Observatório Constitucional

Constitucionalismo Feminista ressoa no Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Christine Peter da Silva

    é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília professora titular de Direito Constitucional do UniCeub-DF e secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral.

29 de dezembro de 2018, 7h00

Ainda não são abundantes, nem muito menos as mais relevantes, mas já é possível apontar um conjunto de decisões que ressoa a hermenêutica feminista no Supremo Tribunal Federal.[1] A mais ilustre dessas decisões foi certificada, neste ano de 2018, pelo Comitê Nacional Brasileiro do Programa Memória do Mundo da Unesco como patrimônio documental da humanidade.Trata-se da decisão proferida, conjuntamente, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277, sob a relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, a qual, em trabalhos anteriores, tenho indicado como um marco do constitucionalismo feminista entre nós.[2]

O tema escolhido para minha contribuição, nesta coluna do Observatório Constitucional, fechando a série de artigos de 2018, cinge-se aos reflexos do constitucionalismo feminista, e, consequentemente, de sua respectiva hermenêutica feminista, em três decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, neste ano que se encerra.

Refiro-me às ADI 4.275/DF, ADI 5.617/DF e ao RE 1.058.333/PR cujas decisões discutiram, respectivamente, o direito à mudança do registro civil independentemente da cirurgia de transgenitalização; o direito ao financiamento de campanhas político-partidárias na mesma proporção da quota mínima de apresentação das candidaturas femininas; e o direito ao adiamento da prova de esforço físico para candidatas gestantes.

A expressão constitucionalismo feminista tem sido usada tanto no Brasil[3], quanto em outros países[4], por autoras que defendem a perspectiva de gênero como um método integral que indica e dá destaque para aspectos que o Direito Constitucional Contemporâneo sombreia ou até mesmo exclui e marginaliza. Trata-se, portanto, de uma postura hermenêutica do constitucionalismo inclusivo, ou seja, de um modo de lidar com os problemas jurídico-constitucionais típicos a partir de uma visão plural, aberta e tolerante.

A minha reflexão tem sido construída a partir de uma compreensão de constitucionalismo que relaciona humanismo e feminismo de forma radical. Tenho plena ciência e consciência de que ambos os movimentos são abastecidos pelas mesmas fontes históricas e culturais, bem como de que tais movimentos são desafiados pelos mesmos interlocutores oponentes. Muito embora a pauta humanista possa ser considerada mais abrangente do que a pauta feminista, em termos mais estreitos de pontuação histórica, a luta desses movimentos, nos últimos dois séculos, atesta muito mais interseções do que oposições, muito mais perpendiculares do que paralelos.

Nessa toada, é preciso dizer que a hermenêutica é uma expressão que designa o cuidado que o sujeito tem consigo mesmo a ponto de compreender o mundo a partir da consciência e respeito com o seu eu em si.[5] Assim, a hermenêutica constitucional feminista pressupõe que cada mulher, seja qual for seu sexo biológico de nascimento ou sua opção sexual, possa expressar-se como ser humano dotado de direitos e deveres fundamentais a partir de seus próprios e indissociáveis lugares de fala.

A ideia do coletivo feminino e dos valores do feminino são apresentados como vias legítimas para as vivências na estrutura política e social. O feminismo cultural[6] aponta a ética do cuidado, dos afetos e da alteridade como alternativas aos paradigmas do individualismo, agressividade e competitividade (escassez). No plano dos vetores constitucionais hermenêuticos surgem a sustentabilidade, a fraternidade e a solidariedade (abundância) como princípios constitucionais expressos ou implícitos.

O constitucionalismo feminista, como meio e possibilidade da hermenêutica feminista de compreender e interpretar o Direito e a Constituição, do lugar de fala do feminino, em toda a sua mais ampla acepção, consiste em: identificar e desafiar os elementos da dogmática jurídica que discriminam por gênero, raciocinar a partir de um referencial teórico segundo o qual as normas jurídicas e constitucionais são respostas pragmáticas para dilemas concretos das mulheres reais, mais do que escolhas estáticas entre sujeitos opostos ou pensamentos divergentes.

Com isso, almeja-se aumentar as possibilidades de colaboração entre diversas visões e experiências vivenciadas tanto por homens quanto por mulheres engajadas e comprometidas com esse novo caminho[7]. Não há, portanto, pré-compreensões dogmáticas ou estáticas nesse universo em movimento. A igualdade, respeito e consideração recíprocas passam a ser as condições de possibilidade de todas as formas de pensar e de agir, de ser e de estar no mundo, mundo este expandido para além do binarismo do sexo biológico: feminino e masculino.

Não se pode deixar de registrar, como premissa teórica importante do constitucionalismo feminista, a correspondência, ainda que anacrônica, entre as dimensões dos direitos fundamentais e as ondas feministas.

O termo ‘ondas do feminismo’ tem sido utilizado para estabelecer o critério temporal das lutas e conquistas das mulheres por igualdade de gênero e reconhecimento equânime de direitos fundamentais ao longo da história, sendo um conceito amplamente conhecido pela comunidade feminista mundial, tendo sido criado pela escritora Martha Weinman Lear, no ano de 1968, quando escreveu um artigo chamado “A Segunda Onda do Feminismo”, no jornal americano “The New York Times Magazine”.

A primeira onda do feminismo surgiu em meados do século XIX e início do século XX, há mais de um século e meio. Foi o marco inicial das grandes conquistas dos direitos das mulheres em busca igualdade com os direitos reconhecidos aos homens.[8] Nessa época, as mulheres buscavam o reconhecimento e a normatização dos direitos individuais de primeira dimensão, ou seja, os direitos civis e políticos.

Direitos que já eram garantidos aos homens dessa época passaram a ser pautas de reivindicação das mulheres. O direito à igualdade de direitos entre homens e mulheres foi impulsionado por meio de lutas das mulheres que buscavam, principalmente, o direito à cidadania. Assim, a luta das sufragistas (suffragettes)[9] foi primordial para a conquista do direito individual ao voto das mulheres.

Com a primeira onda feminista entre os séculos XIX e XX, as mulheres conquistaram o direito ao voto, os direitos relacionados à propriedade privada e conseguiram condições mais justas no ambiente de trabalho, porém, ainda continuavam recebendo menos que os homens. Essas conquistas não foram suficientes, pois havia ainda muitos direitos a serem consolidados, para o objetivo maior de ver garantida a igualdade de gênero. Com isso, surgiu em 1960, a segunda onda feminista, que buscava o direito à não-discriminação por gênero. Porém, esse momento da história era conturbado por guerras (guerra do Vietnã), militarismo e ditadura. O Brasil passava pela ditadura militar.

Não obstante ser um período muito difícil, houve atuações dos movimentos feministas em busca de liberdade sexual. Na época, surgiu o anticoncepcional feminino. Porém, notou-se que ele era prejudicial à mulher. Além disso, com a publicação do livro ‘A Mística Feminista’ da francesa Betty Friedan, em 1963, que descrevia a vida das mulheres que eram donas de casa, passou-se a questionar os espaços de atuação da mulher na sociedade.

Uma vida que a mídia apresentava como maravilhosa, com propagandas apresentando mulheres felizes e sorridentes, vestidas com avental e cuidando de seus filhos e maridos, de um lado, e de outro lado, o livro da escritora francesa contava a realidade dessas mulheres, e deixou claro, a partir de seus depoimentos, que não estavam felizes com suas vidas como mulheres do lar. Esse senso comum de infelicidade despertou o interesse das mulheres ao redor do mundo a ir ao encontro de uma vida melhor através da busca por direitos iguais.[10]

A segunda onda envolveu aspectos mais amplos do que a primeira onda propunha, pois, além de promover a luta pela igualdade e a não discriminação de gênero, foi acrescida a luta pela liberdade de ser mulher, liberdade sexual, ampliação de direitos no trabalho, dentre outros. Assim a mulher deu mais um passo para atingir a igualdade de gênero.

Por fim, a terceira e última onda do feminismo está em vigor nos dias atuais. Como vimos, a segunda onda ocorreu entre os anos 60 e 70, durou por um período mais curto que a primeira, que permaneceu por aproximadamente um século. Já a terceira onda iniciou nos anos 80 e prevalece até os dias atuais. O movimento contemporâneo busca a concretização dos direitos formalmente consolidados (igualdade e liberdade), mas também busca direitos que abrangem a sociedade como um todo. A terceira onda retira do seu foco central a esfera individual para enfatizar toda a coletividade. Busca-se os direitos transindividuais, ou seja, direitos difusos que atingem as mulheres em todos os lugares, tanto na esfera pública como privada.

Na perspectiva difusa, os direitos fundamentais de terceira dimensão encontram na inclusão social e digital, na sustentabilidade do progresso com respeito ao meio ambiente, no respeito às sociedades consumidoras e aos direitos de minorias políticas e sociais, nos direitos às diversas formas de tolerâncias, no pluralismo, nas resolução pacífica de conflitos, dentre outros, o ambiente dogmático comum para dividir o palco das discussões sobre as interseccionalidades do movimento feminista, em sua terceira onda.

Nesse contexto, é de se analisar as três decisões do Supremo
Tribunal Federal, proferidas em 2018, que mais se destacaram nessa temática, envolvendo o Plenário da Suprema Corte numa discussão típica do constitucionalismo feminista. Trata-se das ações diretas de inconstitucionalidade 4.275/DF e 5.617/DF e do recurso extraordinário 1.058.333/PR.

Na ADI 4.275/DF, discutia-se o direito de indivíduos transgêneros, que assim o desejassem, à substituição do prenome e sexo diretamente no registro civil, independentemente da cirurgia de transgenitalização ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes. A decisão autorizou a alteração do registro civil de pessoa transgênero diretamente pela via administrativa, sem qualquer condição prévia. Esta decisão foi confirmada no julgamento do recurso extraordinário 670.422, com repercussão geral, firmando-se a seguinte tese: “1 – O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa.2 – Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”.3 – Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial.4 – Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.”

No julgamento da ADI 5.617/DF, a decisão sobre a obrigatoriedade de aplicar-se no mínimo 30% dos recursos do fundo partidário no financiamento das campanhas eleitorais das mulheres foi também tomada por maioria. Os argumentos do voto vencedor foram principalmente no sentido de que os recursos públicos devem ser aplicados de forma a não reforçar uma discriminação histórica sofrida pelas mulheres nas disputas eleitorais. Afirmou-se que não eram consentâneos com a Constituição da República de 1988 os limites e os prazos estabelecidos pela legislação eleitoral, relembrando o dever e o compromisso dos partidos políticos com a participação política das mulheres para a consolidação da democracia brasileira. Assim ficou expresso na ementa do julgado: “A autonomia partidária não consagra regra que exima o partidodo respeito incondicional aos direitos fundamentais, pois é precisamentena artificiosa segmentação entre o público e o privado que reside aprincipal forma de discriminação das mulheres.”

Finalmente, o recurso extraordinário 1.058.333permitiu ao Supremo Tribunal declarar o direito das mulheres candidatas gestantes de remarcarem a prova de aptidão física nos certames de que participa, independentemente de previsão expressa no respectivo edital. O relator do feito, Ministro Luiz Fux, afirmou que “Por ter o constituinte estabelecido expressamente a proteção à maternidade, à família e ao planejamento familiar, a condição de gestante goza de proteção constitucional reforçada. Em razão deste amparo constitucional específico, a gravidez não pode causar prejuízo às candidatas, sob pena de malferir os princípios da isonomia e da razoabilidade. (…) Instituído expressamente como um direito social, a proteção à maternidade impede que a gravidez seja motivo para fundamentar qualquer ato administrativo contrário ao interesse da gestante, ainda mais quando tal ato impõe-lhe grave prejuízo”.

Assim sendo, verifica-se que já há um olhar, ainda que pontual, no Supremo Tribunal Federal, acerca das questões que são debatidas no constitucionalismo feminista, o qual tem como premissa central o direcionamento da concretização jurídico-constitucional comprometida, em todos os âmbitos possíveis, com a igualdade de gênero no Estado Democrático de Direito.


[1] A lista mais completa de decisões do Supremo Tribunal Federal selecionadas com esse recorte pode ser encontrada em: SILVA, Christine Peter da. Teoria Feminina da Constituição, in LEITE, George; NOVELINO, Marcelo; ROCHA, Lilian Rose. Liberdade e Fraternidade – A contribuição de Ayres Britto para o Direito. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 655-677.

[2] Para ilustrar minha análise crítica da referida decisão vide: SILVA, Christine Peter da. Teoria Feminina da Constituição, in LEITE, George; NOVELINO, Marcelo; ROCHA, Lilian Rose. Liberdade e Fraternidade – A contribuição de Ayres Britto para o Direito. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 669.

[3] Por todas vide: SILVA, Cristina Telles de Araújo. Por um constitucionalismo feminista: reflexões sobre o direito à igualdade de gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.

[4] Consulte-se o primoroso trabalho de MONTAÑEZ, Nilda Garay. Constitucionalismo feminista: evolución de losderechosfundamentalesenel constitucionalismo oficial, in Estudiosenhomenaje a la professora Julia Sevilia Merino. Disponível em: http://feministasconstitucional.org/wp-content/uploads/2016/07/00_Igualdad_y_democracia_llibre_homenatge_JS-1.pdf Acessado em 20.12.2018

[5] Aqui a influência de Michel Foucault é inegável: FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[6] Sobre feminismo cultural vide: ALCOFF,Linda. Feminismo cultural vs. Post-estructuralismo: lacrisis de identidade de la teoria feminista, in Revista Debats, nº 76, p. 3-7.

[7] BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, Boston: 1990, p. 833.

[8]MARCELINO, Giovanna Henrique. ESPECIAL JUNTAS: As sufragistas e a primeira onda do feminismo, 2016. Disponível em: <https://juntos.org.br/2016/01/especial-juntas-as-sufragistas-e-a-primeira-onda-do-feminismo/>. Acesso em: 10 de jun. 2018.

[9] NÓBREGA, Mariana. Pandora Livre: Quem foram as suffragettes?, 2015. Disponível em: http://pandoralivre.com.br/2015/12/25/quem-foram-as-suffragettes/. Acesso em: 30 abr. 2018.

[10] CONSOLIM, Veronica Homsi. Segunda onda feminista: desigualdade, discriminação e política das mulheres, 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/14/segunda-onda-feminista-desigualdades-culturais-discriminacao-e-politicas-das-mulheres/>. Acesso em: 11 de mai. 2018.

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