Ideias do Milênio

"Todo pensamento que Proust tem, você também teve, só nunca parou para anotar"

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11 de fevereiro de 2018, 13h39

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Entrevista concedida pelo escritor e professor da Universidade de Nova York André Aciman ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinaturaGloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (3h30 e 7h30), às sextas (12h30) e aos sábados (5h30).

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“Aqui estão as nove produções indicadas a melhor filme: Me chame pelo seu nome…”

Me chame pelo seu nome foi indicado ao Oscar 2018 nas categorias: Melhor filme, Melhor ator, Melhor roteiro adaptado e Melhor canção original.”

Jorge Pontual — Me chame pelo seu nome, que é baseado nesse livro de André Aciman, que está aqui com a gente para nos dar esse Milênio sobre o livro dele, a literatura, o que ele faz. É um livro sobre uma história de amor, a história de um primeiro amor, um homem de mais ou menos 40 anos que lembra como ele teve essa aventura amorosa, a primeira dele. Conte como você criou essa história.
André Aciman —
Foi totalmente incomum, porque eu deveria estar na Itália naquele verão, mas a viagem foi cancelada e restou o desejo de estar na Itália. E eu adoro alguns lugares da Itália, então decidi interromper o livro que estava escrevendo e iniciei outro livro. Não sabia que viraria um livro, eu só queria descrever uma casa bonita, à beira-mar, com uma alameda de pinheiros, e escrevi que um táxi se aproximava. Acabou que havia alguém no táxi, alguém que sai do táxi. E eu disse: 'Vou parar aqui', porque não tinha planejado continuar, mas a história ganhou impulso. Eu levei três meses para escrever o romance, e durante todo esse tempo, eu pretendia parar e voltar ao outro romance que estava escrevendo, que era muito difícil. Mas foi um passo de cada vez, e eu vivia pensando: 'Acaba assim. Vou parar aqui'. Não havia a cena do pêssego nem o encontro amoroso. Nada. Mas, aos poucos, pensei: 'Eles precisam se beijar, precisam fazer tal coisa, precisam dormir juntos'. E a coisa desabrochou.

Jorge Pontual — Reparou no quadro atrás de você?
André Aciman —
É uma paisagem de Monet de Bordighera, que é uma cidadezinha perto de Monte Carlo. Fica na Itália. Eu me apaixonei pela cidade e quis possuí-la. Eu me apaixonei pela cidade, pelos personagens, por tudo no romance, porque foi escrito das minhas entranhas, sem nenhuma inibição, nada. Porque ele não seria escrito.

Jorge Pontual — Eu trouxe um pequeno trecho do livro para ler. Traduzi para o português.
André Aciman —
Por favor.

Jorge Pontual — E aí ele disse: 'Me chame pelo seu nome e eu o chamo pelo meu. O que eu nunca tinha feito na minha vida. E assim que eu disse o meu nome como se fosse o dele, me levou a um reino que eu nunca tinha compartilhado com ninguém, nem antes, nem depois'.
André Aciman — Acho que é uma forma de exibir e experimentar uma intimidade total e não diluída. Quando você transforma outra pessoa em si mesmo, está essencialmente dizendo: 'Nós nos tornamos um'. E a ideia foi… Muita gente me escreve e diz: 'Agora eu chamo meu companheiro pelo meu nome porque funciona'. E tive a ideia porque eu tinha duas amigas, companheiras, ambas mulheres e com o mesmo nome. E eu imaginava que, quando elas faziam amor e uma dizia o nome da outra, devia ser muito intenso, porque elas deviam confundir quem era quem. Gostei dessa ideia e a usei no livro. E fez total sentido.

Jorge Pontual — O que achou da interpretação de Elio de Timothée Chalamet?
André Aciman —
Achei fantástica. Ele é maravilhoso. Eu adorei. O que acontece com um autor é que, depois de ver o filme, fica impossível lembrar o que você tinha em mente quando escreveu o livro. Eu vejo Elio como Timothée e Oliver como Armie Hammer e digo: 'Meu Deus, não consigo imaginar mais ninguém!'. Mas adorei as interpretações. Eles são maravilhosos. Além de serem ótimos atores, são pessoas maravilhosas e são muito inteligentes.

Jorge Pontual — É a história de como um jovem de 17 anos, através de sua primeira experiência íntima, se transforma em homem. Ele cresce, ele… vivencia uma mudança e passa a se conhecer melhor do que antes.
André Aciman —
Uma pergunta: a gente para de crescer em algum momento?

Jorge Pontual — Não. Pelo menos não no meu caso.
André Aciman —
Nem no meu. Ainda sou uma criança. Mas eu acho que ele vivencia algo tão concreto que ficará com ele o resto da vida. E acho que todo amor intenso, principalmente o primeiro, cria uma espécie de modelo para todos os seguintes, e nós geralmente repetimos a mesma situação, ou buscamos mais ou menos a mesma fórmula. É o mais intenso, mas certamente há outros amores na vida dele tão fortes quanto o primeiro. E acho que toda experiência amorosa, se for amor mesmo, muda a nossa vida. Se não muda a nossa vida, então o que é?

Jorge Pontual — Gostou de fazer uma ponta no filme?
André Aciman —
Eu adorei. Fiquei tão nervoso, porque eu nunca tinha atuado na vida. Sou um péssimo ator, eu sei. Eles me chamaram para a cena, e eu: 'O que vou fazer? Nem sei qual é o papel'. 'É este'. E aquele que seria meu parceiro é o produtor do filme. Era uma brincadeira, estávamos nos divertindo, e minha mulher assistiu a tudo. Eu me diverti muito. Foi maravilhoso.

Jorge Pontual — O filme não é como o livro, no qual a história continua. Há uma evolução, o tempo passa. O que você acha que acontece… Apesar de eles não ficarem juntos… Oliver se casa e tem filhos, e não sabemos o que acontece com Elio, mas como acha que esse amor transforma Elio?
André Aciman —
Há uma expressão no livro que eu uso e que inventei… Acho que o mais forte é o fato de que o tempo acontece. Não sei como dizer isso em português, mas o fato de o tempo acontecer é às vezes o mais doloroso. Nós não mudamos necessariamente. Nós crescemos, evoluímos, mas certas coisas se mantêm fundamentalmente iguais. Então o tempo acontece às pessoas. Nós envelhecemos e talvez percamos não o amor, mas a oportunidade de concretizar aquele amor com a outra pessoa. Basicamente nós crescemos e nos afastamos, e o tempo é essa coisa que nos acontece. E o tempo é às vezes algo muito triste, porque nos faz perceber que estamos nos aproximando do fim da linha. Apesar de termos 40 ou 30 anos, como no caso de Elio, há uma sensação de que as coisas estão sendo substituídas. Você não deseja isso, mas, ao mesmo tempo, aceita a mudança. Acho que não dá para filmar isso. É impossível fazê-lo. O que dá para fazer é apresentar fatias de vida conforme eles envelhecem, e esse seria outro filme.

Jorge Pontual — Eu trouxe uma citação de outro romance seu, Enigma Variations. Esse ainda não está traduzido no Brasil. E esse Enigma Variations é um outro romance. É engraçado porque também é a história de alguém que sente atração por homens e mulheres. Por que isso?
André Aciman —
Porque acho que todos nós sentimos. Nós sentimos atração por tudo. Acho que no fundo de nosso coração e em nossa cabeça não há proibições.

Jorge Pontual — Nem rótulos.
André Aciman —
Exato. Porque nós mudamos, nós vacilamos. Acho que somos assim. Aqui temos um personagem que não está confuso, porque a sexualidade não é necessariamente algo que confunda. Ela simplesmente muda. Então, se quiser dar um nome a isso, estará mudando a natureza da sexualidade. Acho que o que acontece é que… Nesse livro, ele se apaixona… Ele tem 12 anos e se apaixona por um homem de 27 anos e não sabe nada sobre sexo. Ele não sabe de nada, então, em certo sentido, é o retrato do amor antes do conhecimento. Depois ele tem uma amante, ele cresce, tem um amante, outra amante, todas as amantes aparecem, ele se casa e tal. Então há muitas mudanças na vida. Eu aceito isso e acho que todos devemos fazê-lo, porque é parte de nossa humanidade.

Jorge Pontual — 'Há uma vida que acontece no tempo comum e outra que brota de repente e desaparece. E há talvez a vida que a gente nunca alcance, mas que poderia ser nossa se soubéssemos como encontrá-la. Não acontece necessariamente neste planeta, mas é tão real quanto a que vivemos. Nossa vida de estrela'. 'Star life'. Um conceito de Nietzsche, não é?
André Aciman —
É.

Jorge Pontual — O que é isso?
André Aciman —
Amor de estrela… Nietzsche fala em amizade de estrela, que para mim é a chave do livro. É a ideia de que às vezes uma amizade morre, mas perdura em outra dimensão, na dimensão estelar. E acho que se você quiser entender a nostalgia — e muita gente sente nostalgia de muitas coisas, ela não é necessariamente algo que você perdeu, mas algo que você queria, projetou no futuro e nunca teve. E a mulher diz a ele: 'Nós podemos nunca ter vivido isso, mas jamais vai morrer'. Se pensar bem, algumas das coisas mais intensas de nossas vidas nunca aconteceram. Nós sentimos nostalgia delas, mas não sabemos por que sentimos porque não houve nada.

Jorge Pontual — Temos uma palavra maravilhosa em português, melhor do que nostalgia: saudade.
André Aciman —
Eu sei. Vocês são os campeões disso.

Jorge Pontual — Voltando a Me chame pelo seu nome, muita gente se emociona demais com o que o pai de Elio diz a ele no final. Quando ele aceita, ele diz que sabe que Elio e Oliver são amantes e que ele próprio quase teve a mesma experiência, mas não se permitiu vivê-la.
André Aciman —
Não é que ele não tenha se permitido. Ela não aconteceu.

Jorge Pontual — Não aconteceu.
André Aciman —
Porque a vida faz muitas coisas conosco. Ele diz: 'Eu poderia ter vivido, mas algo atrapalhou ou não chegou a acontecer'. Talvez ele não tenha insistido, mas ele diz: 'Eu o invejo. Aproveite e, mesmo que sofra, sofra vivenciando'. E muitíssimas pessoas me escrevem já há dez anos sobre essa cena, ou porque queriam que o pai tivesse lhes dito isso ou porque o pai disse antes de morrer, para a alegria delas. Então há uma certa longevidade naquele discurso em particular, e demorei um pouco a escrevê-lo. Não foi um discurso fácil de escrever, e ele foi reproduzido integralmente no filme, o que me deixa muito lisonjeado e satisfeito, porque James Ivory, o roteirista, respeitou o fato de o discurso ser muito bom.

Jorge Pontual — Você nasceu em Alexandria e escreveu um livro maravilhoso, Out of Egypt, sobre sua experiência em Alexandria, que é uma cidade imaginária para você, certo?
André Aciman —
Ela se torna imaginária. Ela se tornou imaginária porque, quando voltei a Alexandria, encontrei a cidade como a conheci, mas não é a mesma cidade que tenho no coração, portanto não posso voltar porque a realidade destrói a lembrança que tenho, e a minha lembrança é hoje irreal, e eu gosto dela assim, porque dessa forma posso acalentá-la e também manipulá-la, se quiser. E é isso que fazemos com nossas memórias. Gostamos do luxo de poder manipulá-las. Para dar um exemplo, em Alexandria havia um garoto de uns 14 ou 15 anos, e acho que tive uma quedinha por ele. Ele era o único outro judeu na praia. Foi nele que me inspirei para criar Oliver, porque ele usava a Estrela de Davi num cordão e eu pensava: 'Que loucura! Estamos no Egito, que não gosta de judeus, e ele fica exibindo a Estrela de Davi? Não faz sentido'. Aí, 55 anos depois, eu o procurei no Facebook e o encontrei. Ele é um senhor muito idoso — ele era mais velho do que eu, eu tinha uns 9 ou 10 anos — e caminha com dificuldade… Está muito idoso. E eu me perguntei: 'Por que você foi procurá-lo no Facebook? Não queria nada com ele. Devia ter acalentado a lembrança daquele jovem'. Foi um grande erro. Às vezes voltar para tentar entender o que aconteceu não soluciona nada. Cria novos problemas.

Jorge Pontual — Em outros livros e ensaios você fala em como Nova York se torna Alexandria para você. Você veio para cá em 1968, certo? Ainda era bem jovem.
André Aciman —
Eu tinha 17 anos quando vim. Eu não queria estar em Nova York, não queria estar nos EUA. Tinha aprendido a amar Roma, apesar de tê-la odiado no início, mas Nova York acabou se tornando meu lar. Aceitei isso e acho que não poderia morar em nenhum outro lugar. Não sou apaixonado por Nova York, mas é o meu lar. Essa ambivalência define minha experiência de vida, porque acho que o mesmo vale para Roma. Eu adoraria morar em Roma, mas não aguentaria. Após uma ou duas semanas, basta. O mesmo vale para Paris. Portanto a minha relação com Nova York é muito complicada pelo fato de que, para aceitar Nova York, às vezes preciso projetar uma Roma imaginária, uma Paris imaginária, uma Alexandria imaginária, uma Londres imaginária em Nova York para torná-la habitável.

Jorge Pontual — É um livro de ensaios dele maravilhoso, que tem essa parte sobre Nova York, que eu vou ler agora. 'Procuro essa cidade nas minhas caminhadas. Nova York, uma Nova York que não tem data, atemporal, irreal, espectral, e luminosa'. 
Aqui em Nova York você é professor e ensina, entre outras coisas, a obra de Marcel Proust. Não sei se todos os nossos assinantes conhecem Proust, o famoso escritor francês. Eu li Proust aos 15 anos e mudou minha vida. Por que Proust é tão agradável e por que todos deveriam ao menos tentar ler Proust?
André Aciman —
Em primeiro lugar, eu ensino Proust para alunos de pós-graduação, que escreverão dissertações, e também para o ensino médio. Não sei como vocês chamam, e os alunos do ensino médio adoram Proust. As primeiras páginas são um pouco complicadas até se acostumar com o estilo, mas toda a obra dele é sobre o mesmo assunto: quando você lê Proust, caso se permita lê-lo, está lendo sua vida interior. Todo pensamento que Proust tem, você também teve, só que nunca parou para anotar. Mas Proust essencialmente revela o que sentimos. Ele fala sobre lembranças, sobre pessoas, sobre tudo. Ele analisa tudo, mas há um certo grau de penetração na vida real que vivemos diariamente, e isso é incomum, porque a maioria dos escritores conta histórias e enredos, e em Proust o enredo é muito simples, porque ele se concentra na vida interior. E ninguém fez isso tão bem quanto ele, e acho que ninguém discorda de que ele é o maior escritor do século 20.

Jorge Pontual — As frases de Proust dão voltas sinuosas para melhor apanhar a mágoa e a dor, e espalhá-las como ouro, em uma cadência, só cadência, porque cadência é sentimento, cadência é respiração, cadência é desejo.
André Aciman —
É, sim. O que tentei fazer nessa sentença que você leu foi dar ao leitor uma noção de como Proust escreve. Foi uma imitação, de certa forma, do tipo de sentença dele. É musical, tem ritmo e, como sempre acontece em Proust, que é brilhante, ele escreve uma sentença longa e no final há uma surpresa fantástica que faz você dizer: 'Preciso reler a sentença, porque adorei a experiência de ler isso passo a passo e descobrir a surpresa'. Sempre há um momento retrospectivo ao final de cada sentença. E a sentença tem música. Quantas pessoas escrevem sentenças musicais e têm a ousadia de escrever uma sentença longa que o forçará a ser transportado a outra dimensão?

Jorge Pontual — Para mim também é uma forma, como você disse aqui, de lidar com a tristeza e a dor sem desespero.
André Aciman —
A minha definição disso é 'encantamento'. Você fica encantado, seja dor, tristeza ou êxtase, não importa. O importante é a revelação, o encantamento e o prazer estético da leitura. É duradouro, vive para sempre, é impossível dizer: 'Parei de ler Proust'.

Jorge Pontual — E pelo menos nos seus romances eu tive a mesma experiência. Você faz a mesma coisa, permite que o leitor fique íntimo de…
André Aciman —
De mim, dos personagens, da história… O importante é isso. Você quer entrar na cabeça de… No caso de Me chame pelo seu nome, você quer aceitar a perspectiva de Elio, porque é a única que conhece. Nunca conhece a perspectiva de Oliver. Mas, ao entrar na cabeça de Elio, se tiver paciência, perceberá: 'Meu Deus, esse menino sou eu!'. E acho que é isso que sentimos quando lemos Proust. 'Sou eu. Não é Proust, sou eu'. E um escritor que consegue esse efeito tem sorte.

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