Justiça na berlinda

Ministros do Supremo pretendem reagir a emparedamento

Autor

11 de fevereiro de 2018, 15h14

Ministros do Supremo Tribunal Federal fizeram chegar à Procuradoria-Geral da República, recentemente, uma advertência: o Judiciário não vai mais tolerar manobras do Ministério Público Federal destinadas a constranger juízes. Dois exemplos recentes são o arquivamento do inquérito contra o senador Romero Jucá e a suspensão do indulto de Natal.

No caso de Jucá — uma acusação solta sem definição de culpa, indício de autoria ou materialidade criminosa —, vendeu-se à opinião pública a falsa ideia de que o tribunal acumpliciou-se com um criminoso para poupá-lo. Na vida real, a prescrição deu-se por causa de inúmeros pedidos de diligências do Ministério Público, titular absoluto da ação penal. Não por acaso, o inquérito já estava há um ano na PGR quando prescreveu. No caso do indulto, a falsa notícia foi a de que o decreto libertaria os acusados da “lava jato”.

Essas foram duas das muitas fake news que, neste início de ano, colocaram o STF no pelourinho da imprensa nacional e das desinformadas redes da internet. O ministro Gilmar Mendes, alvo principal das agressões, enxerga por trás do fenômeno “uma onda de irresponsabilidade e falso moralismo que é, acima de tudo, desonesta”. A difusão das mentiras, afirma o ministro, “leva a população a acreditar que o Judiciário protege ricos e poderosos, enquanto os acusadores é que defendem o interesse público — o que compromete a imagem da Justiça”.

Desde que anunciou a disposição de rever seu voto em relação à antecipação da execução da pena em condenações confirmadas pela segunda instância, Gilmar Mendes passou a ser atacado diariamente por jornalistas e por membros do Ministério Público que integram a força-tarefa da “lava jato”.

O fuzilamento retórico só se intensifica. Semana passada, um procurador da República chamado Carlos Fernando de Lima se permitiu esculachar em público o ministro do STF Ricardo Lewandowski. Em resposta a um artigo em que o ministro defendeu uma cláusula pétrea da Constituição — onde se determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença criminal condenatória” —, o procurador afirmou que isso não passa de bobagem de pseudojuristas que defendem a impunidade de poderosos.

Esse tipo de agressão, em geral, emerge da onda de falso moralismo que, ao longo da história e em todo o mundo, varre países em crise de identidade. Mas a elas se somam críticas mais profundas, anteriores à era lavajatista. Em busca de mais referências, este site perguntou a um grupo de juízes e advogados o que mudou para que o STF, até há pouco tão respeitado, passa-se a ser tão atacado. Nem todos os entrevistados se dispuseram a ser identificados. Veja as respostas:

Sérgio Rosenthal, advogado
O país vive um acirramento de opiniões. Vive-se uma pretensa (e falsa) luta do bem contra o mal. Ministros que não jogam para a torcida, que preferem seguir a Constituição ao clamor público, são atacados. As críticas ao ministro Gilmar Mendes têm duas origens. A primeira, pelo fato de ele cumprir a Constituição no que toca às garantias e direitos fundamentais. A segunda é a dificuldade de se comunicar — seja pela indisposição da mídia, seja pela sua falta de paciência e sarcasmo, o que irrita os justiceiros. Alguns veículos de comunicação trabalham para o embate. Investem nisso. Quem não se dobra ao movimento populista é tachado como defensor da corrupção. Mas estou certo de que esse é um movimento pendular. Logo os oportunistas e “paladinos da justiça” serão identificados como os aproveitadores que são. Até porque, essa noção de que o Brasil progride no combate ao crime e à corrupção não é verdadeira. Fosse real, a Polícia Federal já teria contido a criminalidade no Rio de Janeiro, onde, em certos bairros, sequer se pode sair à rua. Esse rufar de tambores nem sempre é qualificado. Hoje, qualquer pessoa, de qualquer profissão, critica decisões judiciais com toda a convicção do mundo. Esse tipo de desrespeito deriva sobretudo da ignorância. O exemplo desse Carlos Fernando é apenas mais um de servidor público que aparece por acidente mas logo voltará à obscuridade que o merece. O avanço é lento, mas é inexorável. O país precisa muito de um pouco mais de civilidade. O STF, assim como a classe dos advogados, padece de grande dificuldade na comunicação. O ruim disso é que as pessoas passam a acreditar em coisas que não existem. Para piorar, o Supremo muda toda hora de entendimento — o que cria instabilidade e insegurança jurídica.

Ministro do STJ
Não há um motivo só, claro, e a resposta não é simples. Há fatores que são conjunturais, contextualizados, subjetivos. Primeiro, há uma falta de liderança no Judiciário. Também vivemos um momento em que a Presidência do país está fragilizada. Normalmente o Executivo é forte, mas não é o caso agora. E com o Legislativo submisso, pressionado, encurralado, houve um agigantamento do Judiciário, sem que o STF estivesse preparado para isso. Há falta de sentimento de colegialidade e não há um líder que una a instituição, com o paradoxo de um crescente ativismo anárquico. A composição também é um problema, ela não obedeceu nenhum critério, não há identidade nenhuma entre os seus integrantes, então são 11 ilhas sem relação uma com a outra. Alguns problemas são de ordem objetiva, especialmente a dualidade corte constitucional/corte recursal. Não existe parâmetro no mundo para uma corte suprema funcionar ora como corte constitucional, ora como tribunal de recurso, ora como juízo de primeiro grau. Com isso, houve progressiva transformação do Supremo em corte penal.

Ministro do STJ
O Legislativo e o Executivo querem sair do foco e estão de cócoras. Nesse cenário, o STF ficou indeciso e se autoflagela por dramas que não são exatamente seus. Uma parcela dos juízes insiste em defender privilégios sem perceber o momento em que estamos. Outra quer ser notícia chamando atenção para si. As decisões atraem a ira da direita e da esquerda. Então, o ataque não é só ao STF, mas ao Judiciário como um todo.

Ministro do STJ
Acho que a transmissão direta dos julgamentos, expondo a vaidade dos ministros, fascinados pela popularidade e pela “opinião pública”, o que foi percebido e bem explorado pela grande mídia, deram aos críticos, notadamente ao povo, a sensação de intimidade que gera as críticas, inclusive as desrespeitosas, daqueles que não conhecem o papel de uma corte suprema.

Cláudio Lamachia, presidente do Conselho Federal da OAB
Que momento estamos vivendo! O Brasil está muito doente. Esse clima de intolerância não pode continuar.

Pierpaolo Bottini, advogado
A crítica ao STF não é o problema. A partir do momento que a suprema corte passa a ser protagonista de decisões políticas, de impacto nacional, estará sujeita a críticas jurídicas e políticas. O problema é quando a crítica tem por estratégia inibir certas decisões, com a propagação de informações equivocadas ou com a desqualificação do magistrado, sem uma análise real do conteúdo de suas decisões ou ideias. Essa crítica desvirtua o debate.

Luís Inácio Adams, advogado e ex-advogado-geral da União
Acredito que o STF tem sido chamado a tomar decisões que seriam do Congresso e do Executivo. Ao fazê-lo, são expostos a um debate político para o qual a instituição não está preparada. Além disso, os próprios membros do Judiciário assumem um protagonismo que expõe ainda mais a classe dos juízes. Nesse debate, práticas questionáveis, como o auxílio-moradia, acabam por serem expostos ao debate público. Por fim, ao assumir um protagonismo ético no combate à corrupção, como é o caso do juiz Moro, acaba por ser objeto das críticas decorrentes de práticas que são contraditórias a esse protagonismo.

Igor Tamasauskas, advogado
O Estado Democrático de Direito passa por uma crise que não é somente no nível nacional. As instituições estão buscando lidar com essa brutal crise de representação. Dentro desse contexto, é natural que ocorram incompreensões, erros e acertos. Todavia, por ser um processo histórico, somente conseguiremos entender com exatidão esse quadro daqui uns muitos anos.

Marco Aurélio Carvalho, advogado
Como o tribunal assumiu um caráter notadamente político, nas ausências do Legislativo e com as brechas que a Justiça tem, o STF acaba entrando em campo para atuar nesses vácuos e legislar mesmo. O problema é que a pretexto disso ele assumiu um papel moralista e acabou virando caixa de ressonância da sociedade. Há um emparedamento do tribunal. Mas não sem motivos: falam fora dos autos, como querem, a hora que querem, do jeito que querem. Voltam atrás com uma facilidade enorme, segundo a conveniência e a circunstância. Tempos tristes.

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo, advogado
A critica ao STF nasce de uma parcela do Judiciário e do Ministério Público, a qual almeja julgar conforme a ideologia punitivista que professa. Assim, revoltam-se quando o STF impõe o padrão da legalidade e reconhece direitos individuais. Pena usarem a imprensa para tal fim e fugirem do debate público com quem tem altura intelectual para lhes mostrar as iniquidades que dizem.

Walfrido Warde, advogado
O jusfilósofo norte-americano Duncan Kennedy explicou como ninguém que a Suprema Corte americana é, por excelência, o órgão da democracia daquele país que resolve problemas políticos por meio do Direito. Mais do que isso, que a corte, em uma sociedade heterogênea, resolve impasses políticos usando a técnica jurídica como pretexto. Cita o exemplo das soluções que proveu historicamente nos casos de segregação racial e da liberação do aborto. É precisamente esse o motivo pelo qual o nosso STF vem sofrendo nos últimos meses e ultimamente uma brutal pressão. É o lugar onde se disfarça política sob as vestes do melhor Direito. O STF irá se desincumbir dessa função se for capaz de convencer que aplica a melhor técnica jurídica.

Rodrigo Dall'Acqua, advogado
O Brasil está passando por uma crise em que a classe política encontra-se vulnerável como nunca antes na história. A sociedade quer vingança, mas o STF tem a função de impor os limites constitucionais desse combate. Os ataques aos ministros são previsíveis, a plateia sempre vaia o juiz que interrompe a luta para fazer cumprir a regra.

Sérgio Renault, advogado
A impressão que se tem é que o Judiciário não está conseguindo cumprir o papel de protagonista das grandes questões nacionais que este momento histórico lhe reservou. Na realidade, não há mesmo sentido que venha ser dele cobrada a solução dos maiores problemas nacionais. Diante da inoperância no Executivo e da passividade do Legislativo, tudo parece sobrar para o Judiciário. Mas esse não é o seu papel nem a sua responsabilidade. Ocorre que não tem ele conseguido dar conta nem mesmo de sua atribuição mais primária: prover justiça célere e eficaz a todos. Não é justo responsabilizar o Judiciário e especialmente o STF pelos males do país. O Brasil precisa encontrar um rumo para que cada um e cada instituição possa cumprir o seu papel e as cobranças sejam feitas a quem de direito.

Eduardo Carnelós, advogado
As críticas são quase sempre às decisões que fazem valer as garantias constitucionais de investigados e acusados, como decorrência de uma cultura punitivista. Custa crer que, no ano em que a Constituição completará 30 anos, ainda haja tanta resistência àquelas garantias, como se fosse possível viver sem elas num Estado de Direito Democrático.

Fabiano Silva, advogado
Acho que o STF passou a ser um “personagem” muito ativo e tomou decisões que contrariam muito a classe política — desde o ministro Teori. Por outro lado, passou a ter entendimentos que acabam indo na mesma mão da sanha punitivista da mídia e do MP. Deixou de lado seu papel de garantidor da Constituição e passou a buscar mais protagonismo. Isso tudo movido por uma imprensa cada vez mais ávida por notícias e condenações. Com isso, deixou de lado sua tradição de garantismo e respeito aos princípios constitucionais até então sempre muito valiosos.

Advogado
As críticas vêm por conta da politização exacerbada e da excessiva exposição. A conjunção desses fatores permitiu a manipulação midiática e a projeção da ideia de que só há justiça quando há condenação. Essa ilusão de ótica produz a fé que leva os cidadãos a perderem o respeito pelos julgadores. Assim como acontece com os advogados, passa-se a confundir o julgador com o crime, e se sentem no direito de ofender um ministro em praça pública, como se a sessão do STF fosse um capítulo de novela ou de um seriado.

José Eduardo Alckmin, advogado
Acho que a tensão política desabou sobre a cabeça do STF. E aí tudo passa a ser motivo de crítica de ampla repercussão. É como, mal comparando, árbitro de futebol. Quando ele apita Paulista de Jundiaí x Taubaté, não há maiores problemas. Mas num clássico Corinthians x Palmeiras as discussões sobre acerto ou erro são intermináveis.

Eduardo Sanz, advogado
Faz algum tempo que o Supremo vem sendo atacado publicamente por autoridades públicas mais preocupadas em propalar um discurso populista e expansionista do Direito Penal. Clamando por precedentes autoritários e que restringem os direitos garantidos na Constituição cidadã de 1988, essas autoridades se utilizam do discurso de combate à corrupção para justificar seus excessos. Nessa senda de desrespeito à suprema corte da nação e de seus atores, tais autoridades têm se utilizado das redes sociais e da imprensa para constranger os ministros que tentam resistir a essa sanha punitivista e populista. De forma indireta, essas autoridades são responsáveis pelos ataques que ministros têm sofrido na vida privada, com pessoas gravando vídeos vilipendiando a reputação e a paz quando estão em espaços públicos. Não é admissível, em um Estado Democrático de Direito, que os ministros da suprema corte tenham que julgar e garantir princípios que, em regra, contrariam o pensamento autoritário, populista e punitivista, sob essa pressão irracional e desleal. Faz bem à democracia que os julgadores possam atuar livres de pressões desleais e que possam julgar com suas convicções, e vinculados ao texto da Constituição, sem que isso represente ataques em restaurantes, aeroportos ou onde quer que seja. As liberdades e o respeito aos direitos fundamentais de todos nós são mais importantes do que o combate à qualquer tipo de criminalidade. Afinal, não se combate a corrupção corrompendo as leis e a Constituição do país, menos ainda com pressões desmedidas sob as liberdades e a reputação dos integrantes da corte.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!