Opinião

Candidatos "irregistráveis": uma análise sistêmica à luz do caso Lula

Autor

  • Rodrigo Cyrineu

    é advogado Mestre em Direito Constitucional e membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

13 de fevereiro de 2018, 5h33

A assunção do ministro Luiz Fux ao cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral, como já se esperava, proporcionou uma guinada da corte em determinados assuntos, pois, como se sabe, Fux possui entendimento diametralmente oposto daquele professado pelo ex-presidente, ministro Gilmar Mendes, em especial no que atine à Lei da Ficha Limpa.

Justamente sobre os ditos “fichas-sujas”, causou alvoroço na comunidade jurídica a entrevista1 concedida pelo atual presidente da corte superior, isto ao asseverar a existência de candidatos “irregistráveis”, máxime em razão da situação atual do ex-presidente Lula. Dentre outras, cabe destacar a posição de Fernando Neisser no sentido de que “Chefe do TSE afronta a lei ao defender que há candidatos ‘irregistráveis’”2.

Todavia, quem acompanha a lida diária do Tribunal Superior Eleitoral e as publicações doutrinárias do acadêmico Luiz Fux consegue compreender o que ele diz ao criar a expressão “candidatos irregistráveis”, não havendo, aí, considerando as suas premissas teóricas, nada de injustificável.

Para se candidatar, um cidadão necessita preencher todos os requisitos constitucionais e legais para o exercício do cargo almejado e, ainda, não estar incurso em nenhuma causa de inelegibilidade. No nosso sistema processual eleitoral, cabe ao magistrado eleitoral, de ofício3 ou mediante provocação, aferir a incursão do candidato em causa de inelegibilidade.

E, como se sabe, a Lei Complementar 64/90, sobretudo após os acréscimos introduzidos pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), possui várias hipóteses de inelegibilidade, cada qual demandando uma maior ou menor atividade cognitiva por parte do juiz eleitoral. A esse propósito, confira-se: “A cognição realizada pelo juiz eleitoral depende do elemento do tipo eleitoral analisado, ampliando-a ou reduzindo-a, de ordem a franquear a prerrogativa de formular juízos de valor acerca da ocorrência in concrecto de cada um deles”4.

Isto é, em caso de condenação por improbidade administrativa, verbi gratia, cabe ao magistrado averiguar, na decisão da Justiça comum estadual ou federal, o seguinte — verbis: “A causa restritiva ao ius honorum, insculpida no art. 1º, inciso I, alínea L, da LC nº 64/90, se aperfeiçoa sempre que se verificar, in concreto, a condenação à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena”5.

No tocante à rejeição de contas, requer-se: “A inelegibilidade do art. 1º, inciso I, alínea g, da LC nº 64/1990 não é imposta pela decisão que desaprova as contas do gestor de recursos públicos, mas poderá ser efeito secundário desse ato administrativo, verificável no momento em que o cidadão se apresentar candidato em determinada eleição. De fato, como nem todas as desaprovações de contas ensejam a causa de inelegibilidade referida naquele dispositivo, a incidência da norma pressupõe o preenchimento de requisitos cumulativos, quais sejam: i) decisão do órgão competente; ii) decisão irrecorrível no âmbito administrativo; iii) desaprovação devido à irregularidade insanável; iv) desaprovação de contas que revele ato de improbidade administrativa, praticado na modalidade dolosa; v) não exaurimento do prazo de oito anos contados da decisão; e vi) decisão não suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário”6.

Já a condenação criminal, sobretudo por crimes contra à administração pública7, bastam por si. Isto é, a inelegibilidade é in re ipsa; decorre pura e simplesmente do acórdão condenatório. A propósito, confira-se: “É inelegível, por oito anos, quem tiver contra si condenação penal transitada em julgado por prática de crime contra a administração pública, a teor do art. 1º, I, e, 1, da LC 64/90”8.

Nesse sentido ainda, confira-se: “A causa restritiva ao ius honorum, insculpida no art. 1º, I, e, da LC nº 64/90, se aperfeiçoa sempre que se verificar, in concreto, a prática de crime que vulnere algum dos bens jurídicos protegido por esse dispositivo, independentemente do instrumento normativo que o preveja, sem que isso encerre interpretação extensiva do dispositivo legal”9.

Como se vê, diferentemente das outras duas hipóteses de inelegibilidade mais recorrentes, a inelegibilidade decorrente de condenação criminal se aperfeiçoa automaticamente a partir da prolação da decisão condenatória colegiada, inexistindo a necessidade do magistrado eleitoral proceder à cognição, ainda que mínima, do título judicial. Daí o porquê da sustentada “irregistrabilidade”.

Ou seja, se o candidato não conseguir, até o momento do registro de candidatura, uma decisão suspensiva ou reformadora da condenação, à luz da sistemática do artigo 26-C da Lei das Inelegibilidades10, arcará com a rejeição in limine de seu registro, o que pode ser feito ex vi do artigo 332 do Código de Processo Civil (Código Fux)11, eis que existe jurisprudência consolidada a propósito da inelegibilidade da alínea “e” (condenação criminal), já não bastasse a clareza de sua redação.

Outra possibilidade é a concessão de tutela da evidência12 no registro de candidatura, o que dispensaria, inclusive, o contraditório13, eis que existem inúmeros precedentes do TSE no sentido de que a inelegibilidade da alínea “e” (condenação criminal) é in re ipsa, isto é, decorre da própria condenação.

A corroborar esse entendimento, veja-se o que dispõe o enunciado sumular 41/TSE — verbis: “Não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou desacerto das decisões proferidas por outros órgãos do Judiciário ou dos tribunais de contas que configurem causa de inelegibilidade”14.

Uma consideração final: o multicitado artigo 16-A da Lei 9.504/199715. Teria o referido dispositivo o condão de garantir a um cidadão criminalmente condenado em segunda instância a possibilidade de fazer campanha se, ao tempo do registro, não tiver obtido decisão liminar à luz do artigo 26-C da Lei das Inelegibilidades? Pensamos que, excepcionalmente nessa hipótese, não.

A prosperar tal cenário, onde a inelegibilidade é indiscutível, a campanha se limitaria à condição jurídica do candidato impugnado. Mais que isso, significaria, em muitos casos, a utilização de dinheiro do contribuinte para a realização de uma eleição majoritária que necessariamente será renovada, haja vista a impossibilidade de assunção do segundo colocado, ex vi do artigo 224, parágrafo 3º, do Código Eleitoral16. Imagine-se tal cenário em eleições presidenciais, com a convocação do corpo eleitoral para um novo pleito em razão da inelegibilidade chapada do candidato eleito. Seria no mínimo escalafobético.

A sistemática da Lei das Inelegibilidades, no que decorre de imperativo constitucional categórico (artigo 14, parágrafo 9º17) e cuja redação foi avalizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADCs 29 e 30 e ADI 4.57818, deve prevalecer sobre a redação do artigo 16-A da Lei 9.504/1997, o qual, inclusive, é anterior à vigência da Lei Complementar 135/2010, de modo a ser preservada a “normalidade” e “legitimidade” do pleito, reclamando, portanto, a sua interpretação conforme nesse caso específico, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade.

É dizer: o artigo 16-A da Lei Geral das Eleições, sobretudo por ser anterior à Lei Complementar 135/2010, não foi pensado para a hipótese da alínea “e” (condenação criminal), a evidenciar a necessidade de seu afastamento nesse tipo de situação.

De se ver, portanto, ser possível falar-se em candidatos “irregistráveis”, aí incluído o ex-presidente Lula.


1 https://oglobo.globo.com/brasil/politico-ficha-suja-irregistravel-afirma-fux-22372915.
2 https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2018/02/08/chefe-do-tse-afronta-a-lei-ao-defender-que-ha-candidatos-irregistraveis/?cmpid=copiaecola.
3 “A existência de causa de inelegibilidade ou ausência de condição de elegibilidade podem e devem ser examinadas de ofício pelo juiz eleitoral, razão pela qual não há falar em decisão extra petita ao argumento de que a impugnação ao registro não teria tratado da aludida quaestio, máxime porque restaram garantidos, in casu, os direitos constitucionais à ampla defesa e ao contraditório. Súmula nº 45 desta Corte Superior.” (Recurso Especial Eleitoral 9.430, acórdão, relator(a) min. Luiz Fux, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Volume, Tomo 69, Data 6/4/2017, Página 92/93).
4 Recurso Especial Eleitoral 18.807, acórdão, relator(a) min. Luiz Fux, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 188, Data 28/9/2017, Página 81/84.
5 Recurso Especial Eleitoral 13.465, acórdão, relator(a) min. Luiz Fux, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Data 13/9/2017, Página 35-36.
6 Recurso Especial Eleitoral 9.229, acórdão, relator(a) min. Luiz Fux, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Data 30/10/2017, Página 32.
7 “A condenação do Candidato, por órgão colegiado do Poder Judiciário, por crime contra a Administração Pública é apta a atrair a incidência da causa de inelegibilidade objeto do art. 1º, inciso I, alínea e, da Lei Complementar nº 135/2010.” (Recurso Especial Eleitoral 46.613, acórdão, relator(a) min. Laurita Hilário Vaz, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 36, Data 22/2/2013, Página 139/140).
8 Recurso Especial Eleitoral 18.840, acórdão, relator(a) min. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 3/11/2016.
9 Recurso Especial Eleitoral 17.242, acórdão, relator(a) min. Luiz Fux, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 19/12/2016.
10 “Art. 26-C. O órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1º poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso. § 1º Conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus. § 2º Mantida a condenação de que derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente. § 3º A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo”.
11 “Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I – enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.”
12 “Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; III – se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.”
 13 “Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701”.
14 Ac.-TSE, de 10/5/2016, no PA 32.345.
15 “Art. 16-A. O candidato cujo registro esteja sub judice poderá efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa condição, ficando a validade dos votos a ele atribuídos condicionada ao deferimento de seu registro por instância superior.”
16 “Art. 224. Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias. § 1º Se o Tribunal Regional na área de sua competência, deixar de cumprir o disposto neste artigo, o Procurador Regional levará o fato ao conhecimento do Procurador Geral, que providenciará junto ao Tribunal Superior para que seja marcada imediatamente nova eleição. § 2º Ocorrendo qualquer dos casos previstos neste capítulo o Ministério Público promoverá, imediatamente a punição dos culpados. § 3º A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados. § 4º A eleição a que se refere o § 3º correrá a expensas da Justiça Eleitoral e será: I – indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato; II – direta, nos demais casos.”
“Art. 14. (…) § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.”
18 Já nos manifestamos contrariamente à constitucionalidade e à convencionalidade da Lei da Ficha Limpa em vários artigos. Todavia, em existindo decisão do STF com eficácia vinculante, a análise realizada no presente artigo decorre da atual sistemática jurídica vigente, dada a sua validade e, portanto, imperatividade.

Autores

  • é advogado, membro-fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e especialista em Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Eleitoral pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso.

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