Direito Comparado

China aprova "Parte Geral" de seu futuro Código Civil

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

14 de fevereiro de 2018, 17h40

Spacca
Em 15 de março de 2017, o Congresso Nacional do Povo, o órgão legislativo máximo da República Popular da China, tomou uma decisão histórica: aprovar o equivalente a uma Parte Geral do futuro Código Civil chinês. Essa Parte Geral, que tem o nome de Disposições ou Regras Gerais do Código Civil, é um documento jurídico de importância sem precedentes na China porque servirá de alicerce para o complexo processo de elaboração de um novo Código Civil, cujo término é previsto para 2020.

Considerando-se que oficialmente a República Popular da China é um país governado pelo Partido Comunista, no poder desde 1949, submetendo-se até hoje aos preceitos de seu fundador, o líder Mao Tsé-Tung (ou Máo Zédōng), a notícia reveste-se de ainda mais importância. É óbvio que a China moderna, apesar de autodeclarada uma “economia socialista de mercado”, se apresenta como a segundo maior economia do mundo, organizada sob a forma de uma complexa combinação de elementos capitalistas (dos mais ortodoxos) e comunistas (no plano político). Os chineses, desde os anos 1980, transformaram os fundamentos econômicos e deram um salto de um século em pouco menos de 40 anos. Eles fizeram uma bem-sucedida transição da economia planificada para um capitalismo de Estado, que tem conseguido tirar o sono das grandes potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos e a Alemanha.

Em paralelo a esse crescimento econômico exponencial, a República Popular da China tem problemas sociais, políticos e ambientais bastante conhecidos. Ativistas de direitos humanos sob custódia, danos ambientais profundos (resultantes da exploração industrial e minerária sem limites dos anos 1950-1990), desigualdades sociais acentuadas (efeito direto do processo de abertura econômica) e outras sequelas de uma passagem brusca para o “admirável mundo novo” da “economia socialista de mercado” integram esse cenário que embaça o brilho de tantos êxitos. É verdade, contudo, que a ampla maioria do povo chinês apoia toda essa transformação, cujos efeitos históricos são visíveis e não precisam de maior enaltecimento. O pragmatismo chinês, que é milenar, terminou falando mais alto. Liberdades foram sacrificadas em nome de uma estabilidade improvável em um Estado com 1,379 bilhão de habitantes, segundo dados de 2016.

Em 15 de março de 2017, as Disposições Gerais de Direito Civil foram aprovadas na 5ª Sessão do 12º Congresso Nacional do Povo e promulgadas no mesmo dia. Elas entraram em vigor em 1 de outubro de 2017. Suas normas são aplicáveis aos demais conteúdos normativos que integrarão o futuro Código Civil chinês, que se comporão dos livros dedicados a Contratos, Propriedade, Responsabilidade Civil, Família e Sucessões.

De uma maneira resumida, apresentam-se os principais elementos do livro das Disposições Gerais:

a) Adoção de princípios gerais sem sanção específica. As Disposições Gerais são inauguradas com a enumeração de princípios fundamentais do Código Civil como a igualdade, o respeito à vontade, a equidade, a boa-fé e a legalidade. Os atos jurídicos devem ser praticados em observância a preocupações ambientais e à preservação dos recursos naturais, cujo detalhamento deverá ocorrer em normas especiais. Os princípios têm um caráter enunciativo e não possuem sanções específicas.

b) Admissão do direito consuetudinário. Fontes jurídicas não estatais são admitidas, ao exemplo do costume, que pode ser alegado judicialmente na ausência de norma expressa para o caso e desde que não ofenda à ordem pública. Considerando-se a matriz positivista do Direito chinês, a inclusão do costume no rol de fontes normativas não é problemática em termos de coerência, dada sua aceitação em sistemas positivistas, quando houver seu reconhecimento pela lei.

c) Nascituro e Capacidade civil. O nascituro é protegido nas aquisições patrimoniais por herança ou doações, o que não se reconhece aos que vierem a nascer mortos. Os menores de 8 anos serão considerados incapazes.

d) Personalidade jurídica dos entes coletivos. As pessoas jurídicas ganharam um tratamento jurídico muito peculiar a sistemas ocidentais: a) entes sem finalidade não lucrativa, com tipos aproximados a nossas fundações e associações; b) entes com finalidades lucrativas, dentre as quais existem tipos muito próximos da sociedade limitada e da sociedade por ações (no modelo brasileiro); c) entes de natureza especial, compreensivas de pessoas jurídicas de direito público e autoridades comunais

e) Proteção de dados pessoais. Há regras específicas sobre proteção de dados pessoais, que mesclam elementos já regulados no Brasil sob a forma procedimental (e indiretamente material, como na Lei do Habeas Data) e outros ainda por regular, como o projeto de Lei de Proteção de Dados. A obtenção de dados de outrem deve seguir procedimentos legais e há de respeitar a esfera jurídica alheia. Proíbe-se a cessão ilegal, onerosa ou gratuita, de dados pessoais a terceiros. A preservação de dados virtuais é objeto de remissão a leis específicas.

f) Declaração de vontade. Dá-se inédito reconhecimento ao conceito de declaração da vontade, com regras para sua validade e sua interpretação, especialmente sob o signo da oferta e da aceitação.

g) Regras sobre prescrição e decadência. As regras sobre prescrição, observadas disposições contidas em leis especiais (particularmente, o Direito do Trabalho), são inderrogáveis pela vontade das partes e não pode haver renúncia antecipada à prescrição. O prazo ordinário de prescrição é de 3 anos. A decadência, diferentemente da prescrição, é insusceptível de interrupção ou suspensão de seus prazos.

O estudo analítico dessa norma “Parte Geral” do Direito Privado chinês demandará, quando possível, uma retomada nesta coluna. De imediato, não se encontram grandes inovações em relação ao modelo ocidental de codificação civil. A maior parte dos dispositivos têm conteúdo ordinário e seguem de perto o padrão de influência alemã. O que há de realmente extraordinário no ordinário das Disposições Gerais chinesas é tudo isso ocorrer em um país comunista. Há poucas décadas, seria uma quimera falar de um Código Civil na China com preceitos tão comuns ao Direito Civil ocidental.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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