Embargos Culturais

A censura e o antídoto da arte como arma, truque e verdade

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

4 de fevereiro de 2018, 7h00

Spacca
Em seu delicioso livro de memórias (Verdade Tropical), Caetano Veloso nos conta como definiu a letra da não menos deliciosa canção Terra. Quando preso pela ditadura militar, narra Caetano, Dedé (que então era sua mulher) levou-lhe na cadeia um exemplar da Revista Manchete. Na capa da revista, as primeiras fotografias de nosso planeta, tiradas de fora da atmosfera1. Nessa parte encantadora do livro, Caetano explica todo o sensualismo que envolve a ideia dessa música, o que nos remete também para as aporias e tragédias sensuais que ocorrem no ambiente prisional.

A violência na prisão e a censura são exemplos da sociedade disciplinar em crise, dominada pela vida dos homens infames. Essa infâmia é recorrentemente questionada. É o que pensamos quando lemos passagem emblemática de Foucault, para quem não há poder sem recusa e também não há poder sem revolta em potencial2. A rte é forma de rejeição e de revolta. Subverte o objetivo do violentador e do censor. Paradoxalmente, é em tempos de censura que a arte transcende a si mesma, deixando de ser a enfadonha arte pela arte. A arte é rebeldia.

Nelson Motta, também em seu agradável livro de memórias (Noites Tropicais), reúne várias exemplos de insurgência de artistas à política bruta, que resultaram em criações de incomparável lirismo e beleza. Motta conta-nos a reação de Chico Buarque, hostilizado pela censura, isto é, “amadurecido no sofrimento, ele reagia ao sufoco e à repressão explodindo de criatividade, usando a linguagem como arma e arte, como truque e verdade ao mesmo tempo”3.

Quando Chico cantava o refrão “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, fazia uma clara alusão a um general presidente cuja filha havia declarado que gostava de suas músicas, ainda de acordo com Motta (cujo avó foi ministro do STF, justamente quem lhe salvou de uma prisão por razões de censura, em 1969). O “cálice” que Chico pedia que dele fosse afastado era uma referência ao “cale-se” dos anos de chumbo. Foi na resistência artística que brasileiros como Caetano e Chico, e tantos outros, comprovaram que a arte não se curva aos fuzis e às tesouras.

A censura é uma obsessão na política. Roberto Darton, historiador da censura no antigo regime, registrou que o gênero literário que mais provocava os censores antigos eram os roman à clef4. Nesses, os personagens da vida real são retratados fielmente por intermédio de personagens fictícios. Os nomes dos personagens indicavam claramente de quem se tratava. Entre nós, Lima Barreto notabilizou-se por essa forma de crítica, especialmente no romance Os Bruzundangas, uma reprodução satírica e fiel do Brasil do início da República.

A censura, no entanto, conta com o registro e o apoio de um filósofo grego. Trata-se do pensador-herói da cultura cujas ideias municiam os projetos dos inimigos das sociedades abertas, de acordo com a denúncia do insuspeito Karl Popper5. Em um de seus diálogos (As Leis), Platão questionou por intermédio de um interlocutor ateniense se os poetas seriam capazes de discernir o que é bom e o que não é6. Nesse texto do cânon platônico, lê-se que um poeta não poderia compor nada que ultrapassasse os limites daquilo que o Estado tivesse como legal e correto, belo e bom7. E, ainda, nessa utópica república havia juízes selecionados para legislarem em matéria de música, bem como para supervisionarem a educação8.

Eram censores julgadores e fazedores de leis. Embirram em viver em sociedades atuais. Assim, na impressão de um célebre teórico das relações entre Direito e arte, “conscientes do temível poder da ficção, os legistas querem manter os poetas à distância para preservar a integridade do direito e da justiça”9. O problema é que o Direito e a Justiça são definidos de acordo com os donos do poder, mesmo em ambientes pretensamente democráticos, ainda que tenhamos exceções.

A literatura mais recente oferece muitos exemplos dessa catástrofe. Winston Smith, personagem central de 1984, de George Orwell, era funcionário do Ministério da Verdade, cuja função era falsificar a história, o que é uma forma direta e eficiente de censura. Bernard Marx, personagem central de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, agonizou com a manipulação psicológica de uma sociedade também distópica, pautada pela censura.

Paradoxalmente, Sócrates, o maior expositor da galeria dos personagens de Platão, fora executado, depois de um tumultuoso julgamento, menos pela cicuta do que pela censura. O que matou Sócrates não foi o veneno, foi a inveja, corporificada em forma de censura política. Qual o Platão que mais convém?

Na França revolucionária, o libertino Marquês de Sade foi perseguido e censurado por todos os partidos e tendências, isto é, por girondinos, jacobinos, realistas e bonapartistas. A lenda conta que terminou seus dias escrevendo com sangue e fezes nas paredes das masmorras. Afinal, que moral tolera esse diabólico marquês escritor, para quem a dor nos afeta bem mais do que o prazer, pelo que “não é de duvidar que os choques resultantes em nós dessa sensação produzida sobre os outros [dor], sendo essencialmente uma vibração mais vigorosa (…) vão colocar em circulação mais violenta os espíritos animais”10. Ainda que sádicas, as ditaduras não toleram o sadismo literário.

De igual modo, nas prisões francesas do início do século XIX conviviam presos que lá estavam encarcerados porque eram inimigos de Napoleão com presos que lá estavam cativos porque eram amigos de Napoleão. O que fazer quando o dono do poder dita o que deve ser pensado e escrito?

É no enfrentamento dessa pergunta que se pode encontrar uma chave interpretativa para a tensão existente entre censura e liberdade de expressão. Essa última só existe plenamente quando os meios de divulgação são desobstruídos de qualquer controle. Impossível, talvez. Como consequência, confunde-se opinião pública com opinião publicada. Nossa história recente tem muitos exemplos dessa confusão.

Os censores tem medo dos livros; é que “os livros não são coisas absolutamente mortas; contém uma espécie de vida em potência, tão prolífica quanto a da alma que os engendrou (…) eles [os livros] preservam, como num frasco, o mais puro e eficaz extrato do intelecto que os engendrou”11. Temem também as músicas, e tudo quanto revele o poder criativo do intelecto humano. Tolhem e prendem.

E foi numa infecta prisão, onde estava porque censurado, que Caetano Veloso poeticamente intuiu que a terra é para o pé firmeza e para a mão carícia, e outros astros lhe são guias. Essa terra, que, por mais distante, o errante navegante jamais esqueceria. Caetano permanece. Os ditadores se escondem na mediocridade do anonimato. Alguns teimam em ressurgir. Contra a censura que intransigentemente defendem persiste a arte, como arma, truque e verdade.


1 Veloso, Caetano, Verdade Tropical, São Paulo: Cia. das Letras, 2017, pp. 388 e ss.
2 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, vol. IV, Estratégia-Poder-Saber, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 384.
3 Motta, Nelson, Noites Tropicais, Rio de Janeiro: Objetiva, s.d., p. 268.
4 Darnton, Robert, Censores em Ação – como os Estados influenciam a literatura, São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p. 57.
5 Popper, Karl, The Open Society and its enemies, London: Routledge, 1996.
6 Platão, Leis, Livro VII. A referência é a uma tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 1999.
7 Platão, Leis, cit.
8 Platão, Leis, cit.
9 Ost, François, Contar a Lei – as fontes do imaginário jurídico, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, p. 10. Tradução de Paulo Neves.
10 Sade, Marquês de, A Filosofia na Alcova, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 79. Tradução de Contador Borges.
11 Milton, John, Areopagita, Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento da Inglaterra, Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 61. Tradução de Raul Sá Barbosa.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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