Opinião

As intersecções entre Brasil e Israel, no passado e no presente

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

29 de dezembro de 2018, 14h12

Encontros, separações e reencontros. A vida é feita disso. Um ciclo se encerra para que outro tenha início. Como o símbolo do taoismo Yin Yang, no qual a luz cede espaço para a escuridão, e esta abre caminho para aquela, a história dos povos também é assim, incluindo, nesse movimento, a história das nações.

O Brasil é um país de mais de 210 milhões de habitantes. É majoritariamente negro, apesar desse fato vergonhosamente não ser sentido nas plataformas do poder ou nos espaços da elite nacional. Ainda assim, a força africana está em nós. Há reverberações incontestáveis em nossa música, literatura, gastronomia, arte,hábitos, na própria língua portuguesa e na postura dos brasileiros diante da vida.

Vem da negritude – termo de Frantz Fanon, inspirado em Leopold Senghor e Aimé Césaire – o elemento fundamental da nossa alma coletiva, que é a “ginga”, uma palavra que não encontra tradução para outras línguas. É a herança dos ancestrais africanos.

Um episódio ajuda a explicar o que é ginga. Pelé, em 1958, foi persuadido a jogar imitando os europeus. Sabiamente recusou. Percebeu que quando insistia nessa imitação infeliz não conseguia deixar nos campos a marca de todo o seu talento.

Contrariando a orientação inicial do seu treinador, Pelé apresentou nos campos um futebol que não era força, mas beleza; não era competição, era arte; não era técnica, era paixão; não era somente disciplina, mas uma combinação entre ritmo e alegria. O Rei jogou com ginga e ganhou, ao lado dos companheiros, a Copa do Mundo.

A ginga é isso, fazer o que tem que ser feito, mas com imaginação, certa dose de sensualidade, ritmo e alegria. Dotar o que se faz de uma graça natural a nossa gente, mas difícil de ser encontrada, na mesma intensidade, em outros lugares do mundo. Léopold Sédar Senghor disse que, se a razão é europeia, a emoção é africana. Disse tudo.

Agora, quando as cortinas de 2018 se fecham, o Brasil recebe o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Foram 70 anos de espera.

Em 1948, judeus em todo o mundo se aglomeravam em praças e ruas, vilas e vilarejos, em suas casas ou no meio do povo, diante de sinagogas ou do lado de fora das bibliotecas. Esperavam o desfecho da reunião da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Viria de lá a chance de retorno do povo judeu ao seu lar.

No assento que presidia a sessão estava o brasileiro Oswaldo Aranha. Não era apenas uma pessoa que, por dever regimental, sentou numa cadeira. Aranha se engajou num xadrez diplomático profundamente complexo. Fez com ginga. E venceu.

Na autobiografia No Room for Small Dreams, o líder israelense Shimon Peres, Nobel da Paz, recorda o momento. “Nós podíamos ouvir Oswaldo Aranha, o presidente da Assembleia Geral, chamando para a votação da resolução. Nós ouvíamos com toda a atenção, ao lado de comunidades judaicas de todo o mundo”.

Logo, o aperto de mão dos dois líderes – Jair Bolsonaro e Benjamin Netanyahu -, visto historicamente, é a forma institucionalmente apropriada, diplomaticamente adequada e democraticamente legitimada de promover um reencontro necessário.

E, se do lado de cá há ginga, do lado de lá há a Chutzpah. A palavra Iídiche expressa a qualidade da audácia, um atrevimento diante da vida. Dan Senor e Saul Singer, na obra Start-up Nation, anotam: “assertividade, não insolência; pensamento crítico independente, não insubordinação; ambição e visão, não arrogância”.

Quando cruza a linha, a Chutzpah pode se transformar em prepotência, assim como a ginga, quando deformada, vira jeitinho. O segredo está na medida.

A Ginga nos permite seguir amando o Brasil e nos reinventando aqui. Há um elemento de patriotismo nela. Com a Chutzpah também. Shimon Peres, mais uma vez,ilustrou bem: “Para um Estado de menos de dois milhões de pessoas, a ideia de se colocar ombro a ombro com as maiores potências do mundo demandava ‘chutzpah’. Não podíamos ser vistos como meros vassalos, mas, sim, como um Estado soberano”.

70 anos se passaram. Aconteceu em 2018. Benjamin Netanyahu não é Ben-Gurion nem Jair Bolsonaro é Oswaldo Aranha. Mas o Brasil segue sendo o Brasil, assim como Israel persiste, corajosamente, no seu caminho. É o que basta.

Encontros, separações e reencontros. Como dito no começo, a vida é feita disso. Que a troca de gentilezas institucional se converta em políticas concretas e esses países possam reviver a alegria do povo judeu,em 1948, dançando e cantando nas ruas, enquanto Oswaldo Aranha se levantava do seu assento certo de que, com doses de Ginga e Chutzpah, ajudou a abrir caminho para o triunfo do que parecia impossível.

Autores

  • Brave

    é advogado do Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia. É doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP. Foi clerk na Corte Constitucional da África do Sul.

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