Direito civil atual

2018: O ano em que duas senhoras Constituições se encontraram

Autores

  • Marcílio Toscano Franca Filho

    é árbitro da Court of Arbitration for Art (CAfA Rotterdam) do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI Genebra) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (Assunção Paraguai). Professor da Faculdade de Direito da UFPB. Foi professor Visitante do Departamento de Direito da Universidade de Turim Itália.

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

31 de dezembro de 2018, 9h16

Na última coluna do ano, faz-se uma homenagem a duas respeitáveis senhoras que aniversariam em 2018: a Constituição brasileira, que completou 30 anos, e a Constituição italiana, com seus 70 anos de vigência. 1988 e 1948 assinalaram aniversários de dois textos constitucionais que têm muito em comum e que fazem por merecer uma celebração conjunta. Não são poucas as razões para isso.

A presença italiana no Brasil é tão antiga quanto relevante. Ainda na capitania hereditária de Pernambuco do final do século XVI, epicentro da economia açucareira nordestina, o nobre florentino Filippo di Giovanni Cavalcanti, possivelmente em fuga dos Medici (a célebre família de banqueiros renascentistas, uma das maiores fortunas mundiais à época), tornou-se um poderoso senhor de engenho, após contrair núpcias com Catarina de Albuquerque, filha do governador Jerônimo de Albuquerque e da índia Maria do Espírito Santo Arcoverde. Da união ítalo-luso-indígena formou-se o clã dos Cavalcanti de Albuquerque, de longa tradição jurídica e com linhagem secular na política nacional.

Recordem-se, de entre tantos nomes de relevância, quatro personagens emblemáticas: Tenório Cavalcanti de Albuquerque (1906-1987, alagoano que fez carreira política no Rio de Janeiro, como deputado federal eleito pela Baixada Fluminense e que se tornou famoso pelo título de “Homem da Capa Preta), Amaro Cavalcanti (1849-1922, natural do Rio Grande do Norte, membro da Corte da Haia e ministro do Supremo Tribunal Federal), João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1878-1930, juiz do Supremo Tribunal Militar e presidente do Estado da Paraíba, cujo assassínio deflagrou a Revolução de 1930) e Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979, alagoano, o maior privatista brasileiro do século XX).

É impossível, ademais, contar a História do Brasil na primeira metade do século XIX sem mencionar personagens italianas como Giuseppe Garibaldi (1807-1882, líder da unificação italiana e da Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul) e Luigi Rossetti (1800-1840, jornalista e revolucionário italiano, que lutou ao lado de Garibaldi na Guerra dos Farrapos). Já na segunda metade do Oitocentos, o fato de a imperatriz Dona Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, esposa de D. Pedro II, ter nascido em Nápoles e ser filha do rei Francisco I, intensificou ainda mais as relações ítalo-brasileiras, que já eram herdeiras de amistosas tradições ítalo-portuguesas.  

D. Teresa Cristina foi imperatriz por mais de cinquenta anos, de 1843 até 1889, quando faleceu na cidade do Porto, Portugal, pouco depois da proclamação da República e de sua chegada ao exílio. Durante o Segundo Reinado, a coroa recebeu muitos visitantes italianos, nobres ou plebeus, de entre artistas, cientistas e intelectuais, como os pintores Edoardo de Martino (Meta, 1838 – Londres, 1912), Nicolò Agostino Facchinetti (Treviso, 1824 – Rio de Janeiro, 1900), Alessandro Cicarelli Manzoni (Napoli, 1811 – Santiago de Chile, 1879) e Angelo Agostini (Vercelli, 1843 – Rio de Janeiro, 1910), que celebrizaram paisagens nacionais.

A partir de 1873, o imperador D. Pedro II viajou inúmeras vezes à Itália e patrocinou a ida de eminentes artistas brasileiros à península, ao exemplo do consagrado pintor Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905, paraibano, autor de pinturas históricas como Independência ou Morte, na qual eternizou a cena da declaração de independência do Brasil em 1822 às margens do riacho Ipiranga). O imperador ambicionava intensificar um soft power tropical ante litteram. São famosos os registros fotográficos das expedições de D. Pedro II a sítios arqueológicos italianos como, por exemplo, o de Pompeia.

Em 1861, o Brasil reconheceu o Reino da Itália unificado e, em 1870, ainda sob o reinado de D. Pedro II, deu-se início oficial à imigração italiana no Brasil. Em 1880, Pedro Américo pintou, a pedido do rei italiano Umberto I, “Il Genio Italiano”, imensa alegoria a óleo, recentemente restaurada e exposta no Palácio Real de Turim. O fluxo cultural entre Brasil e Itália era tamanho, ainda em meados do século XIX, que livrarias italianas, como a icônica Paravia, de Turim, anunciavam em jornais brasileiros. O próprio Pedro Américo, residindo no Palazzo Michelozzi, em Florença, assinava com frequência uma coluna (“Cartas de um Pintor”) na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, com comentários a respeito da cena política e cultural italianas.

Itália e Brasil foram monarquias que se converteram em repúblicas, com sucessivas e traumáticas experiências ditatoriais. No século XX, essa relação se conservou, embora em novas bases. Os imigrantes italianos chegaram em contingentes ainda maiores, trabalhando nas lavouras de café, nas indústrias e no comércio, muita vez em condições de trabalho desumanas.  Dessas ocupações originais, eles assumiram posições de relevo na política, no movimento sindical e, após romperem as barreiras do preconceito, nos elevados círculos sociais, de modo particular após a crise econômica internacional de 1929.

Há quase cem anos, na Conferência de Paz de Versalhes de 1919, o primeiro-ministro e chefe da delegação italiana Vittorio Emanuele Orlando (que, depois da II Guerra Mundial, ainda viria a ser o presidente da Assembleia Constituinte italiana, que elaborou a Constituição de 1947) convidou o então chefe da delegação brasileira, Epitácio Pessoa para uma visita oficial a Roma. Note-se que Pessoa havia sido eleito presidente da República, em meio à Conferência de Paz. A passagem do futuro presidente brasileiro pela Cidade Eterna ocorreu em maio de 1919, com grande êxito bilateral e larga cobertura jornalística.

As raízes romano-germânicas dos sistemas jurídicos de ambos os países, a afinidade latina dos idiomas português e italiano e esse duradouro e estável diálogo cultural permitiram que Brasil e Itália trocassem experiências jurídicas relevantes ao longo dos séculos, nos mais diversos campos do Direito Público e do Direito Privado. O pensamento, as correntes teóricas e os escritos de Gaetano Filangieri, Cesare Beccaria, Cesare Lombroso, Raffaele Garofalo e Enrico Ferri rapidamente chegaram às jovens faculdades de direito brasileiras do século XIX. Na primeira metade do século XX, destacaram-se autores como  Dionisio Anzilotti, Emilio Betti, Giuseppe Chiovenda e Giorgio Del Vecchio, de entre outros. Na segunda metade do século XX, o protagonismo coube a Norberto Bobbio, Gustavo Zagrebelsky e Natalino Irtí, de entre tantos outros. Não se pode, além do mais, falar na Faculdade de Direito de Largo de São Francisco sem mencionar os nomes de Tullio Ascarelli e Enrico Tullio Liebman, fundadores de escolas jurídicas no Direito Comercial e no Direito Processual.

A Constituição italiana de 1948, assim como sua congênere brasileira de 1988, resultou de um imenso pacto nacional das forças políticas após a derrota de um regime ditatorial. Promulgada em 22 de dezembro de 1947, ela fundou a nova república italiana, após a abolição da monarquia decorrente de um referendo popular e substituiu o célebre Statuto Albertino, a anterior constituição do Reino da Itália, desfigurada por mais de duas décadas do fascismo, inaugurado em 1922.

A nova constituição, de modo similar ao que ocorreu no Brasil, introduziu no Direito italiano um conflito com disposições do Código Civil de 1942, elaborado durante a Segunda Guerra Mundial, e trouxe consigo um conjunto de normas tendentes à publicização do Direito. Embora não possa ser considerada como uma constituição dirigente, o texto fundamental de 1948 é dotado de princípios intervencionistas que permitiu a formação de uma geração de juristas “de combate”. As grandes mudanças em seu conteúdo ocorreram, porém, a partir das décadas de 1980-1990, após o fim da experiência do socialismo real na Europa do Leste e o início da era das grandes privatizações.

A estabilidade da Constituição de 1948 não foi suficiente para conter o maremoto político ocorrido no país com a Operação Mãos Limpas e a destruição do sistema partidário nascido do segundo pós-guerra, simbolizado pela existência de dois grandes blocos, o democrata-cristão e o socialista.

Hoje, discutem-se reformas profundas no sistema constitucional italiano, ao exemplo do que ocorre no Brasil. Responsabilização de magistrados, abolição ou modificação radical da estrutura do Senado, mudanças na eleição do presidente da República, revisão do pacto federativo, com maior poder às regiões, e eliminação de conselhos. A insatisfação com o sistema político é generalizada e, de algum modo, há uma nítida crise de legitimidade da Constituição de 1948.

História comum, experiências e tradições políticas com sensíveis simetrias e um sistema jurídico-político sob contestação, é assim que Itália e Brasil chegam ao final de 2018 e que possuem a ventura de celebrar a mesma efeméride de seus textos constitucionais.   

 Nesses 70 anos da Constituição italiana e nos 30 anos da Constituição brasileira, a melhor metáfora desse perene diálogo Atlântico-Mediterrâneo recai, desde 1961, no fato de que o símbolo mais popular da Justiça no Brasil é uma obra do escultor oriundi Alfredo Ceschiatti, em frente ao Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Auguri! Bravi!

Autores

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    é presidente do ramo brasileiro da International Law Association (ILA Brasil) e é árbitro suplente do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. É doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, fez pós-doutorado em Direito no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália) e é coautor do livro “Direito da Arte” (editora Atlas).

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    é coordenador da área de Direito da CAPES, livre-docente em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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