Opinião

Auxílio-moradia não pode ser usado para linchamento público da magistratura

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10 de fevereiro de 2018, 15h22

Estamos assistindo a uma verdadeira cruzada moral na imprensa e nas redes sociais a respeito do vilão da vez: o auxílio-moradia recebido por magistrados que já são proprietários de imóveis e, mesmo assim, têm aceitado receber o benefício no valor mensal de R$ 4,3 mil.
 
Dizem os defensores da moral pública que receber um “benefício” assim é ignorar a realidade econômica do país, o pesado déficit da Previdência brasileira e ao mesmo tempo um abuso. Em outras palavras, trata-se de um julgamento público daqueles que têm o poder e a prerrogativa de julgar o particular e por vezes figuras públicas até.
 
Não é propósito deste artigo mencionar que o auxílio-moradia teve seu pagamento determinado por decisão do STF a toda a magistratura, independentemente de serem os juízes proprietários ou não de outros imóveis, de modo que a questão não envolve antijuridicidade por parte de quem o recebe. Também não é propósito deste artigo comparar juízes com outros servidores públicos para concluir que médicos e professores são também tão importantes dentro do funcionalismo público como aqueles investidos de promover a paz social por meio de suas decisões.
 
O que mais chama a atenção nesse debate é que os ferrenhos detratores da concessão do tal benefício para a magistratura são justamente aqueles que cobram tanto do Poder Judiciário como do Ministério Público o rigor total contra a corrupção; ou ainda são aqueles que entendem que o Judiciário e as autoridades competentes estão pesando a mão nesta dura e permanente “cruzada” anticorrupção.
 
Então todos os times em campo passaram a partir para cima do juiz, em verdadeiro comportamento de manada, sem atentar para algumas peculiaridades extremamente importantes.
 
Gustave Le Bon, já em 1895 e em seu clássico Psicologia das Multidões, advertia que “os sentimentos, bons ou maus, manifestados pela multidão, apresentam dupla característica de serem muito simples e muito exagerados”. E continua: “Sob esse aspecto, como sob tantos outros, o indivíduo em multidão aproxima-se dos seres primitivos. Insensível às nuances, vê todas as coisas em bloco e não conhece as transições. Na multidão, o exagero de um sentimento é fortalecido pelo fato de que, propagando-se muito rapidamente mediante sugestão e contágio, a aprovação de que se torna objeto aumenta sua força consideravelmente”.
 
Tudo isso para dizer que, mutatis mutandis, o debate sobre o auxílio-moradia dos juízes corresponde muito hoje ao movimento que levou dezenas de milhares de pessoas às ruas no ano de 2013 contra o aumento de 20 centavos de real para o transporte público. Havia, sim, um movimento de cunho econômico, mas o julgamento era moral. Era ali uma manifestação coletiva de insatisfação geral com os destinos da nação, inicialmente eclodida com a indignação contra o aumento de centavos do transporte público.
 
Mas, além da questão moral e da questão da insatisfação coletiva em relação a diversos e contínuos maltratos à coisa pública, perpetrados por administrações públicas desastrosas em todos os níveis (federal, estadual e municipal), além de um verdadeiro mau exemplo desempenhado por nossos parlamentos também em todos os níveis a colocar em xeque a própria sistemática de representação popular, fato é que o auxílio-moradia merece algumas explicações:
 
Seria ideal, sim, um subsídio em parcela única para conferir transparência aos vencimentos da magistratura e evitar “penduricalhos” como o auxílio-moradia. Todavia, o governo, ao não promover a devida correção monetária dos subsídios da magistratura, vem dificultando a tramitação dos projetos de lei encaminhados tanto pelo STF como pela PGR, que literalmente se põem a mendigar essas simples correções anuais pela inflação.
 
O que se verifica é que a questão ostenta, via de regra, contornos políticos, dependendo muito do relacionamento institucional entre o presidente do STF e o governo, o que é lamentável, sob a perspectiva constitucional de harmonia e independência entre os Poderes, esse périplo do Judiciário junto ao Executivo.
 
Por outro lado, é salutar, sim, uma reflexão profunda sobre a remuneração da magistratura, notadamente no que diz respeito a um adicional por tempo de serviço, viabilizando-se um incentivo ao juiz de carreira, que, após 30 anos de serviço público, ganha rigorosamente o mesmo que um juiz recém-ingressado na carreira. As carreiras essenciais para o Estado, todas indistintamente, precisam ser bem remuneradas para atrair bons quadros e ao mesmo tempo para funcionar como uma garantia para o cidadão contra a própria corrupção de agentes públicos.
 
O dinheiro relativo a renúncias fiscais e também as chamadas emendas parlamentares ao orçamento são rubricas que superam, em muito, esses vencimentos de caráter repositório/compensatório da inflação à magistratura.
 
E ainda sobre o auxílio-moradia, por mais paradoxal que possa parecer, o governo prefere pagá-lo mesmo nas circunstâncias do debate atual do que fazer esse pagamento via reposição de perdas inflacionárias anteriores, justamente porque essa verba (auxílio-moradia) não reflete nos inativos.
 
Como se pode verificar, a moral cega das multidões não percebe as nuances como advertia Gustave Le bon. Que o auxílio-moradia, assim como os 20 centavos, sirva para promover um debate racional e sincero sobre o assunto da realocação adequada dos recursos públicos, mas não como um linchamento público da nossa magistratura, aos sabores do comportamento da manada de plantão.

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