Limite Penal

Fale agora ou cale-se para sempre: a questão do silêncio seletivo no crime

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Jorge Bheron Rocha

    é defensor público do estado do Ceará professor mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e doutorando pela Universidade de Fortaleza.

  • Mariella Pitari

    é defensora pública do estado do Ceará especialista em Direito Público alumni do Institute for U.S Law Washington DC e aluna do programa Master of Law em Cornell University.

9 de fevereiro de 2018, 7h00

Spacca
O Direito brasileiro experimenta um estado de controvérsia jurídica: institutos de tradição alienígena legalmente incorporados transitam em alarmante estado de incertezas; a Constituição da República, ao argumento de melhor interpretá-la, é rescrita, esquecida ou simplesmente violada; discursos judiciais subversivos à disciplina legal do processo penal afrontam a própria democracia; a expansão desenfreada do papel do Judiciário para além do conteúdo originário constitucional põe em risco a separação de Poderes.

No processo penal, por exemplo, apesar de as convenções de Palermo e Mérida, subscritas e ratificadas pelo Brasil, conterem previsão expressa de diversos instrumentos de combate ao crime organizado — como a delação premiada —, estes necessitam de uma internalização no Direito pátrio; precisam de compatibilidade democrática. Entretanto, sua transposição e adoção sem maiores cuidados e adequações à realidade jurídica e cultural cria grande risco de incrementar o já colossal descompasso do sistema processual acusatório, catapultando o país de volta à inquisição.

Ainda no tempo de faculdade aprendemos na cadeira de processo penal acerca de um famoso caso constitucional americano, Miranda v. Arizona1, no qual restou estabelecido que a confissão do acusado sem que lhe tenha sido oferecida a oportunidade de manter-se em silêncio resultava na ilicitude da prova obtida através de tal meio. Daí porque chamamos a essa advertência de Miranda warnings.

Nos Estados Unidos, há de ser dito que, caso o acusado decida falar, não possuirá ele o direito de mentir e não poderá responder apenas ao que for do seu interesse. Se vier a falar e mentir, será passível de ser processado por perjúrio, tal como qualquer outra testemunha do processo. Então, se uma vez advertido decidir falar, assumirá as consequências conforme a disciplina legal estadunidense.

No Brasil, por sua vez, o interrogatório é visto como ato de defesa, sendo deferido o direito de responder às perguntas que sejam pertinentes e adequadas à sua estratégia. É explícita a disposição legal, como corolário da previsão constitucional, de que o acusado tem o “direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas” (artigo 186, CPP), inclusive em consonância com os tratados internacionais de que o Brasil é signatário2.

O direito do acusado/investigado de se manter em silêncio ou responder apenas ao que lhe interessa tem causado um certo desconforto a alguns atores jurídicos, como, por exemplo, a um procurador da República presente em audiência da operação "lava jato", ocasião em que deixou explícita sua indignação em relação ao exercício do direito constitucional do acusado — a que chamou de estratégia "indigna e covarde"3.

A estratégia de se manter em silêncio ou de responder apenas às perguntas formuladas pelo juízo e pela defesa, e de se recusar a falar com o Ministério Público, ao contrário do que sustenta a juíza da 1ª Vara Criminal de Brasília, em sentença no Processo 2007.01.1.122602-44, não configura deslealdade processual ou desequilíbrio dos instrumentos processuais em benefício da defesa. O silêncio seletivo, expressão adotada pela magistrada na aludida sentença, é instituto que inexiste no cenário jurídico brasileiro, não havendo qualquer fundamento teórico ou suporte convencional, constitucional ou legal para que se interprete desfavoravelmente ao acusado seu exercício estratégico de calar.

O que implica, também, na impossibilidade de conduzir coercitivamente o acusado/investigado à audiência, tendo em vista que o seu não comparecimento ao ato expressa o exercício da autodefesa manifestada através da opção por não falar5. Não se olvide que, em determinadas posições processuais, nada resta ao acusado senão o exercício do direito ao silêncio, configurando, a um só tempo, “liberdade de expressão, direito a não se incriminar e exercício da garantia à ampla defesa”6.

Os discursos subversivos à disciplina legal do processo penal são não apenas arriscados para o sistema processual penal, constituem uma afronta à própria democracia. A expansão do papel do Judiciário brasileiro para além do conteúdo democrático presente na Constituição culmina por desorganizar a separação de Poderes tal como preconizada na CF/88. Tornou-se difícil distinguir o papel de interpretar a lei do de simplesmente criar novos conteúdos normativos de caráter abstrato. Na verdade, estamos assistindo ao surgimento de uma juristocracia absolutista, em que o rei (Judiciário) — pensa que — não erra. Qualquer um tem o direito ao, assim chamado, silêncio seletivo, podendo perguntar ao seu advogado, a cada pergunta, sobre a conveniência estratégica da resposta. Isso é democracia processual.


1 384 U.S. 436 (1966).
2 Nesse sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos: “Art. 8 (…) 2.Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…) g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. Assim também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: “Artigo 14. (…) 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: (…) g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.
3 https://www.conjur.com.br/2018-jan-18/procurador-mpf-revolta-direito-constitucional-silencio.
4 https://www.conjur.com.br/2018-jan-31/juiza-reclama-silencio-seletivo-reus-acao-penal.
5 MORAIS DA ROSA, Alexandre; AGUIAR, Michelle. O regime da condução coercitiva no Processo Penal do Espetáculo. Encontrado em http://emporiododireito.com.br/qualoregime-da-conducao-coercitiva-no-processo-penal-do-espetaculo-por-alexandre-morais-da-rosaemichelle-aguiar. Acesso em 2/2/2017.
6 ROCHA, Jorge Bheron. ROCHA, J. BHERON. O Processo Penal do Espetáculo: Interceptações Telefônicas, Conduções Coercitivas e Impeachment. In: UCHOA, Marcelo Ribeiro; UCHOA, Inocêncio Rodrigues; GOMES, Antônio José de Sousa; ALVES, Letícia. (Org.). O Ceará e a Resistência ao Golpe de 2016. 1ed. Bauru: Canal 6, 2016, v. 1, p. 93

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional na Unifor.

  • é defensora pública do estado do Ceará, especialista em Direito Público, alumni do Institute for U.S Law, Washington DC, e aluna do programa Master of Law em Cornell University.

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