Segunda Leitura

Reflexões sobre a novelesca nomeação
da ministra do Trabalho

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de fevereiro de 2018, 7h03

Spacca
O presidente da República, no dia 4 de janeiro, nomeou a deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) para exercer o cargo de Ministra do Trabalho. Ela tem 44 anos, é advogada formada pela Universidade Católica de Petrópolis, teve três mandatos no Rio de Janeiro e foi secretária municipal.

Ocorre que na Justiça Federal em Niterói (RJ) foi proposta uma ação popular, invocando-se a impossibilidade de ela exercer tal cargo, uma vez que teria sido condenada em uma reclamação trabalhista perante a Justiça do Trabalho. Com base no princípio da moralidade administrativa, o juiz federal da 2ª Vara suspendeu o ato administrativo.

Houve recurso para o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, onde a decisão judicial foi mantida. Sobreveio outro para o Superior Tribunal de Justiça, onde, no dia 20 de janeiro, foi reformada, permitindo-se a posse da indicada. Mais um novo recurso, desta feita para o Supremo Tribunal Federal, resultou na suspensão da decisão do STJ pela ministra presidente no dia 22, mantendo a proibição da posse. No dia 31 seguinte, a indicada requereu a revogação da liminar da presidente.

Enquanto se aguarda o exame da matéria pelo Plenário do STF, Cristiane Brasil gravou um vídeo em um passeio de lancha, acompanhada de quatro homens sem camisa. No vídeo, a pretensa ministra, estimulada por um de seus amigos com a frase “vai, ministra”, sustenta seu direito à nomeação, afirma nada dever e repele a sua condenação com veemência.

A repercussão foi extremamente negativa, viralizou na mídia[i], nas redes sociais, mereceu um pito de seu pai Roberto Jeferson[ii] e promete ser meme no carnaval que se aproxima.[iii]

Porém, ainda que o episódio tenha lances de tragicomédia, dele é possível extrair-se lições, de modo que, a partir dos fatos, possamos contribuir para o aprimoramento de nossas instituições. Em outras palavras, com visão crítica, mas espírito desarmado, podemos tirar do vexame algo de útil.

Sem qualquer análise do mérito, já por demais batido, vejamos os diversos ângulos do imbróglio e no que pode ser útil.

O presidente da República fez a indicação atendendo a critérios exclusivamente políticos e com a finalidade de obter apoio para suas reformas em trâmite no Congresso. Assim são, nos últimos anos, as indicações para ministérios. Politicamente, é compreensível, pois, caso contrário, não se governa.

Mas temos que aceitar que isto não tem limites? Será tão difícil conciliar o aspecto político com a respeitabilidade de quem exercerá o cargo? Seria oportuno pesquisar os antecedentes de cada possível candidato? Será que haveria reação dos parlamentares a um nome neutro, respeitado nacionalmente por seus conhecimentos?

Nada disto é fácil, com certeza. Ingenuidade não combina com administração pública. Mas uma coisa é certa. O desgaste da nomeação ora tratada fará com que o atual chefe do Poder Executivo e os que lhe sucederem sejam mais cautelosos nas próximas nomeações. Por exemplo, uma pesquisa sobre os antecedentes do candidato pode ser de grande utilidade. No caso da deputada, consta que responde a inquérito por suposta associação ao tráfico de entorpecentes durante a campanha eleitoral de 2010.[iv]

O segundo ponto é a decisão judicial impeditiva. Pode o Judiciário suspender um ato que, pela Constituição, é privativo do Executivo? Pela doutrina antiga, óbvio que não. Sucede que a Constituição de 1988 afirma que nada pode ser subtraído do exame pelo Poder Judiciário, o que significa que o juiz fica obrigado a decidir tudo que lhe é submetido. Como a Constituição tem vários princípios subjetivos, como moralidade administrativa, dignidade da pessoa humana, publicidade e eficiência, cada um pode concluir como lhe pareça adequado.

Claro que isto traz um enorme risco de instabilidade. Cada um dos 27 mil juízes brasileiros pode pensar de uma forma. O juiz federal de Niterói considerou o ato administrativo ofensivo ao princípio da moralidade previsto na Carta Magna. Sua decisão foi bem fundamentada. Mas como ficará a administração púbica se amanhã juízes de todas instâncias entenderem que nomeações de secretários de estado, de município ou outros detentores dos milhares de cargos de confiança não são indicados para o cargo e impedirem suas posses?

Isto nos leva a outro pensamento: estamos preparados para um governo dos juízes? Ou dos agentes do Ministério Público, que fazem recomendações que trazem implícita a possibilidade de ingresso em juízo e impedimento do ato administrativo? Estão esses profissionais, que nas suas áreas são bem preparados e submeteram-se a concursos dificílimos, capacitados a decidir as múltiplas questões administrativas? Isoladamente, sem a visão do todo?

Avancemos, ainda, na questão judiciária. O caso foi examinado em quatro instâncias e será, agora, visto pela quinta vez, no Plenário do STF. É razoável um sistema que adota o vai e vem, não só entre muitas instâncias, mas também dentro de cada uma (agravo de instrumento, embargos de declaração, etc.)? Que deixa a população incrédula? Os investidores inseguros? É possível o Executivo administrar recebendo ordens que vão de um lado ao outro? O sistema de Justiça adotado em 1988 representou um avanço ou um retrocesso para o Brasil?

Vejamos agora o vídeo da pretensa ministra. Satisfações à sociedade fazem parte daqueles que têm vida pública, em especial os que ocupam os cargos mais altos da hierarquia. No exterior há pedidos de desculpas por fatos cometidos décadas atrás. Isto é bom, põe as coisas às claras, apazigua conflitos.

Mas uma deputada federal gravar um vídeo em uma lancha, cercada por quatro homens sem camisa, surpreenderia o mais experiente dos mortais. Um vídeo explicativo teria que ser feito de maneira formal, local, vestimenta e tom de voz adequados. Livros de etiqueta estão fora de moda, mas teria sido bom que a deputada tivesse lido, por exemplo, um de Cláudia Matarazzo, que pode ser encontrado até na internet, grátis.[v]

No vídeo, a deputada, procurando minimizar a decisão judicial que a condenou, usou a expressão: “Ainda mais na Justiça do Trabalho”. Um agente político não critica publicamente os outros Poderes de Estado. Intimamente, como todos, pode detestar quem quiser. Mas não ridiculariza, em público, um órgão da soberania do Estado democrático, conduta que, inclusive, esbarra no art. 3º, inc. III do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados.[vi]

Roberto Jefferson, pai da deputada, foi o motivo de ela ter sido convidada. Não gostou nada do vídeo, porém, no mais, ficou em silêncio. Uma enrascada política de tal porte não recomendava aconselhamento à filha para que saísse de cena, deixando lugar para outra pessoa ser indicada?

Enfim, esta confusa situação que envergonha o Brasil perante outros países, que gera um clima de descrédito nas instituições, talvez nos sirva para amadurecermos, refletirmos e procurarmos o melhor caminho. E, para tanto, sempre é bom lembrar as palavras de Baltazar Gracián, cujos escritos, no século XVII, até hoje são úteis regras de conduta. Confira-se um dos trechos da obra A arte da prudência:

51. Saber escolher. Quase tudo na vida depende disso. São precisos bom gosto e julgamento agudo; inteligência e capacidade não bastam. Não existe perfeição sem discernimento e seleção. Estão envolvidos dois talentos: escolher e escolher o melhor. Muitos de inteligência fértil e arguta, julgamento rigoroso, instruídos e bem informados se perdem na hora de escolher. Sempre escolhem o pior. Como se fizessem questão de errar. Saber escolher constitui uma das maiores dádivas celestes.[vii]

 


[ii] O Estado de São Paulo, 3/2/2018, A4.

[iv] O Estado de São Paulo, 31/8/2018, A6.

[v] MATARAZZO, Cláudia. Etiqueta sem frescura. Disponível em: http://www.lucianabarbosa.net/wp-content/uploads/2010/03/Claudia-Matarazzo-Etiqueta-Sem-Frescura-pdfrev.pdf. Acesso 2/2/2018.

[vii] GRACIÁN, Baltazar. A arte da prudência. Disponível em https://tarotdiario.files.wordpress.com/2016/08/gracianartedaprudecc82ncia.pdf. Acesso em 2/2/2018.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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