

A Súmula Vinculante 24 — que condiciona a atuação do Estado-penal ao esgotamento da via tributária, nos crimes materiais — afastou o velho dilema do contribuinte “recorrer no tributário e arriscar ser denunciado, no criminal” versus “pagar o tributo para não ter risco criminal, mesmo não concordando com o lançamento”.

Desde então, portanto, o marco do recebimento da denúncia faria sentido.

A Lei do Salário Mínimo, de 2012, engravidada de normais que pretendiam regular a assunto, criou um imbróglio, alterando leis que já não vigiam.

Já sob a vigência da referia lei, o STF reafirmava entendimento de que o pagamento a qualquer tempo levaria à extinção da punibilidade (APN 450/MG, rel. Teori Zavascki); também o STJ ainda considera a Lei 10.684/2003 como a lei de vigência e adota a interpretação de que “não há como se interpretar o referido dispositivo legal de outro modo, senão considerando que o pagamento do tributo, a qualquer tempo, até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é causa de extinção da punibilidade do acusado” (HC 362.478/SP, rel. Jorge Mussi, DJe 20/9/2017).

Claro está, portanto, que a extinção da punibilidade pode e deve ser reconhecida a qualquer tempo.

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