Liberais versus conservadores

Nos EUA, tribunais federais terão maioria republicana por algumas décadas

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30 de dezembro de 2018, 9h22

Nos Estados Unidos, cerca de um terço dos eleitores se declara “liberal”, associado ao Partido Democrata; cerca de um terço se declara “conservador”, ligado ao Partido Republicano; e cerca de um terço é constituído de eleitores “independentes”, “moderados”, “progressistas” ou, simplesmente, “desinteressados”.

O último terço decide as eleições. Os progressistas estão um pouco à esquerda dos democratas. Prefeririam votar em um partido de esquerda, mas, como eles sequer aparecem nas estatísticas eleitorais, optam pelo voto útil. Os moderados estão no centro, com uma queda pelo conservadorismo. Os independentes são os que estão em cima do muro e constituem o maior objeto do desejo de democratas e republicanos nas campanhas eleitorais. Os desinteressados são os que não sabem o que fazem, como em todos os lugares.

Historicamente, o país sempre teve maioria conservadora-republicana. Mas a ideologia conservadora-republicana vem perdendo espaço para a ideologia liberal-democrata consistentemente nos últimos anos.

O avanço dos liberais cria a ideia de que é só questão de tempo para os EUA se tornarem um país liberal-democrata. Mas essa é uma ideia falsa. Quem configura a cara ideológica do país não são os políticos, nem os eleitores. São os tribunais – especialmente os tribunais federais. Afinal, são os juízes que vão decidir as grandes disputas entre liberais e conservadores.

Nesse contexto, o presidente Donald Trump já realizou a grande obra de seu governo. Não importa para que viés ideológico a população dos EUA venha a pender – e tudo indica que será liberal-democrata – as cortes terão maioria conservadora-republicana por décadas.

O presidente, apoiado por um Senado com maioria republicana, está concretizando o sonho do partido: o “empacotamento das cortes” (court packing) com juízes conservadores-republicanos. Em menos de dois anos de governo, Trump nomeou 84 juízes federais: dois para a Suprema Corte, 30 para tribunais de recursos e 53 para tribunais federais de primeiro grau.

Além deles, Trump já indicou mais 70 juízes, que esperam confirmação pelo Senado: 12 para tribunais federais de recursos, 56 para tribunais de primeiro grau e dois para o tribunal de comércio internacional. Todos os juízes federais têm mandato vitalício – ou seja, só deixam o cargo por aposentadoria voluntária ou morte. A maioria está na faixa dos 40 anos, alguns menos que isso. Isto é, eles têm pelo menos três ou quatro décadas pela frente nos tribunais.

A primeira impressão é a de que os ministros da Suprema Corte são os mais decisivos, quando se trata de configurar a ideologia política do país. Na verdade, eles são decisivos, mas só julgam cerca de 100 processos por ano. E no caso de milhares de processos que eles decidem não julgar, prevalecem as decisões dos tribunais de recursos. Então são os juízes desses tribunais que decidem os rumos que o país vai tomar, em grande parte.

E o que acontece? Por exemplo, os liberais-democratas são favoráveis a programas sociais bancados pelo governo, como o Obamacare, o seguro-saúde de quem não pode pagar uma companhia de seguros privada. Os conservadores-republicanos são contrários a programas sociais, como o Obamacare, porque pensam que cada indivíduo deve cuidar de si mesmo – e não o estado.

Trump tentou acabar com o Obamacare, o que era uma de suas promessas de campanha. Mas o Congresso, apesar de ter maioria republicana nas duas Casas, não entrou nesse barco, porque faltavam votos. Muitos parlamentares republicanos consultaram suas bases e ouviram que não seriam reeleitos se votassem contra o Obamacare.

Alternativamente, alguns estados republicanos moveram uma ação em um tribunal do Texas, onde um juiz conservador decidiu que a lei que criou o Obamacare é inconstitucional. Agora o recurso vai para o 5º Tribunal Regional de Recursos, que é o tribunal mais conservador do país. O resultado será o esperado: o tribunal vai manter a decisão de primeiro grau.

O caso irá então para a Suprema Corte. Teoricamente, isso será o fim do programa social mais apreciado e necessário do país, porque a corte suprema tem cinco ministros conservadores e quatro liberais. Mas não são favas contadas. O presidente da Suprema Corte, ministro John Roberts, já votou a favor da lei do Obamacare em 2012. Poderá votar fazer isso outra vez.

A questão que mais divide o país é o aborto. Entre os dois lados, a metade republicana quer um país “pro-life” (pró-vida ou contra o aborto). A metade democrata quer um país “pro-choice” (pró-escolha da mulher ou a favor do aborto). Atualmente, o aborto é legal. Mas, com juízes conservadores em toda a linha de produção de decisões judiciais, os liberais temem que a legalidade do aborto pode ter vida curta – e, depois, assim permanecer por décadas.

O mesmo raciocínio vale para os direitos dos LGBT. Com uma grande base cristã, os conservadores-republicanos querem um país que proíba o casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como o alistamento de gays e transgêneros nas Forças Armadas. Os liberais-democratas querem um país que reconheça a igualdade entre todos, independentemente de sexo, identidade sexual, etc.

Pode-se esperar que o casamento gay voltará a ser disputado nos tribunais federais a qualquer tempo. Além disso, os republicanos também continuarão a defender o direito de organizações cristãs de não incluírem cobertura a métodos contraceptivos no seguro-saúde que oferecem a seus empregados. E o direito de um confeiteiro de não fazer um bolo de casamento para um casal gay. As duas disputas já terminaram na Suprema Corte, com vitória para os conservadores.

Os republicanos querem um país totalmente a favor das grandes empresas, porque elas movimentam a economia e criam empregos. Os democratas querem um país a favor dos trabalhadores e dos consumidores – e também das pequenas empresas. Esse é um conflito repetitivo, que frequentemente beneficia as grandes empresas nos tribunais com maioria conservadora.

Os democratas querem uma país em que as grandes empresas, os milionários, bilionários e os grandes investidores do mercado financeiros paguem mais impostos de renda, para financiar programas sociais, como saúde e educação gratuita para todos. Esse é um país com o qual os republicanos não querem nem sonhar. Nenhum dos dois lados, no entanto, quer abandonar o capitalismo.

Os republicanos querem um país em que criminosos sejam retirados da sociedade para sempre, se possível. Os políticos que adotam a linha dura no combate ao crime garantem os votos dos conservadores. Os democratas querem um país que adote penas mais proporcionais aos crimes e, principalmente, invista em recuperação dos prisioneiros.

Os democratas querem um país sem pena de morte. Os republicanos querem mantê-la. Os estados democratas eliminaram a pena de morte – ou suspenderam as execuções – diferentemente dos estados republicanos. O Texas, um dos estados mais republicanos do país executou mais prisioneiros em 2018 do que todos os demais estados combinados. Foram 25 execuções, 13 das quais no Texas.

Os democratas querem um país que respeite o meio ambiente, faça parte do Acordo de Paris, invista em energia renovável, etc. Os republicanos, liderados por Trump, preferiram retirar o país do Acordo. Em vez de investir de energia renovável, preferem investir na produção de carvão mineral e exploração de petróleo. E discursam que a mudança do clima é uma balela científica, que só pode prejudicar as empresas e a economia do país.

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