Segunda Leitura

A Lei 13.306 e a averbação da certidão de dívida ativa nos registros

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

11 de fevereiro de 2018, 7h00

Spacca
Vladimir Passos de Freitas [Spacca]No dia 9 de janeiro entrou em vigor a Lei 13.606, que deu nova redação à Lei 10.522/2002, adicionando o artigo 20-B com a seguinte redação:

Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados

§ 3º Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:
I – comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e
II – averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.”

O texto legal suscitou posicionamentos contrários, sob o argumento de que é inconstitucional, uma vez que ofende o direito de propriedade e de que apenas ao Poder Judiciário á permitida a limitação ao seu exercício, inclusive a averbação de qualquer registro que torne um bem indisponível.

Mas, o que levou o legislador a esta alteração legal? O diagnóstico do Conselho Nacional de Justiça sobre as varas de execuções fiscais é elucidativo:

No quadro geral das execuções, o maior problema é a fiscal. O executivo fiscal chega a juízo depois que as tentativas de recuperação do crédito tributário se frustraram na via administrativa, provocando sua inscrição na dívida ativa. Dessa forma, o processo judicial acaba por repetir etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso, pela administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização profissional. Acabam chegando ao Judiciário títulos cujas dívidas já são antigas, e por consequência, mais difíceis de serem recuperadas.[i]

Para ser bem claro: o sistema de cobrança de dívidas fiscais pelo Estado, é um dos mais caros e ineficientes do mundo, ocupa cerca de 38% do volume de processos na Justiça brasileira, obstrui o julgamento de outras ações ao ocupar o tempo de magistrados e servidores (só no Tribunal de Justiça de São Paulo estão pendentes 11.494.305 execuções fiscais), importa em elevado gasto de dinheiro público e os resultados que apresenta são pífios (segundo dados do TCU, “Menos de 3% das multas ambientais cobradas no Brasil são pagas).[ii]

Entre as cobranças que não chegam ao fim encontram-se as multas criminais. O condenado pelo juiz no crime, caso não pague, verá a cobrança ir para uma Vara de Execução Fiscal e lá se perder entre milhares de processos. Em outras palavras, só paga multa penal no Brasil quem quer.

No entanto, esta absurda situação vem sendo mantida anos a fio. É raro que haja alguma manifestação de surpresa ou inconformismo. Importante, por isso mesmo, a referência do ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin na fundamentação de acórdão envolvendo multa administrativa aplicada em grave caso de contaminação do ar causando problemas de saúde para centenas de pessoas:

Surpreende também o fato de que, passados mais de dez anos da autuação, ainda se esteja discutindo em juízo a sua validade. Certamente aí está bem demonstrada a ineficácia e ineficiência do sistema sancionatório administrativo existente no Brasil, notadamente em relação às infrações administrativas e sanitárias, embora se saiba que o problema afeta a atuação do poder de polícia do Estado como um todo.[iii]

Foi a insustentabilidade do sistema que levou o legislador a permitir, através da Lei 10.522 de janeiro passado, a comunicação da inscrição da dívida ativa aos órgãos que possuem banco de dados e cadastro, inclusive averbar a dívida ativa, ou seja, o crédito que possuem, sujeitos a penhora ou arresto, tornando-os indisponíveis.

Contra esta inovação, que pretende abreviar a cobrança e dar viabilidade ao sistema, levantam-se vozes atribuindo-lhe inconstitucionalidade por afrontar o artigo 5º, inciso XXII da Constituição, que assegura o direito de propriedade, ou o artigo 185-A do Código Tributário Nacional.

No Brasil atual o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei deixou de ser exceção para tornar-se regra. Chegar-se a este extremo coloca em risco a eficiência do Estado, pois não será difícil, assim, considerar inconstitucional qualquer dispositivo legal ou ato administrativo, confrontando-o com algum artigo genérico da Carta Magna ou com um princípio, ainda que seja considerado implícito.

Por exemplo, a Constituição assegura no artigo 6º uma série de direitos sociais. A levar-se a interpretação ao extremo, poderia alguém insurgir-se contra o pagamento de um hospital privado, alegando seu direito à saúde. Ora, a interpretação da norma exige, acima de tudo, ponderação, com análise de todos os valores envolvidos e também dos resultados que dela advirá.

A Constituição exige no artigo 37 que a administração pública seja eficiente, ou seja, que tenha capacidade de resolver os problemas sob sua responsabilidade, seja produtiva e faça o melhor com o menor uso de recursos públicos. O administrador, se não obedecer o princípio da eficiência, tal como os demais (legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade), sujeita-se a responder ação por improbidade administrativa.

A ineficiência da cobrança da dívida ativa, como já foi dito, é a negação ao princípio da eficiência. Gasta-se muito dinheiro público com um retorno inexpressivo. Então, é preciso dar-se solução ao problema. Criar mais varas judiciais de nada adiantaria e significaria mais gastos.

Afirma-se contra a Lei 13.606/2018 que ela fere a regra constitucional que assegura o direito de propriedade. Ao meu ver, não. Ela não transfere o domínio do bem, nem sequer o penhora. Simplesmente averba a certidão da dívida ativa nos registros e torna o bem indisponível. A averbação serve para dar ciência a outros credores ou a eventuais compradores do bem, da existência do crédito da Fazenda Pública. A indisponibilidade da a segurança de que a dívida poderá ser cobrada.

Não vejo em que isto possa afetar o direito à propriedade. O detentor do domínio assim continuará, terá direito a todas possibilidade de defesa em Juízo.

Na esfera criminal, muito se discutiu a respeito da possibilidade de alienação de bens apreendidos antes da sentença final transitada em julgado. Eram milhares de veículos e outros bens apreendidos a se deteriorarem em pátios de Delegacias e salas dos Fóruns. Atualmente, a Lei 12.683/2012 no artigo 4º, inciso I, permite a alienação sempre que houver risco de deterioração, depreciação ou dificuldade na manutenção e não se reconheceu, nela, ofensa ao direito de propriedade.

Com relação ao artigo 185-A do CTN, não me parece que tenha sido revogado e muito menos que haja inconstitucionalidade. Tudo pela simples razão de que ao juiz continua aberta a possibilidade de decretar a indisponibilidade dos bens do devedor. O que a Lei 13.606 fez foi simplesmente estender esta possibilidade à administração pública. Dispensando-a de peticionar em uma vara de execuções fiscais que poderá ter 100 mil, 200 mil ou 300 mil processos e a petição chegar ao juiz seis meses depois. Daí, provavelmente o devedor terá alienado seus bens, prejudicando não só a Fazenda Pública como terceiros (por exemplo, credores trabalhistas).

Em suma, a constituição do crédito tributário é antecedida por um procedimento administrativo previsto no artigo 142 e seguintes do CTN. Ao devedor, como é óbvio, deve ser assegurada ampla defesa, obedecendo-se ao princípio do devido processo legal.

Portanto, o devedor não será surpreendido pela indisponibilidade de seus bens. Ademais, poderá insurgir-se contra esta medida judicialmente, caso haja, nela, abuso de poder.

Assim posta a questão, volta-se à necessidade de ponderação das normas e, para tanto, vale lembrar a lição de Luís Roberto Barroso:

O propósito da ponderação é solucionar esses conflitos normativos da maneira menos traumática para o sistema como um todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver, sem a negação de qualquer delas, ainda que em determinado caso concreto elas possam ser aplicadas em intensidades diferentes.[iv]

Em suma, o que a lei nova pretende é dar um mínimo de efetividade ao sistema, nela não havendo, ao meu ver, inconstitucionalidade a ser reconhecida.


i BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório do Justiça em números de 2017, p. 113. Disponível em:: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a659e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf. Acesso em 9/2/2018,

ii FONT, Emílio. Menos de 3% das multas ambientais cobradas no Brasil são pagas. Disponível em: https://emiliofont.jusbrasil.com.br/noticias/258953188/menos-de-3-das-multas-ambientais-cobradas-no-brasil-sao-pagas. Acesso em 8/2/2018.

iv BARROSO, Luis Roberto. A nova interpretação constitucional. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 57.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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