Diário de classe

Juristas e a construção dos Atos Institucionais da Ditadura Militar

Autores

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Giancarlo Montagner Copelli

    é professor doutor pelo programa de pós-graduação da Escola de Direito da Unisinos-RS e atualmente em estágio pós-doutoral com financiamento Fapes na FDV.

29 de dezembro de 2018, 7h00

No século XIX, Alexis de Tocqueville já anunciava uma importante observação a respeito da relação entre juristas e regimes despóticos. Segundo ele, “[…] ao lado de um déspota que manda, encontra-se quase sempre um legista que regula e coordena as vontades arbitrárias e incoerentes do primeiro. […] Os primeiros sabem como obrigar os homens a obedecer momentaneamente; os segundos possuem a arte de forçá-los quase voluntariamente a uma obediência duradoura”. Nesse sentido, sem o trabalho dos juristas na construção de uma legalidade autoritária e instrumental[1], o déspota mais violento não consegue institucionalizar seu regime de exceção baseado na suspensão das liberdades fundamentais.

Muitas vezes essa situação passa despercebida no Brasil. Um dos motivos para o esquecimento é a pouca vontade da comunidade jurídica em revisitar alguns momentos sombrios da sua própria trajetória, prevalecendo assim uma memória oficial – estabelecida pelo bacharelismo tradicional – pela qual todos os grandes nomes do Direito acabam descritos como verdadeiros baluartes da democracia. É como se a criação dos principais instrumentos normativos, de todas as nossas ditaduras, fosse obra do acaso, e a comunidade jurídica não tivesse qualquer responsabilidade na sua elaboração.

Algumas semanas atrás, mais precisamente no dia 13 de dezembro, o país relembrou uma passagem nada honrosa da sua história. O Ato Institucional nº 5 comemorou cinquenta anos. Aprovado numa sexta-feira 13 por todos os ministros do governo do marechal Costa e Silva, com a exceção do voto contrário do então vice-presidente Pedro Aleixo, a Ditadura Militar decidiu aprofundar as bases legais de seu autoritarismo político e jurídico. Nesse sentido, ao contrário do que muitos propagam por aí, o Ato Institucional nº 5 não foi um golpe dentro do golpe. Na verdade a ampliação da violência política e da repressão promovida por ele era coerente com o que o golpe civil-militar iniciara nos primeiros dias de instalação da ditadura.

Vejamos alguns dados importantes: do ponto de vista da elaboração de uma engenharia constitucional autoritária, o primeiro governo militar editou três Atos Institucionais; o Decreto-Lei de Segurança Nacional (nº 314, de 13 de março de 1967); a Lei de Imprensa (nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967); criou o Serviço Nacional de Informação (Lei nº 4.341, de 13 de junho 1964); e outorgou a Constituição de 1967. Além disso, é importante registrar que, das 5.517 pessoas atingidas pelos Atos Institucionais, 3.644 (65%) foram atingidas durante o governo do marechal Castello Branco; e que 90% das 1.230 sanções feitas a militares também ocorreram em seu governo ditatorial [2]. Desse modo, é possível perceber que o Ato Institucional nº 5 não foi um ponto fora da curva, mas sim um instrumento autoritário coerente com o padrão jurídico estabelecido logo após a derrubada de João Goulart.

O Ato Institucional foi o principal instrumento normativo da Ditadura. Após a Constituição de 1946 ter sido rasgada pelo golpe civil-militar, os juristas Francisco Campos e Carlos Medeiros Silva definiram, por meio do Ato Institucional nº 1, que a “revolução” vitoriosa havia se autoinvestido na condição de Poder Constituinte. Por meio desse instrumento legal, os dois juristas elaboraram uma legalidade instrumental subordinada aos interesses do poder estabelecido.

Não era a primeira vez que Francisco Campos e Medeiros Silva cumpriam esse tipo de papel. O vínculo com ideias autoritárias sempre esteve presente em suas carreiras. Em 1937, já haviam colaborado com a formulação da famosa Constituição do Estado Novo. Temas como Estado de Direito, limitação do poder, liberdades fundamentais, separação de Poderes, etc., nunca fizeram parte de suas preocupações políticas e jurídicas.

O mesmo podemos dizer de Gama e Silva, ministro da Justiça do marechal-presidente Costa e Silva e responsável pela redação do Ato Institucional nº 5. Professor catedrático de direito internacional privado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Gama e Silva já tinha demonstrado seu vínculo com práticas autoritárias no período em que exerceu a reitoria da Universidade de São Paulo, ao elaborar uma lista de 44 professores que deveriam ser afastados por motivos ideológicos. No documento, Gama e Silva afirmava “serem realmente impressionantes as infiltrações de ideias marxistas nos vários setores universitários, cumprindo sejam afastados daí os seus doutrinadores e os agentes dos processos subversivos” [3].

A conduta autoritária que Gama e Silva adotou como reitor da USP não foi diferente da conduta adotada no dia 13 de dezembro de 1968 como ministro da Justiça. Sempre avesso ao Estado de Direito, Gama e Silva se apresentou para a reunião do Conselho de Segurança Nacional, no palácio Laranjeiras, com propósitos mais extremistas do que as reais intenções do governo. Antes de apresentar o projeto responsável pela criação do Ato Institucional nº 5, o jurista Gama e Silva ofereceu um projeto que propunha o recesso do STF e o fechamento definitivo do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais. Diante de tal radicalismo, até o general Lyra Tavares – ministro do Exército – reagiu de forma negativa ao primeiro projeto, ao comentar diante dos demais membros do Conselho, “assim, não, Gama; assim você desarruma a casa toda” [4]. Somente após a recusa do primeiro texto, Gama e Silva então ofereceu à Ditadura o projeto considerado “menos drástico” pelo governo.

A aversão de Francisco Campos, Medeiros Silva e Gama e Silva pela democracia nunca foi segredo para ninguém. Os três sequer faziam questão de disfarçar suas posições autoritárias. O interessante é observar as movimentações dos juristas liberais – anteriormente vinculados à UDN – em relação a eles. A fina flor do liberalismo havia se destacado na oposição ao Estado Novo, como era o caso do vice-presidente Pedro Aleixo, mas, em 31 de março de 1964, decidiu atropelar a Constituição de 1946 em nome da guerra contra as reformas de base. Na concepção política dos juristas liberais, era melhor se arriscar com uma Ditadura Militar, do que, por exemplo, ver o governo ampliar a participação política das massas por meio do voto dos analfabetos. Democracia e ampliação da participação política popular eram dois temas inconciliáveis na agenda do bacharelismo liberal.

Pedro Aleixo foi um dos juristas liberais – como Afonso Arinos, Adauto Lúcio Cardoso, etc. – que ajudou a abrir as portas do inferno e depois passou a demonstrar preocupação diante da ampliação das medidas autoritárias tomadas pela Ditadura. Aleixo foi o único voto contrário ao Ato Institucional nº 5 por entender que o regime estava indo longe demais nas medidas autoritárias. Acabou descartado pelos militares em outubro de 1969, por meio do Ato Institucional nº 12, logo após Costa e Silva deixar a presidência da República devido a um acidente vascular cerebral. Mesmo na condição de vice-presidente, Aleixo foi impedido pelos militares de tomar posse.

Cinquenta anos depois daquela sexta-feira 13 de 1968, é prudente não perder de vista o que foi o Ato Institucional nº 05 e qual a responsabilidade da comunidade jurídica na sua confecção. Afinal de contas, a quem ainda hoje acredita que “a saída para o Brasil tomar jeito, ordem e prumo é uma nova ditadura militar, nada como lembrar a nossa história”, diria, com razão, Lilia Schwarcz[5]. Neste dezembro, quando cinco décadas do Ato Institucional mais conhecido do período em que os militares estiveram no poder se acumulam, é oportuno ter claro: diferente do slogan do “Socing” de George Orwell[6], no fascinante “1984”, “guerra não é paz”.

Em miúdos, o que queremos dizer é que a tortura de cerca de 20 mil brasileiros, os mais de 400 mortos ou dados como desaparecidos, os aproximadamente 800 julgados como presos políticos e os cerca de sete mil exilados não colocaram o “Brasil no prumo”. Ao contrário. Essa simplificação serviu apenas para eliminarmos a oposição política e, com ela, o conflito que permeia – ou deve permear – toda sociedade dita democrática [7].


[1]Para uma crítica contundente a todo tipo de instrumentalização do Direito pela política, ver toda a obra de Lenio Streck e suas colunas no Conjur.

[2] NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p. 73.

[3] GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. 2ª ed., Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, v. 1, p. 223.

[4] VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 272.

[5] SCHWARCZ, Lilia. Os 50 anos do AI-5. Lembrar para não esquecer. Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2018/Os-50-anos-do-AI-5.-Lembrar-para-n%C3%A3o-esquecer. Acesso em: 04.12.2018.

[6] ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre Hubner e Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

[7]Mouffe. MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Política & Sociedade, v. 2, n. 3, p. 11-26, 2003. Disponível em: http://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/31137981/2015-5733-1-PB.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1495808761&Signature=kqFWsZVhSfuvV3jJuXbWQToYjEQ%3D&response-content-disposition=inline%3B%20filename%3DDemocracia_cidadania_ea_questao_do_plura.pdf. Acesso em: 22.03. 2017. MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. Dossiê democracias e autoritarismos. Revista de Sociologia e Política, v. 11, n. 25, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n25/31108. Acesso em: 22.mai.2017.

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