Justiça Tributária

Não existe justiça se a apuração dos crimes tributários é distorcida

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

12 de fevereiro de 2018, 7h05

Spacca
A única arma possível do sujeito passivo, nas fronteiras pequenas que lhe são outorgadas, são aquelas garantias consubstanciadas nos dois princípios fundamentais da estrita legalidade e da tipicidade fechada. Ora, tais garantias, das poucas que ainda restam ao sujeito passivo, não são compatíveis com mecanismos convenientes das ficções legais, das presunções e dos indícios transformados em poderosas técnicas de arrecadação para sanar os irreversíveis "deficits" orçamentários, provocados pelo fracasso da presença estatal na economia."
(Ives Gandra Martins, Presunções em Direito Tributário. Ed. Resenha Tributária, SP, 1984, pág. 65)

Há um ano, publiquei a coluna Crimes contra a ordem tributária: abusos e fantasias do FiscoNaquela oportunidade, afirmei que:

“Quase sempre as autuações trazem uma mensagem ameaçadora, no sentido de transformá-las em processos criminais. E quando surgem tais processos, não é raro nos depararmos com a aplicação distorcida dos princípios legais, fazendo com que o contribuinte, sentindo-se pressionado ou mesmo amedrontado, procure pagar o valor exigido, mesmo quando exista a possibilidade de seu questionamento legal, pois as vias legais para sua defesa são cada vez mais difíceis”.

Pois bem. Nestas mais de quatro décadas lutando na trincheira pela Justiça Tributária, vemos cada vez com mais frequência autuações feitas de afogadilho, onde servidores do Fisco em todos os níveis (federal, estadual e municipal) fazem lançamentos sem adequada base fática. O fato de possuírem boa formação acadêmica e adequado treinamento é um agravante imperdoável, cuja única explicação podem ser as fortes pressões que por certo sofrem de seus superiores hierárquicos, na ensandecida tentativa de explicar, com fantasiosos números de sonegação, as razões pelas quais as metas governamentais de boa governança financeira nunca são atingidas.

Uma das formas mais comuns de inflar autuações é, simplesmente, inventar fatos geradores, ignorar normas legais em vigor que protejam o contribuinte, adotar presunções como se fatos pudessem ser, enfim, estabelecer, com os instrumentos mágicos de que disponham, ambientes repletos de infrações, onde se presume que qualquer empresário abre uma empresa com o único objetivo de enriquecer-se à custa de sonegação, fraude, corrupção ou qualquer forma criminosa que possa desenvolver.

Ou seja: para uma boa parte do Fisco, todos os contribuintes são sonegadores e, quase sempre, essa parte não admite presunção de inocência. Ora, diante de um auto de infração, por mais idiota que seja a acusação, o contribuinte tem que apresentar uma defesa. Para isso, já tem uma despesa, seja com sua assessoria ou advogados externos.

Nossos leitores já viram nesta coluna muitos casos apontados com tais características. Num deles uma empresa foi multada porque, num prazo de 10 dias, não forneceu todos os comprovantes de seu “passivo exigível”. No lançamento, foram considerados não comprovados e como “suprimentos de caixa” tudo o que devia em dezembro e pagara em janeiro, inclusive tributos a recolher, empréstimos bancários etc. Na defesa, a exigência foi afastada somente na segunda instancia. O prejuízo com os honorários do advogado foi suportado pelo contribuinte.

Em outro caso, ocorreu auto de infração exigindo milhões de dólares de impostos e multas, com acusação de subfaturamento em importação de veículos. Fiscais federais, às nossas custas, passearam pela Europa para “pesquisar” preço de automóveis em lojas…

Nenhum dos gênios poderia imaginar que importadores de veículos compram diretamente das fábricas e em grandes quantidades. Assim, não pagam imposto interno no país de origem. Além disso, o preço de carros, quando se compra em grandes quantidades, é menor do que o fixado em unidades compradas na loja de varejo.

Não se sabe até hoje se foi caso de imbecilidade coletiva ou ação deliberada para matar uma empresa. O importador, neste caso, conseguiu afastar o lançamento já na primeira instância. O julgador administrativo temia incorrer no ridículo, o que a defesa já apontava no início da petição ao denominar o lançamento de “grotesca forma de lançamento indevido, equivocado e afastado de qualquer aparência de realidade”.

Qualquer lançamento tributário é, antes de tudo, um ato administrativo. Não pode se afastar dos princípios do artigo 37 da Constituição: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Sendo o da legalidade o primeiro a ser observado, será nulo caso esteja em desacordo com a lei.

Foi esse princípio que, em 1983, amparou decisão do juiz de uma das varas de São Bernardo do Campo (SP), que concedeu liminar suspendendo auto de infração lavrado pela fiscalização do ISS. O Fisco municipal fez auto de infração absurdo, cobrando o Imposto sobre Serviços de uma empresa que explorava brinquedos na Cidade da Criança, um parque de diversões local.

Havia uma lei municipal que concedia isenção tributária ao empresário. No caso, era isenção a título oneroso, pois durante certo período crianças que fossem alunos de escolas municipais tinham direito de usar gratuitamente os equipamentos de propriedade do empresário. Ao não receber pelos ingressos, o empresário tinha custos (manutenção, limpeza, funcionários, eletricidade etc.), custos, aliás, superiores ao valor da isenção concedida.

Nesses casos em que a ilegalidade está evidente, clara, insofismável, pode o contribuinte optar pela discussão diretamente no Judiciário. Da mesma forma ocorre nos casos em que o Fisco, ao lavrar auto de infração, apreende bens ou mercadorias. Não se permite apreensão como forma de cobrar imposto.

Já se tornou comum lavratura de vários autos de infração contra o mesmo contribuinte, como resultado de uma mesma ação fiscal. Ou seja: inicia-se um trabalho de fiscalização, com um ou mais agentes do Fisco, e no mesmo ato são desenvolvidas várias atividades diferentes, assim ensejando diversos autos de infração.

O artigo 37 da Constituição, como anteriormente exposto, ordena que os princípios são vários: legalidade e ainda impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Além da legalidade, também faltam os princípios da moralidade e da eficiência quando o Fisco lança autos diferenciados para o mesmo contribuinte.

Um grande problema para o contribuinte ocorre quando o auto de infração traz quantia extremamente elevada e, com ou sem defesa administrativa, a exigência termina por ser inscrita como Dívida Ativa. Em muitos casos não existem bens a penhorar. Quando isso ocorre, a execução fiscal fica arquivada por alguns anos até lá permanecer ante a impossibilidade da cobrança. Já falamos sobre isso na coluna A duração razoável dos processos e a prescrição intercorrente.

Mas, estando a dívida inscrita, ocorre o processo criminal previsto na Lei 8.137. E hoje a possibilidade de alguém ser preso por isso existe. Um argumento que alguns juízes podem usar para agravar a pena é a continuidade delitiva, ou seja, que os crimes teriam sido cometidos por longo espaço de tempo, a revelar índole criminosa. Outra hipótese é o alto valor sonegado, caso em que alguns magistrados invocam que tais valores seriam úteis ao bem comum, atendendo a estas ou aquelas necessidades do erário etc. Por isso deve o advogado destacar desde logo que o grande volume sonegado não é real, mas decorrência de exageros e métodos equivocados de lançamento.

Uma pequena empresa de uma cidade do interior (região de Campinas) foi autuada por agentes do estado por não ter apresentado documentos fiscais. O valor da autuação foi feito por arbitramento ou presunção. Os fiscais simplesmente somaram os valores das compras (obtidos com um fornecedor) e a partir desses números presumiram o faturamento.

Os dois sócios da empresa foram indiciados e estão sendo criminalmente processados. Um deles exercia a função de vendedor/viajante, e o outro cuidava da administração, ficando na empresa. Este afirmou que havia encaminhado as intimações ao escritório de contabilidade externo e não sabe por que os documentos não foram entregues.

O Ministério Público denunciou ambos os sócios, sem que a autoria do crime ficasse clara, e a sentença assim recebida.

O que se viu até agora (processo em fase memoriais/alegações finais) é que a apuração dos valores deu-se por mera presunção, resultando em “arbitramento” sem adequado suporte fático. No auto de infração afirma-se que o contribuinte “Deixou de emitir, no período de xxxxx a xxxxxx documentos fiscais no valor de R$ 1.xxxxxxxxx (…) antes de iniciadas as saídas das mercadorias do estabelecimento, deixando consequentemente de recolher o ICMS no valor de R$ xxxxxx”.

A defesa invocou precedentes do Tribunal de Impostos e Taxas da Secretaria da Fazenda, bem como do Conselho de Contribuintes do MF (atual Carf) e também judiciais, onde não se admite lançamento com base em presunções:

Incabível, por meio de levantamento fiscal, exigir-se multa por falta de emissão de documento fiscal.” (TIT, 2ª Câmara, Proc. DRT-5 5.330/69, decisão de 9/3/1970).

“O levantamento não é processo exato ou matemático, mas aproximativo, de presumidas sonegações. Assim, uma diferença irrisória, tolerável, pode ser desprezada pelo Fisco…” (TIT, 1ª Câmara, Proc. SF-48.216/68, decisão de 15/4/1969).

"Indício ou presunção não podem por si só caracterizar o crédito tributário." (2º Cons. de Contribuintes do Min. da Fazenda – Acórdão 51.841, in "Revista Fiscal" de 1970 , decisão nº 69).

"Para efeitos legais não se admite como débito fiscal o apurado por simples dedução." Idem, ac.50.527, DOU-11/7/1969, seção IV).

"Processo Fiscal – Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida." (TFR, Agr Mseg.65.941, "Resenha Tributária" nº 8).

"Qualquer lançamento ou multa, com fundamento apenas em dúvida ou suspeição é nulo, pois não se pode presumir a fraude que, necessariamente, deverá ser demonstrada" (TFR, AC 24.955, DOU 9/5/1969).

“Não merece acolhimento o sistema de levantamento fiscal com ânimo em elementos aprioristicamente fixados pela fiscalização.” (TAC-SP-AC 57146-RT 357/394).

Por outro lado, o princípio da presunção de legitimidade dos atos administrativos é relativo. Embora a CDA o traga consigo, bem é de ver que sua desconstituição é de difícil e onerosa obtenção. Os custos de uma ação cujo objetivo seja o cancelamento da dívida ativa estão fora do alcance da pequena empresa. Quase sempre a produção de provas inclui perícias contábeis.

Além de tudo, deve-se levar em conta que a denúncia não pode ser genérica, mas tem que especificar, minuciosamente, que fez cada um dos sócios da empresa em relação aos fatos delituosos de que são acusados. Não basta demonstrar a materialidade, mas é indispensável que fique provada, sem qualquer margem de dúvida, a autoria.

A jurisprudência do STJ é no sentido de que não se pode condenar alguém apenas por ser sócio de empresa, mas é indispensável que as provas sejam robustas quanto à sua participação nos fatos. Veja-se:

“RHC- Penal-Processual Penal-Pessoa jurídica -Sócio – Responsabilidade penal – l – Denúncia – Requisitos. – A responsabilidade penal é pessoal. Imprescindível a responsabilidade subjetiva – Repelida a responsabilidade objetiva – Tais princípios são válidos quando a conduta é praticada por sócios de pessoa jurídica. Não respondem criminalmente, porém, pelo só fato de serem integrantes da entidade. Indispensável o sócio participar do fato delituoso. Caso contrário, ter-se-á odiosa responsabilidade por fato de terceiro. Ser sócio não é crime. A denúncia, por isso, deve imputar conduta de cada sócio, de modo que o comportamento seja identificado, ensejando possibilidade de exercício do direito pleno de defesa.” (STJ, RHC 2.882-3/MS, 3ª Turma, rel. min. Luiz Vicente Cornicchiaro, j. 17/8/1993, DJU 13/9/1993, p. 18580).

Como vemos, os processos criminais decorrentes de autos de infração de natureza tributária, embora tenham certa similitude com os chamados crimes comuns, devem ser tratados por equipes profissionais com experiência tanto nas questões tributárias (onde pode a questão ser encerrada) quanto nas criminais. A complexidade técnica dos procedimentos tributários exige conhecimentos específicos, além de maior especialização.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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