Opinião

A repatriação de ativos e a prova da origem

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26 de dezembro de 2018, 7h18

Vamos aos fatos: visando estimular a regularização de ativos remetidos não oficialmente ao exterior, bem como interessado em otimizar o resultado fiscal em época de crise, o governo federal instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct), materializado na Lei 13.254/2016. Em linhas gerais, a medida foi executada com êxito, resultando aos cofres públicos uma arrecadação de aproximadamente R$ 50 bilhões. Esperava-se, assim, que a vida fosse seguir em frente com o capital repatriado gerando novos negócios, empregos, oportunidades, caminhos de desenvolvimento e retomada da economia nacional.

Acontece que a Receita Federal resolveu querer mexer no passado. Através do Ato Declaratório Interpretativo 5, de 4 de dezembro de 2018, foram modificados alguns itens do orientação normativa vigente para prever a possibilidade de intimação do contribuinte para apresentação de “comprovação sobre a origem lícita dos recursos regularizados”. Tal inovação vem ganhando substancial repercussão na comunidade jurídica, chegando ao ponto de alguns qualificarem a novidade como um gesto de deslealdade fiscalizatória.

Ora, de nossa parte, não adentraremos no calor dos argumentos emocionais, centrando a análise nos aspectos objetivos e materiais da lei. E o primeiro ponto a ser salientado é que a Declaração de Regularização Cambial e Tributária (Dercat) deve conter informações sobre a “titularidade e origem” dos recursos, bens ou direitos a serem regularizados (artigo 4º, §1º, II, da Lei 13.254/2016), estando previsto, em regra expressa, que “declarações ou documentos falsos” poderão ensejar a exclusão do contribuinte do Rerct (artigo 9º). Portanto, não há qualquer anomalia extravagante em eventual iniciativa da Receita para buscar esclarecer dúvidas ou nebulosidades sobre os dados e documentos recebidos.

Agora, uma vez devidamente intimado, cabe ao contribuinte avaliar se deve, ou não, pronunciar-se sobre a pretensão da administração tributante.

Objetivamente, nos termos da lei, feita a declaração (Decart) e quitada a integralidade da obrigação fiscal, há uma automática extinção da punibilidade e a consequente presunção de fiel regularidade jurídica do contribuinte (artigo 5º). O pagamento, além de traduzir potencial ato jurídico perfeito, importa “confissão irrevogável e irretratável em nome do sujeito passivo”, impondo “aceitação plena e irretratável de todas as condições estabelecidas nesta Lei” (artigo 6º, §8º). Como se vê, o pagamento do tributo encerra o dever jurídico do contribuinte. Ou seja, o ônus probatório de eventual inexatidão no processo de repatriação de valores é exclusivo da Receita federal; trata-se de uma competência pública, indelegável e intransferível, do poder fiscalizador.

Sem cortinas, a tentativa de querer inverter a ordem probatória traduz manobra despida de qualquer suporte constitucional.

Sabidamente, à luz da garantia fundamental da presunção de inocência, ninguém é obrigado a produzir prova contra si próprio. A jurisprudência sobre o ponto é farta e copiosa. Em precedente paradigmático, o Supremo Tribunal Federal, exaltando a máxima de que “o ônus da prova incumbe, exclusivamente, a quem acusa”, bem afirmou que “já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência” (D.J. 176, 17.09.2009).

Dessa forma, resta claro que o referido Ato Declaratório Interpretativo 5/2018 possui um inegável traço arbitrário, sendo, por consequência, incompatível com o Estado de Direito (artigo 1º, CF/88). O moderno devido processo legal — seja em sua dimensão administrativa ou judicial — impõe o equilíbrio de forças e a paridade de armas entre as partes contrapostas, fulminando por inconstitucionalidade toda e qualquer sobreposição estatal sobre os cidadãos e as empresas.

Sim, o Direito jamais pode se apartar da realidade, pois o Poder sempre quer mais, mesmo quando não pode. E, quando o Poder pode tudo, é sinal de que a lei virou nada.

Apesar de inúmeros avanços sancionatórios, começam a surgir, aqui e acolá, sintomas de um perigoso ímpeto acusatório desmedido. Naturalmente, não se questiona o dever do Estado de combater o crime organizado e suas sombrias estruturas de lavagem de dinheiro. Aliás, não haverá decência pública enquanto a impunidade dos poderosos prevalecer festivamente. Todavia, a busca de um bem público superior não pode significar o aniquilamento de franquias constitucionais inegociáveis, pois não se pune o crime com métodos ilegais.

No caminho da evolução humana, a civilização eleva o Estado e jamais o rebaixa a práticas mesquinhas. Afinal, como um dia disse Rui, “com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação”.

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