Opinião

Combate à corrupção não é atribuição do Poder Judiciário

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15 de fevereiro de 2018, 5h48

Existe clara deturpação teórica da função jurisdicional quando alguém ou alguma instituição apregoa ser tarefa do Poder Judiciário o combate ao crime, seja ele qual for, ou melhor, qualquer que seja o tipo penal que se queira escolher.

Mas antes de continuar a discorrer sobre o assunto, é bom frisar que se engana quem pensa que essa distorção fica tão somente no plano teórico. Infelizmente, não!

As atribuições de cada uma das instituições jurídicas que exercem funções essenciais à Justiça (especialmente a Polícia Civil ou Federal e o Ministério Público), e os próprios órgãos jurisdicionais, estão bem delineadas na Constituição Federal e na lei.

O Poder Judiciário em hipótese alguma combate o crime, antes, apenas julga se a conduta de uma determinada pessoa subsume-se ou não no correspondente tipo penal.

Sem irrestrita imparcialidade não há sequer um mínimo de legitimidade para julgar. Sem ampla isenção para analisar a conduta e as provas e a inafastável equidistância das partes, o juiz se transforma em carrasco e estará deturpando a função jurisdicional.

Não que exista um descompromisso com o resultado final do processo. Não é verdade! Procura-se o restabelecimento da paz social, ameaçada ou efetivamente violada. Condenando ou absolvendo, a bandeira do Poder Judiciário é o restabelecimento do império da lei para a convivência harmônica em sociedade. Por isso mesmo, o reconhecimento do fato criminoso e de sua autoria é tão importante quanto o seu inverso, pois em ambos os casos o Judiciário atuará prestigiando a lei, quer punindo a conduta delituosa, quer coarctando o arbítrio do Estado que denunciou um indivíduo inocente.

No momento em que ergue o combate ao crime como bandeira institucional, o Judiciário estará desvirtuando de sua função precípua e declarando sua ruptura com a Constituição Federal. E isso custará caro para a sociedade, entenda ela ou não.

Aliás, o Judiciário pode combater, sim, outras situações (como, por exemplo, a costumeira e contumaz atividade procrastinatória na prestação jurisdicional, a falta de transparência nos subsídios de seus membros e de suas decisões administrativas, o nefasto ativismo judicial quando o âmago da controvérsia contrasta cláusulas pétreas, a ineficácia de suas decisões, a ausência de eleições diretas nos diversos tribunais federais e estaduais etc.). Mas, nunca, jamais, poderá combater o crime, pois, como poder do Estado, é o último bastião da liberdade humana e o alicerce institucional que dá sentido lógico ao inabalável princípio constitucional da presunção de inocência.

O discurso do medo, daqueles que de dentro do Poder Judiciário anunciam punição exemplar, severa e implacável, é direcionado ao público leigo, aos mesmos que não têm compromisso algum com o Estado de Direito. Fazem parecer que tudo se resume a punir, quando na verdade existem tantas absolvições quantas são as condenações. Mas as primeiras não dão o impacto social esperado, a não ser se for um comentário ou matéria jornalística pejorativos, com alto grau de sensacionalismo, tendente a desinformar o leitor, ouvinte ou telespectador. A mesma coisa se passa quando cautelarmente é determinada a prisão. Muita notícia, flashes e uma desesperada cobertura in loco. Ali, no exato instante da captura, o indivíduo já está condenado, antes mesmo de ser julgado! Mas a concessão de liberdade é vista, por essas mesmas pessoas (induzidoras de “opinião pública”), como ultraje, quando na verdade tanto uma quanto outra estão amparadas em lei. Só que a prisão vende notícia e inúmeras visualizações. E a liberdade, que é a maior conquista da humanidade em todos os tempos, não! Esta última só é destaque quando o que se deseja é construir a falsa percepção de que quem concede liberdade é inimigo do Estado.

Essa postura é tão nociva e perturbadora que é capaz de confundir não só o cidadão comum, mas, também, alguns operadores do Direito, fazendo-os perderem a acuidade mental na busca desenfreada por um justiçamento irracional ou até mesmo moral. Na mesma intensidade é capaz de defraudar suas expectativas quanto ao resultado dos julgamentos, sejam eles provisórios ou definitivos.

Tempos estranhos, como diz o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal.

Tudo isso parece óbvio, pois é o que se ensina (ou o que deveria ser ensinado) no Direito. Mas vale a pena ressaltar que não é o que acontece!

Se a polícia investiga, o Ministério Público só deveria denunciar se vier a se convencer da existência da autoria e materialidade do crime. Mas o Judiciário, não! Esse poder não toma parte em nenhuma dessas atribuições, nem mesmo quando é acionado a fim de que autorize a produção de determinada prova (por exemplo, interceptações telefônicas, busca e apreensão etc.). Aqui, o juiz é uma figura estranha ao inquérito ou processo, protagonista ímpar de uma função essencialmente garantista que tem por objetivo impedir atividades que possam ser consideradas fúnebres aos direitos fundamentais, potencialmente nulas e imprestáveis ao fim para o qual foram produzidas.

Mas, depois disso, o mesmo magistrado deve se desapegar dos provas que são carreadas aos autos (mesmo aquelas que tiveram origem em suas decisões cautelares anteriores), e, sob a luz do ordenamento jurídico, sopesar a legitimidade de sua forma e a veracidade de seu conteúdo. Agora não apenas como simples fiador dos direitos fundamentais, e sim também, como expectador passivo, árbitro isento, sereno e imparcial para emitir uma decisão que respeite não as suas convicções pessoais e morais, mas tão somente as prescrições elencadas na Constituição Federal e nas leis.

Não é papel do Judiciário esperar da sociedade qualquer tipo de respaldo às investigações, sejam elas quais forem, pois esse poder não é e nunca foi mandatário da polícia ou do Ministério Público. Um único deslize compromete o princípio da imparcialidade e a deslegitimação da precípua tarefa de julgar estará inaugurada.

Da mesma forma que não é preciso suplicar respaldo ao processo, pois ele já é um instrumento peremptório e imprescindível do Estado para resolução dos conflitos (mesmo os criminais), e sua sobrevida e desenvolvimento independem de quaisquer tipos de assistência, legitimação ou aplausos.

Nem mesmo apregoar punição daqueles que em tese praticam determinados crimes (e que, por esse motivo, foram investigados e eventualmente denunciados), pois o que se espera de um Judiciário sério e isento é tão somente a derradeira decisão capaz de conceber os fatos (sentido amplo), projetando-os aos comandos inabdicáveis da Constituição Federal e das leis, quer punindo ou absolvendo (em nenhuma hipótese de forma exemplar, muito menos espetacular).

O exemplo e o espetáculo, aliás, não devem transparecer numa decisão judicial. O que deve transluzir na prestação jurisdicional é a aplicação da lei: decisões judiciais didáticas, claras e educativas, sem vocação para milagres.

O Poder Judiciário tem o seu papel, pois desempenha a mais importante atribuição de todos os poderes do Estado. Todos precisamos saber separar a função jurisdicional das tarefas persecutórias de investigação e denúncia, sob pena de mergulharmos numa convulsão social irremediável.

Afinal, quem se sentiria seguro ao saber que o órgão competente para julgar os seus atos é o mesmo que não tem a isenção necessária para, em caso de insubsistência da denúncia, ser capaz de emitir um decreto absolutório, justamente por estar, esse órgão, afinado com os executores da persecução penal, comprometido não com a pacificação social, mas com a flâmula do combate ao crime?

Já é hora de pararmos com fórmulas mágicas e atitudes destoantes do Direito que têm a incrível habilidade de aferrolhar os mal-intencionados e os mais humildes, mas, também, com o assombroso talento de devastar a esperança de milhões de pessoas que aguardam apenas por um único milagre: a aplicação pura e simples da lei e a irrestrita obediência a Constituição Federal. Nada mais!

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